E ouvi a voz de muitos anjos em volta do trono… e era o número deles milhares de milhares. (Apocalipse V, 11)
A existência dos anjos
Além do mundo visível e material, criou Deus também o mundo invisível e espiritual, o chamado mundo angélico.
Isso foi negado na antiguidade, entre os judeus, pela seita dos saduceus (Atos XXIII, 8). Mais tarde, por certas seitas protestantes, como os anabatistas. Em nossos dias tal verdade tem por adversários os ateus, materialistas e positivistas, que não crêem senão naquilo que seus olhos vêem e seus sentidos apalpam. Os racionalistas, para encontrar uma excusa aparentemente racional à sua incredulidade, alegam que os anjos foram inventados pelos judeus no tempo do cativeiro da Babilônia, por imitação das entidades ali cultuadas; ou, então, consideravam os anjos como simples modo poético e simbólico de referir-se às virtudes divinas e aos vícios humanos. Dentro da Igreja, infelizmente, os modernistas têm pego, ao sabor das preferências individuais, um ou outro desses argumentos, revelando, mais uma vez, como disse São Pio X, que no seu espírito há um amálgama de todos os erros do passado.
A existência dos anjos, contudo, foi definida solenemente pelo IV Concílio de Latrão (1215):
Deus… desde o princípio do tempo criou do nada duas espécies de seres – os espirituais e os corporais, isto é, os anjos e o mundo.
De forma igual se expressou o Concílio Vaticano I.
Isso facilmente se depreende da Revelação. Na Sagrada Escritura, por exemplo, a existência dos anjos é afirmada em muitas passagens do Antigo e do Novo Testamento. Lembremos algumas:
a) Antigo Testamento:
- Um anjo, armado de espada flamejante, guarda a entrada do Paraíso terrestre depois da expulsão de Adão e Eva (Gênesis III, 24);
- Um anjo aparece a Agar, consolando-a no deserto (Gênesis XVI, 9; XXI, 17);
- Um anjo detém o braço de Abraão que está para sacrificar Isaque (Gênesis XXII, 11);
- Um anjo faz sair Lot com a família da cidade de Sodoma, que está para ser abrasada pelo fogo do Céu (Gênesis XIX);
- Jacó vêm em sonho uma multidão de anjos, que sobem e descem por uma escada unindo o Céu à Terra (Gênesis XXVIII, 12);
- Um anjo reconforta Elias no deserto (I Reis XIX, 5);
- O arcanjo Rafael acompanhou Tobias (Tobias V, 5).
b) Novo Testamento:
- O arcanjo Gabriel é o mensageiro da Encarnação. Anuncia a Zacarias o nascimento de São João Batista, e a Nossa Senhora o do Messias (Lucas I, 11, 26);
- Aos pastores, anjos comunicam o nascimento do Salvador (Lucas II, 13);
- É um anjo que faz São José seguir para o Egito, e o faz voltar dali (Mateus II, 13, 19);
- No deserto, servem os anjos a Jesus (Mateus IV, 11);
- Um anjo o assiste na agonia (Lucas XXII, 43);
- Anjos revelam às santas mulheres a Ressurreição (Mateus XXVIII, 5-6);
- Um anjo liberta da prisão São Pedro (Atos, XII, 5-17).
Já na Tradição a existência dos anjos perfaz uma verdade atestada com mais abundância e detalhes. Na arte, por exemplo, temos a presença constante deles da iconografia mais antiga às grandes obras do renascimento, como as do Fra Angelico. Na liturgia, eles são citados do começo ao fim no rito da Missa, como atesta a referência a São Miguel no Confiteor e a do papel de ligação que eles exercem entre Deus e os homens na oração Supplices Te rogamus. Por fim, nos escritos antigos os anjos são alvo de tanto detalhamento que dessas informações deriva nosso conhecimento sobre seu número e hierarquia (que será abordada mais a frente); Santo Inácio de Antioquia, que foi discípulo de São João Evangelista e recebeu seus episcopado de São Pedro, escreveu (Carta aos Tralianos V):
Não saberia eu descrever-vos as coisas do céu? Receio, porém, fazer-vos mal, já que sois ainda crianças. Perdoai-me, se não o faço; não sendo capazes de assimilar, poderíeis sufocar-vos. Pois também eu, embora prisioneiro e capaz de conhecer coisas celestes, mesmo as hierarquias dos anjos e os exércitos dos principados, coisas visíveis e invisíveis, nem por isso ainda sou discípulo. Muito nos falta, para que Deus não nos chegue a faltar.
