Comentário do confrade Rui:
É inegável a existência de modos de se expressar típicos dos hebreus antigos. Por exemplo, certas narrativas semelhantes do livro do Gênesis parecem ser a mesma história narrada duas ou três vezes, com certa imprecisão nas personagens. Parece haver também certa liberdade nos números e nas genealogias, ou em alguns fatos menores, de forma que alguém que tome como base de cálculo as genealogias bíblicas, como o Arcebispo James Ussher, parece esbarrar em sérias dificuldades (de fato, os números que acompanham a narração da linhagem dos setitas – Gên. 5 – divergem no texto hebraico massorético, na versão dos Setenta e no Pentateuco Samaritano). Mas isso são fatos menores, que não impedem o reconhecimento da narrativa como histórica ou como de fundo histórico. Veja-se o que diz a Carta ao Cardeal Suhard, arcebispo de Paris, pelo secretário da Pontifícia Comissão para os Estudos Bíblicos, em 1948:
Declarar a priori que suas narrativas não contêm história, no sentido moderno da palavra, levaria facilmente a entender que elas não o contêm em sentido algum, ao passo que elas relatam, em sua linguagem simples e figurada, adaptada às inteligências de uma humanidade menos desenvolvida, as verdades fundamentais postas com vistas à economia da salvação, e ao mesmo tempo a descrição popular das origens do gênero humano e do povo eleito.
Já qualificar como mito ou fábula, ou mesmo parábola, quando esse tipo de qualificação não é imposto pelo texto, para mim, é depreciar a Escritura enquanto revelação de Deus e aplicar a ela critérios mundanos da ciência histórica, equiparando-a com outras produções como “A Ilíada” ou “A Eneida”. Eu não duvido, inclusive, que alguns historiadores tenham mais respeito por essas obras pagãs do que pela Bíblia. É provável que defendam a existência histórica de Ulisses ou de alguns fatos narrados em “A Odisseia” de Homero, mas não de Jesus Cristo.
No caso da Bíblia, eu defendo dois pesos e duas medidas sim, mas porque a Bíblia não é um mero documento histórico. Os métodos da ciência histórica aplicados à Bíblia devem ter critérios diferentes, pelo menos para nós. Há católicos que sequer se lembram de incluir na balança o peso da Tradição, das opiniões aceitas e propagadas pelo magistério e pelos santos doutores, e aderem, às vezes, até sem conhecer profundamente a questão, à opinião de que alguns relatos bíblicos são mitos.
Com respeito a tudo o que o católico deve levar em conta, antes de dizer que uma narrativa bíblica é mitológica, veja-se uma resposta do magistério de S. Pio X, que conserva muito de seu valor hoje:
Dúvida II: Se, não obstante o caráter e a forma histórica do livro de Gênesis, e peculiar nexo dos três primeiros capítulos entre si e com os capítulos seguintes, o múltiple testemunho das Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento, o sentir quase unânime dos santos Padres e o sentido tradicional que, transmitido já pelo povo de Israel, há mantido sempre a Igreja, pode-se ensinar que: os três preditos capítulos do Gênesis contêm, não narrações de coisas realmente sucedidas, isto é, que respondam à realidade objetiva e à verdade histórica; mas fábulas tomadas de mitologias e cosmologias dos povos antigos, e acomodadas pelo autor sagrado à doutrina monoteísta, uma vez expurgadas de todo erro de politeísmo; ou ainda alegorias e símbolos, destituídos de fundamento de realidade objetiva, baixo aparência de história, propostos para inculcar as verdades religiosas e filosóficas, ou enfim lendas, em parte históricas, em parte fictícias, livremente compostas para instrução ou edificação das almas.
Resposta: Negativamente.
15 respostas em “Como interpretar a Bíblia”
Pergunta: a hipótese documentária do Pentateuco (fontes javista, eloísta etc.) pode ser considerada herética?
Por si só não.
