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Filosofia

Interpretação metafísica da teoria da evolução

Texto do confrade Rui:

EvolutionismGostaria de fazer uma interpretação metafísica ou ontológica da teoria da evolução, com base na causalidade, e submetê-la à apreciação dos confrades.

Em primeiríssimo lugar, não se trata de negar a teoria da evolução. Embora eu não seja evolucionista, considero que, em princípio, ela seria possível, mas, como a ciência moderna afastou-se das bases filosóficas que a sustentam, acho interessante fazer essa interpretação.

Para começar, é necessário se ater à distinção entre espécie metafísica e espécie biológica. A espécie metafísica tende a ser mais ampla do que a biológica, pois necessariamente inclui as variações acidentais (que não modificam a natureza ou essência do ser em questão), ao passo que a espécie biológica pode considerar essas variações acidentais, como de fato se nota na nomenclatura dessas espécies. A partir daí, passaremos a considerar, à luz da causalidade, como se dá o processo gerativo.

A geração me parece corresponder, com grande propriedade, ao modo de causalidade que, na ontologia, se chama causalidade unívoca, ou seja, quando a forma da causa e do efeito são idênticas. Na causalidade unívoca, a causa transmite ao efeito a forma que possui realmente, e não virtualmente, e isso independe de ser aquela causa principal ou acidental. Por exemplo, ao se tocar na panela de água fervente, a forma do calor é transmitida ao corpo que está em contato com ela. Esse tipo de causalidade é diferente da causalidade análoga, que se dá quando a causa, ao invés de possuir realmente a forma do efeito que irá causar, a possuir, no entanto, virtualmente (porque o efeito não pode ser maior do que a causa). Exemplo: o escultor possui virtualmente, na intenção, a forma do objeto que irá criar. Pois bem, a reprodução biológica é um exemplo de causalidade unívoca, na qual o ser se reproduz, transmitindo assim, a outro, a sua forma substancial, a forma de sua essência, dado que é como ser que ele atua; é a sua natureza que se atribui o poder de gerar, conquanto, acidentalmente, não transmita ao ser gerado todas as suas formas acidentais. Assim, uma modificação genética pode gerar mutações, mas serão sempre mutações acidentais, se dependerem só da potência do ser que tem por finalidade reproduzir-se.

Feitas essas considerações, cabe perguntar: Como pode um ser reproduzir-se, e dar-se mutações essenciais, como preconiza a teoria da evolução? Minha resposta é: se houver causas eficientes além da natureza do ser que se reproduz, não se dará a causalidade apenas unívoca, mas também causalidade análoga, fazendo com que a nova forma substancial ou mutação essencial esteja virtualmente em posse dessas causas. Mas que outras causas eficientes seriam essas? Não podem corresponder, penso eu, às formas acidentais do ser gerador de vida, mas podem corresponder a causas que sobre ele atuem direta ou indiretamente, como o ambiente no qual se desenvolve, o tipo de alimento que ele consome, condições climáticas, etc. Se tais causas tiverem o poder de influenciar suas potências geradoras ou serem causas, com ele, do processo gerativo, elas podem produzir um efeito que é maior do que a mera natureza do sujeito cuja finalidade é reproduzir-se, um efeito mais perfeito. Os acidentes genéticos seriam capazes de até criar seres deficientes em relação à natureza que lhes deu origem, mas não que ultrapassassem a virtualidade presente naquela natureza. Seriam as causas eficientes análogas que não apenas enfraqueceriam o efeito da causa principal eficiente, dando lugar à causalidade acidental, mas que possuiriam, também, elas próprias, virtualmente, a forma do produto final.

Por fim, cabe perguntar: Alguma vez a ciência biológica pôde observar, na natureza, um tipo de mutação essencial, ou seja, que vá além da mera diferenciação entre espécies biológicas, mas que seja uma transformação de uma natureza em outra por meio da geração? Se, nesse processo, ela considera que podem intervir outras causas eficientes além das próprias capacidades reprodutoras do sujeito? Se ela responder afirmativamente à segunda pergunta, creio que não há incompatibilidade entre a teoria da evolução e a metafísica.

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12 respostas em “Interpretação metafísica da teoria da evolução”

Rui, eu não entendi esta parte logo no começo:

“A espécie metafísica tende a ser mais ampla do que a biológica, pois necessariamente inclui as variações acidentais (que não modificam a natureza ou essência do ser em questão), ao passo que a espécie biológica pode considerar essas variações acidentais, como de fato se nota na nomenclatura dessas espécies.”

Fica parecendo que a noção de espécie na metafísica e na biologia incluem igualmente os acidentes (se uma variação é acidental na biologia, então ela pode não ser levada em conta, incluindo-se na noção mais ampla, como é o caso da metafísica). Você queria dizer o contrário?

A espécie, na metafísica, leva em consideração o modus operandi. Exemplo: o modo como o ser “peixe” opera é diferente do modo como o ser “gato” opera. Logo, têm naturezas diferentes, isto é, são essencialmente diferentes e formam espécies diferentes (entendendo-se por espécie o universo dos seres que possuem a mesma essência ou natureza). Já, na biologia, a espécie se diferencia pelos traços físicos e certos comportamentos acidentais, como se vê na diferença entre o lobo e o cão. Logo, a biologia sistemática tende a separar os indivíduos por acidentes, ao passo que a metafísica necessariamente tem que inclui-los dentro da mesma espécie, quando a diferença é só acidental.