Mas pela simples razão, independente da Revelação, o homem pode chegar de algum modo ao conhecimento dos anjos. Com efeito, o fato de haver seres puramente espirituais não repugna à razão. E um exame da Criação, à mera luz do intelecto, pode levar-nos à conclusão de que a existência dessas criaturas convém à harmonia do Universo, pois assim estariam representados os três gêneros possíveis de seres: os puramente espirituais, acima do homem; outros, puramente materiais, baixo do homem; e, por fim, seres dotados de matéria e alma espiritual – os próprios homens.
Nesse sentido, é que podemos constatar em muitos sistemas de crenças a presença de seres de natureza superior ao homem e inferior à divindade. Nas brumas do paganismo esses seres incorpóreos, ora malfazejos ora benignos, podem ser o sinal de alguma tradição adâmica corrompida, mas, indo ao que nos interessa, sua presença abundante revela um dado que em princípio não parece estranho as mais diferentes cosmologias.
A natureza angélica
Neste ponto, podemos começar a tratar da natureza dessas criaturas.
Os anjos são seres intelectuais e racionais, inferiores a Deus e mais perfeitos que os homens. Eles são puros espíritos, dotados de uma inteligência luminosa e de uma vontade livre e possante.
Tendo sido criados por Deus do nada, como tudo o mais, os anjos, pelo próprio fato de serem puramente espirituais, são imortais. O ser humano, como sabemos, é mortal, posto que sua parte material, o corpo, tem um fim; também sabemos que a alma espiritual humana não tem fim, vindo a se religar novamente ao corpo na chamada ressurreição dos corpos. Pode, então, surgir uma pergunta:
– A alma humana separada do corpo pela morte é semelhante a um anjo?
Não, não é. Embora a alma humana seja igualmente espiritual, ela foi criada por Deus para viver em união substancial com o corpo; quando se dá a morte e a alma se separa do corpo, ela permanece num estado de violência, fica privada de agir e conhecer por si mesma, pois isso ela só pode fazer em união com o elemento material.
Tal como o homem, os anjos existem realmente enquanto pessoas, ou seja, eles são substâncias individuais, dotadas de inteligência e livre arbítrio. Em outros termos, eles têm uma existência real, distinta de outros seres, sendo capazes de conhecer, de amar, de servir, de escolher entre uma coisa e outra.
A capacidade de conhecer dos anjos é superior à nossa, pois eles conhecem sem a necessidade do intermédio das aparências da matéria, isto é, conhecem na essência. Deus infundiu no intelecto deles, logo que os criou, representações detalhadas de todas as coisas naturais (compare-se isso com a maneira como Adão conhecia, dando nome aos seres que lhe eram apresentados). É bom lembrar, todavia, que os anjos não conhecem os mistérios divinos, os segredos dos corações, nem o futuro livre ou contingente (chama-se futuro livre ou contingente aquele que depende da vontade humana ou divina, distingue-se do futuro necessário – à noite sucede o dia, por exemplo), mas podem conjecturar com mais penetração que nós.
Santo Tomás explica do seguinte modo a comunicação dos anjos entre si: como nós homens, os anjos têm o verbo interior ou verbo mental, com o qual falamos a nós mesmos ou formulamos os conceitos interiormente. Mas, enquanto só podemos comunicar esse pensamento a outros por meio da palavra oral, ou de outro meio externo, já que entre nós e os demais existe a barreira do corpo, que vela o pensamento, os anjos não têm essa barreira; assim, basta a eles, por um ato de vontade, se dirigirem a outros anjos para que seu pensamento se manifeste a eles.