A maior parte dos fautores dessa hipótese concorda que a fonte javista, a mais antiga, teria sido escrita no século IX a.C., o que contraria a resposta publicada pela Comissão Bíblica em 1906 (cf. DH 3394-3397), certo?
Não vejo porque uma coisa iria de encontro à outra. Afirmar a fonte javista não vai, necessariamente, contra a autenticidade e a historicidade do Pentateuco. Sugiro que leia estes dois documentos:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_19930415_interpretazione_po.html
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/pcb_documents/rc_con_cfaith_doc_20030510_ratzinger-comm-bible_po.html
Na resposta publicada pela Comissão Bíblica em 1906, lemos assim, logo no começo:
“Pergunta 1: Será que os argumentos acumulados pelos críticos para combater a autenticidade mosaica dos livros sagrados designados com o nome de Pentateuco são de tanto peso que, sem levar em conta os muitos testemunhos de um e outro Testamento considerados no seu conjunto, a permanente convicção do povo judeu, a tradição constante da Igreja, bem como os indícios internos tirados do próprio texto, dão direito a afirmar que esses livros não têm Moisés como autor, mas foram compostos de fontes na sua maior parte posteriores à época mosaica?
Resp.: Não.”
Para a hipótese documentária, a mais antiga das quatro fontes que compõem o Pentateuco, a fonte javista, foi escrita no século IX a.C., bem depois da época mosaica.
A hipótese só entra nessa resposta caso se considere que o conteúdo organizado pelos sacerdotes também os têm como fonte, e essa não é uma consequência necessária. Além disso, a reflexão da Igreja não parou em 1906, daí minhas duas sugestões de leitura. Pode-se perfeitamente adotar a hipótese documentária sem desconsiderar uma origem mosaica para o conteúdo (que não é mesma coisa que dizer que Moisés pessoalmente é o hagiógrafo).
O que eu entendi sobre a resposta da CB (1906):
– Não é necessário pensar que Moisés tenha escrito o Pentateuco por inteiro, seja de próprio punho ou ditando a outras pessoas.
– Pode-se pensar que Moisés tenha feito uso de “secretários” na composição do Pentateuco, sendo que posteriormente ele aprovou os textos e divulgou sob seu nome.
– Pode-se admitir que Moisés tenha usado fontes (documentos escritos e tradições orais).
– Pode-se admitir que o Pentateuco tenha sofrido modificações ao longo dos séculos (adições feitas depois da morte de Moisés, explicações inseridas no texto, tradução de palavras para uma linguagem mais moderna etc.).
– Não é necessário pensar que Moisés tenha juntado todos os textos do Pentateuco enquanto ainda era vivo.
Mas, pela hipótese documentária, Moisés escreveu muito pouco ou mesmo nada, até pela questão da data proposta (século IX a.C. em diante). Daí Dom Estevão ter escrito: “Descarte vê-se que a falha dos críticos liberais não consiste propriamente em admitir fontes do Pentateuco (a existência destas é plenamente compatível com a inspiração Bíblica, como ficou demonstrado em «P. R.» 26/1960, qu. 5), mas em querer distanciar de Moisés essas fontes, de modo a negar a influência do chefe de Israel sobre a Lei e, por conseguinte, a antiguidade desta” (PeR 048, de 1961).
Não vejo diferença entre nada disso e o que acabei de comentar.
Thiago, você indicou dois documentos.
O primeiro foi publicado pela Pontifícia Comissão Bíblica em 1993. Esta comissão, no entanto, deixou de ser um órgão do Magistério da Igreja em 1970, através do motu proprio Sedula Cura de Paulo VI. Logo, este documento é pouco relevante.
O segundo é um pronunciamento realizado em 2003 pelo cardeal Joseph Ratzinger. Trata-se apenas de uma (estranha?) opinião de um cardeal da Igreja. Logo, este documento também é pouco relevante.