Levando o assunto para o universo da biologia evolucionista: o caso das experiências com as moscas-das-frutas pode provar mutações acidentais, mas não um desenvolvimento para além da natureza daquele animal, entendida metafisicamente. Além disso, o acidente, por si mesmo, por ser um evento que frustra o efeito de uma causa eficiente, pode levar a uma deficiência, nunca a um efeito maior do que a causa. Mas se, concorrem outras causas externas, certamente, elas aumentarão a possibilidade de se criar um efeito maior, pois a virtualidade presente nessas causas é maior do que a presente numa única causa. O objetivo do meu artigo é mostrar que a teoria da evolução tem que ser proposta num esquema que não viole o axioma de que o efeito nunca pode ser maior do que a causa.

Rui, é possível alguém dizer que na célula do ser vivo primordial estavam presentes as virtualidades de todos os outros seres a que ele deu origem? Se sim, apenas a causalidade unívoca unida aos mecanismos da hereditariedade genética não já seriam suficientes para explicar o evolucionismo filosoficamente?

Parece-me semelhante essa tese à das razões seminais de que fala Sto. Agostinho, de naturezas incoadas em outras, mais perfeitas, mas, se fosse assim, parece que o meu argumento não se alteraria, pois o ser que possui virtualmente o efeito atua como causa análoga, e, na reprodução, o ser transmite a sua própria natureza, como causa unívoca. Ainda assim, seria necessário recorrer a outros seres, que, retirando algo à causalidade própria da reprodução, introduzissem uma nova potencialidade, atuando esses sim, como causas análogas.

Para tornar mais claro, um ser atua como causa análoga ou como causa unívoca, na geração de um efeito, tertium non daretur.

Toda ciência especulativa possui conclusões necessárias e outras suficientes, e ainda há aquelas que são necessárias dentro de determinada conclusão suficiente. Essas conclusões suficientes são aquilo que chamamos de “teoria” ou “hipótese científica”, dado que não há dogmatismo algum nas ciências naturais. Santo Tomás expõe essa diferença na Suma Teológica, quando diz que a razão pode provar tanto a demonstrabilidade de algo, como a sua conveniência (na questão sobre a Trindade):

“A razão intervém de duas maneiras para explicar algo. 1) Uma, para demonstrar suficientemente algum fundamento; como nas ciências naturais prova suficientemente que o movimento do céu mantém sempre uma velocidade uniforme. 2) Outra, não para demonstrar suficientemente algum fundamento, senão para que, uma vez demonstrado, prove os efeitos que lhe seguem; como, por exemplo, em astrologia, estabelecidos os excêntricos e os epiciclos, são explicáveis as manifestações do movimento no firmamento. No entanto, essas suposições não são provas demonstrativas, já que, estabelecida outra hipótese, podem dar-se outras explicações.”

Confundir condição suficiente com condição necessária é cair na falácia da afirmação do consequente. E nunca a metafísica entrará em contradição com as conclusões verdadeiras das ciências particulares. O objeto de uma e de outra é o mesmo, o ser, mas sob relações diferentes. A filosofia estuda o ser em relação às suas causas mais gerais, enquanto as ciências particulares, em relação às suas causas próximas, portanto, chegam a conclusões que são complementares, mas nunca opostas.

Esse trecho é interessantíssimo, porque já mostra como, no seu tempo, e guiado por sólido raciocínio, Santo Tomás já não supunha que as hipóteses contemporâneas a ele sobre astronomia fossem verdades demonstradas. Ele não se surpreenderia em nada com os feitos da astronomia moderna.

Na filosofia tomista-aristotélica, as ciências dividem-se em três graus, segundo o grau de abstração: físicas, matemáticas e metafísica.

No primeiro grau, abstrai-se da matéria individual, mas entrando em consideração com todas as propriedades direta ou indiretamente sensíveis que provém da existência na matéria. No segundo, põe-se de parte as qualidades sensíveis, mas conserva-se a quantidade nas suas diversas modalidades, número, dimensões, configuração, posição. No último grau, abstrai-se mesmo da quantidade; consideram-se só os conceitos mais universais, o que, em si mesmo, é imaterial: o ser, o ato e a potência, as essências, a causalidade, a inteligência, etc.

Quanto aos termos (ciências físicas, naturais, particulares), eu devo tê-los usado como equivalentes, mas, a rigor, ciência natural é toda ciência que não é sobrenatural, incluindo tanto a filosofia, quanto a física, a química, a matemática, etc. Essas, com exceção da filosofia, são ciências particulares, porque seus princípios não são de caráter universal, como o princípio de contradição, a causalidade, etc. Por sua vez, elas se dividem em ciências físicas e matemáticas, segundo a classificação de Aristóteles, ou de outro tipo.

Mas também há o costume de chamar “ciências naturais” as ciências que estudam a natureza, ou seja, o mundo físico, nesse caso, com a exclusão da filosofia. Por isso, posso ter usado a expressão nessa sentido, embora eu pense que seja um erro seguir o costume, se achamos que ele está errado.

Na verdade, em Aristóteles, a classificação em ciências físicas, matemáticas e metafísica já é uma subdivisão. Ele classifica as ciências em especulativas, práticas e poiéticas, e, às ciências especulativas, aplica a subdivisão de que escrevi acima, com base no grau de abstração formal.

Oi Professor, muito bom o seu artigo. O senhor poderia indicar uma bibliografia introdutória acerca desse assunto?

Oi Leandro, você pode encontrar muita coisa sobre as relações da Fé com o evolucionismo, mas com esse recorte que Rui deu acho difícil. Até onde sei essa visão em torno do tema é original.

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