No que se refere ao poder dos anjos sobre a matéria, dada a importância deste ponto para o entendimento do papel dos anjos da guarda e dos demônios, cabe uma explicação mais pormenorizada ainda usando o Aquinate (Suma Teológica, I, qq. 52, 107, 110-112).
Antes de tudo, convém lembrar o que ensina o Santo Doutor a respeito do modo como os anjos encontram-se num lugar: enquanto os seres corpóreos manifestam sua presença num lugar circunscrevendo-o pelo contato físico, as criaturas incorpóreas delimitam o lugar por meio de um contato operativo, quer dizer, elas estão no lugar onde agem.
Vale destacar ainda que um ser superior pode mover os inferiores porque tem em si, de um modo mais eminente, as virtualidades desses seres inferiores. Assim, o corpo humano é movido por algo superior a ele, a alma, que é espiritual, a qual, através da vontade, que também é imaterial, move os membros corpóreos a seu bel-prazer; logo, não repugna à razão que uma substância espiritual possa mover a matéria.
Entretanto, no caso da alma humana, ela só pode mover diretamente aquele corpo com o qual está substancialmente unida; as demais coisas, ela só pode mover por meio desse corpo. Por exemplo, para mover uma caneta sobre o papel no escrever, precisamos segurá-la com a mão e através desta imprimir o impulso que a fará deslizar e traçar as letras que desejamos; não podemos mover diretamente a caneta por um simples ato de vontade. Ora, como os anjos são seres espirituais, não estando substancialmente unidos a nenhum corpo material, sua força de ação sobre a matéria não está delimitada por nenhum corpo específico; daí se segue que eles podem mover livremente qualquer matéria e que seu poder de fazer prodígios no nosso mundo é imenso.
Esse movimento se produz pelo contato operativo do anjo com a matéria, impulsionando um primeiro movimento local; por meio desse primeiro movimento local o anjo pode produzir outros movimentos na matéria utilizando-se dos próprios recursos dela, como o ferreiro se utiliza do fogo para dobrar o ferro.
Número e hierarquia
Caminhando na direção do chamado dos anjos à ordem sobrenatural, devemos tratar antes do seu número e hierarquia.
É muito grande o número dos anjos, como se deduz da Sagrada Escritura representá-los debaixo da figura de um exército (I Reis, XXII, 19), das palavras do profeta Daniel (Daniel VII, 10): “Milhares e milhares o serviam, dezenas de milhares o assistiam” e das palavras do Apocalipse que estão no início deste texto.
Muitos teólogos deduzem que o número dos anjos é superior ao dos homens que existiram desde o princípio do mundo e existirão até o fim dos tempos. A razão disso é dada por Santo Tomás ao dizer que, tendo Deus procurado principalmente a perfeição do universo ao criar os seres, quanto mais estes forem perfeitos, o Senhor os terá criado com prodigalidade. Ora, os anjos são mais perfeitos que os seres corpóreos, logo foram criados em maior número.
Consoante uma tradição firmada nos mais abalizados vultos da teologia, há entre os anjos três hierarquias. A primeira hierarquia, que contempla a Deus, abrange os Serafins, os Querubins e os Tronos. O papel da segunda é cuidar da governança do mundo; consta das Dominações, das Virtudes e das Potestades. À terceira, cabe executar as ordens de Deus; é formada pelos Principados, os Arcanjos e os Anjos.
Estado original dos anjos. Prova e queda.
Será que Deus, criando os anjos, lhes outorgou apenas as faculdades próprias da natureza espiritual? Ou ter-lhes-á concedido logo os privilégios da ordem sobrenatural? Não há texto na Sagrada Escritura que autorize um ou outra opinião. Uma coisa, porém, parece fora de dúvida: é possuírem eles na hora da prova, a graça santificante, e isso sabemo-lo pelas expressões dos Livros Santos, que os designam por “filhos de Deus” (Jó XXXVIII, 7), “santos” (Daniel VIII, 13) e “anjos de luz” (II Coríntios XI, 14).