Sugiro, aliás, o seguinte texto: “El triunfo del modernismo sobre la exégesis católica”, por Monsenhor Francesco Spadafora.
Não, o documento não é pouco relevante, Renan, porque a vida católica não se resume a uma série de proclamações de dogmas ou algo parecido. O mero fato de se tratar de um órgão vinculado ao Sumo Pontífice, com autoridade de vigilância, no mínimo, pede o assentimento em primeira instância do que vem dela.
Em relação ao segundo documento, que veio de um cardeal e um cardeal que tinha a tarefa de cuidar da ortodoxia em matéria de doutrina, faço o mesmo tipo de ilação que expliquei acima.
Tem de se ter muito cuidado quando se fala de “triunfo do modernismo” sobre o que quer que seja, levando em conta, de maneira irrefletida, os parâmetros da época de São Pio X. No tempo desse Papa a luta contra o modernismo teve de ser dura e urgente, e, como tudo que é assim, acaba jogando numa mesma classificação coisas que são diferentes. Para muitos foi o que se deu com os estudos bíblicos.
Permita-me reformular a frase: o documento é muito menos relevante que as respostas publicadas pela PCB quando ainda era um órgão do Magistério da Igreja.
Hoje, a PCB é apenas uma comissão de peritos. Por que devo assentimento completo aos novos documentos, então? Não vejo motivo.
Eu dou assentimento aos documentos da PCB enquanto ela repete aquilo que já foi ensinado pelo Magistério da Igreja, seja ordinário ou extraordinário. Entretanto, não vejo nenhuma obrigação de aceitar opiniões que não se fundam no ensinamento dos papas e das congregações romanas.
Em relação ao documento do cardeal Ratzinger, entendo como uma reflexão pessoal dele. Não vejo tanta importância nisso.
Sobre ele ser responsável por zelar pela ortodoxia da Fé, creio que essa é uma responsabilidade de todos os cardeais, não apenas do prefeito da CDF. Infelizmente, um número não negligenciável de cardeais têm falhado nisso.
E a luta contra o modernismo ainda tem que ser dura e urgente. Não acho que os documentos publicados no início da PCB tenham sido posições “desesperadas”, meras consequências de um momento histórico (não estou dizendo que essa é sua opinião). Muitas pessoas usam esse argumento para, sorrateiramente, contaminar a exegese católica com todo tipo de inovação.
Hoje, muitos comentários bíblicos são ridículos. Até existem traduções da Bíblia em português que propõem, debaixo dos panos, uma ideia de inerrância limitada. A situação é triste.
Não falei em momento algum em assentimento completo. É exatamente contra essa mentalidade de achar que à Fé pertence apenas aquilo que é classificado como “de assentimento completo” que me manifestei.
O zelo pela ortodoxia da Fé cabe em especial ao chefe da CDF, e, sendo assim, o que ele escreve deve ser, no mínimo, acolhido com atenção.
É verdade que a luta contra o modernismo e seus filhotes pós-conciliares está na ordem do dia, contudo não dá para ignorar que no combate a ele se “passou o rodo” por cima de tudo, se fechou a Igreja ao debate científico e, no fim das contas, aos invés de nos fortalecermos, gastamos tempo em brigas fantasiosas (como defender, por exemplo, um criacionismo rasteiro, à protestante pentecostal).
Não sei o que é essa “inerrância limitada” a que você se referiu.
Peço perdão caso eu tenha adotado uma postura equivocada nos meus dois últimos comentários (02/02/2018 às 17:44 – 05/03/2018 às 15:49). Quero deixar registrado que sempre me submeterei ao Magistério da Igreja.
Poderia por favor me dizer quais foram as motivações e/ou intenções reais para que fosse escrita a carta ao cardeal Suhard?
Ora, saber qual a posição da Igreja frente as teorias que se espalhavam na época e que viam o relato da criação como meramente mitológico/metafórico.