Criando os anjos racionais e livres, quis Deus que eles – com o auxílio da graça – fossem os agentes de sua própria felicidade ou de sua perda, caso cooperassem ou resistissem à graça. Para que merecessem a felicidade eterna, submeteu-os a uma prova.
Que pecado cometeram os que fraquejaram na prova? A opinião comum é que foi pecado de orgulho. Lemos, com efeito, na Sagrada Escritura que “no orgulho tiveram início todos os males” (Tobias IV, 14). Como se haveria manifestado este orgulho? Porventura, quiseram eles, segundo pensa Santo Tomás, igualar-se a Deus, negando-lhe as homenagens e a veneração devidas ao Criador (isto é, desejaram diretamente a bem-aventurança final, não por uma concessão de Deus, por obra da graça, e sim por sua virtude própria, como decorrência de sua natureza)? Ou será, conforme julga Suarez, que não consentiram. quando Deus lhes revelou o Mistério da Encarnação, em reverenciar o Verbo Eterno, posto abaixo deles pela natureza humana que adotou? A este respeito podemos fazer somente conjecturas.
Desde esse fato, os anjos fiéis passaram a gozar da visão beatífica e os infiéis, chamados demônios, foram precipitados no Inferno (criado para eles na “hora” da queda).
Os anjos da guarda. Sua existência. Sua missão. Nossas obrigações para com eles.
Deus, no seu amor infinito pelos homens, entregou cada um de nós à guarda e cuidado especial de um anjo, que nos acompanha desde o nascimento até a morte: o anjo da guarda.
A Bíblia é abundante de referências a eles. Vamos a algumas:
a) Antigo Testamento
- Jacó ao abençoar seus netos, filhos de José, diz: “Que o anjo que me livrou de todo mal, abençoe estes meninos” (Gênesis XLVIII, 16);
- Nas palavras seguintes de Deus a Moisés encontramos os múltiplos ofícios que incumbem ao anjo da guarda: “Eis que eu enviarei o meu anjo, que vá adiante de ti, e te guarde pelo caminho, e te introduza no lugar que preparei. Respeita-o, e ouve a sua voz, e vê que não o desprezes; porque ele não te perdoará se pecares, e meu nome está nele. Se ouvirdes a sua voz, e fizerdes tudo o que te digo, eu serei inimigo dos teus inimigos, e afligirei os que te afligem. E meu anjo caminhará adiante de ti” (Êxodo XXIII, 20-23);
- O Salmo XC exprime, com muita poesia, a solicitude de Deus para conosco por meio do anjo da guarda: “O mal não virá sobre ti, e flagelo não se aproximará da tua tenda. Porque mandou (Deus) os seus anjos em teu favor, que te guardem em todos os teus caminhos. Eles te levarão nas suas mãos, para que teu pé não tropece em alguma pedra” (Salmo XC, 10-12).
b) Novo Testamento
- “Tende cuidado em não desprezar nenhum desses menores, pois eu vos declaro que seus anjos, no Céu, contemplam sem cessar a face de meu Pai” (Mateus XVIII, 10);
- O apóstolo São Paulo assevera-nos, por sua vez, que os anjos são emissários de Deus, com a missão de proteger os homens destinados ao Céu: “Não são todos eles espíritos às ordens de Deus, enviados, como mensageiros, para maior benefício dos que devem receber a herança da salvação?” (Hebreus I, 14). Palavras estas que designam, no consenso geral, não só os eleitos, mas sim todos os homens, desde que todos são chamados a possuir o Céu;
- Nos Atos (XII, 16), lemos que São Pedro foi tirado da prisão por intermédio do seu anjo.
Tão arraigada está na Tradição a crença na existência dos anjos da guarda que uma festa especial foi instituída em honra deles no dia 2 de outubro (calendário do rito gregoriano) e São Basílio dizia para o gregos (Apud Card. J. DANIELOU, Les Anges et leur Mission, p. 93):
Que cada qual tenha um anjo para o dirigir, como pedagogo e pastor, é o ensinamento de Moisés.
Esses anjos prestam serviços tanto ao corpo como à alma.
Quanto ao corpo, o anjo custódio arreda de nós os perigos exteriores e ajuda-nos nos negócios temporais. “Ele (o arcanjo Rafael) dirigiu-me, diz Tobias, e me trouxe são e salvo… e por ele fomos cumulados de toda sorte de bens” (Tobias XII, 3).
Quanto à alma:
a) É nosso defensor na luta contra o demônio e suas tentações e más sugestões (Tobias VIII, 3);
b) Faz nascer, em nós, santos pensamentos; incita-nos ao bem e desvia-nos do mal;
c) Apresenta a Deus as nossas preces e empenha-se por nós junto Dele: “Enquanto oravas com lágrimas (diz a Tobias o arcanjo Rafael), enquanto sepultavas os mortos, eu oferecia ao Senhor a tua oração” (Tobias XII, 12);
d) Na hora da morte, ampara-nos contra os últimos assaltos do Maligno e introduz a nossa lama no Céu ou no Purgatório (Lucas XVI, 22).
Frente a tantos benefícios, existem deveres nossos em relações aos nossos anjos da guarda? Sim, existem. São Bernardo os resume assim (Apud Jesus VALBUENA O.P., Tratado del Gobierno del Mundo – Introducciones, p. 930):
a) Respeito pela sua presença. Devemos evitar tudo o que pode contristar um espírito assim puro e santo. Sobretudo, evitar o pecado.
Como te atreverias a fazer na presença dos anjos aquilo que não farias estando eu diante de ti?
b) Confiança na sua proteção. Sendo tão poderoso e estando continuamente diante de Deus, e ao mesmo tempo conhecendo as nossas necessidades, como não confiar na sua proteção? A melhor maneira de provar essa confiança é recorrer a ele pela oração nos momentos difíceis, especialmente nas tentações.
c) Amor e reconhecimento por sua proteção. Devemos amá-los como a um benfeitor, um amigo e um irmão, e ser agradecidos pela sua proteção diligentíssima.
Sejamos agradecidos a guardiães tão dignos de apreço, correspondamos a seu amor, honremos-lhe quanto possamos e quanto devemos.
A oração por excelência para invocar e honrar o anjo da guarda é o Santo Anjo do Senhor:
Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador, já que a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, guarde, governe e ilumina. Amém.
OBS:
1. Além dos anjos custódios de pessoas, também existem anjos responsáveis pela guarda de nações, como se depreende da passagem que nos ensina que um anjo dirigia o povo israelita no deserto (Êxodo XXIII, 20) e o relato da luta entre o anjo da Pérsia e o anjo protetor dos judeus (Daniel X, 13-21 – às vezes Deus não revela aos anjos os méritos ou os deméritos das diversas nações ou indivíduos que eles custodiam, de modo que enquanto não conhecem com certeza a vontade divina, procuram, santamente, proteger os que estão sobre sua guarda).
É também o que ensina São Basílio (Apud Card. J. DANIELOU, Les Anges e leur Mission, p. 93):
Entre os anjos, uns são prepostos às nações; os outros são companheiros dos fiéis.
São Miguel Arcanjo era o protetor de Israel enquanto povo eleito; atualmente ele é o protetor do novo povo de eleição, a Igreja. As aparições de Nossa Senhora em Fátima foram precedidas pela do anjo de Portugal.
2. Existe um “debate bizantino” sobre se cada pessoa tem um anjo da guarda específico ou se um mesmo anjo pode ser custódio de mais de um ser humano.
Os demônios. Existência. Ocupações.
O dogma da existência dos demônios, definido pelo IV Concílio de Latrão, baseia-se em numerosas passagens da Escritura, em especial dos Evangelhos, onde se trata dos espíritos malfazejos e de exorcismos.
Como vimos, esses espíritos são os anjos que pecaram. No Apocalipse (XII, 7-9) São João descreve o momento posterior à perda da graça por eles como uma batalha:
E houve no céu uma grande batalha: Miguel e os seus anjos pelejavam contra o dragão, e o dragão com os seus anjos pelejavam contra ele; porém estes não prevaleceram e o seu lugar não se achou mais no céu. E foi precipitado aquele grande dragão, aquela antiga serpente, que se chama Demônio e Satanás, que seduz todo o mundo; e foi precipitado na terra e foram precipitados com eles os seus anjos.
O próprio Divino Mestre dá testemunho dessa queda: “Eu vi Satanás cair do céu como um relâmpago” (Lucas X, 18). “(O Demônio) foi homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade” (João VIII, 44).
A queda para eles representa, também, a condenação ao Inferno. O Salvador, neste ponto, ensinou (Mateus XXV, 41): “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que foi preparado para o Demônio e seus anjos”.
Temos certa dificuldade psicológica em compreender que os demônios, por um só pecado, tenham sido condenados eternamente, enquanto Adão e Eva puderam ser perdoados. Por isso, desde os primeiros tempos do cristianismo, não faltaram autores que sustentaram a possibilidade de reconciliação dos anjos decaídos com Deus.
Essa doutrina foi condenada pela Igreja e Santo Tomás explica a razão pela qual isso não é possível: em primeiro lugar porque a prova a que os anjos foram submetidos, a fim de merecerem a bem-aventurança eterna, teve para eles o mesmo efeito que tem para nós a morte; ou seja, encerra o período em que podemos adquirir méritos, e nos introduz a vida eterna, imutável por natureza.
Em segundo lugar, por causa da natureza angélica, os anjos, uma vez feita uma escolha, não podem voltar para atrás, seja para o bem, seja para o mal. Porque eles não estão sujeitos à mobilidade das paixões humanas, sua inteligência é perfeita, isto é, conhecem pela essência e não pelos acidentes, de modo que não podem fazer escolhas provisórias. Antes de fazer uma escolha o anjo é perfeitamente livre; feita esta, sua vontade adere a ela para sempre, pois todas as razões que o levaram a fazer essa escolha já estavam perfeitamente claras para ele antes que fizesse.
Dessa forma, os demônios não desejam senão o mal em todos os seus atos voluntários, e mesmo quando fazem algum bem (como, por exemplo, restituir a saúde a alguém, obter-lhe riquezas ou ensinar-lhe algo), fazem-no apenas para dai tirar o mal, para conduzir a pessoa à perdição eterna, que é a única coisa que almejam para o homens (procuram atingir Deus por meio de suas criaturas, na medida em que Ele o permite).
Comenta o Cardeal Lepicier (O Mundo invisível, p. 240):
Escudado na satisfação de certas vitórias parciais e na esperança de grandes triunfos e, ao mesmo tempo, não se preocupando com as vergonhosas derrotas sofridas, Satanás prossegue loucamente na sua faina de tentar arrastar as almas para a eterna perdição. O seu pendão está sempre erguido e o seu grito insensato de desafio e revolta ouve-se por toda parte: “Eu não quero servir” (Jeremias II, 20).
Santo Agostinho refletindo as palavras do Redentor em João VIII, 44 disse (Apud J. MALDONADO S.J., Comentarios a los Cuatro Evangelios, p. 563):
Perguntamos de onde veio ao diabo ser homicida desde o princípio, e respondemos que matou o primeiro homem, não enterrando-lhe o punhal ou infligindo-lhe qualquer outro dano ao corpo, senão persuadindo-o a que pecasse precipitando-o da felicidade do paraíso.
Mas, enfim, como os demônios atacam os homens? Basicamente de três maneiras:
a) Pela tentação:
A ação mais comum e constante do demônio, em relação ao homem, é a tentação. Por esse seu aspecto comum e também por ser a mais frequente, pode-se chamá-la de ação ordinária do demônio.
Em seu sentido etimológico, tentar alguém significa pô-lo à prova para que conheçam suas disposições e qualidades.
Santo Agostinho estabeleceu uma distinção que se tornou clássica entre a tentação probatória (tentatio probationis) e a tentação enganadora ou sedutora (tentatio decepcionin vel seducionis).
A tentação probatória não visa levar ao pecado, e sim tornar patente a virtude de alguém ou fortalecê-la por meio da provação. Nesse sentido é que se pode falar de tentação de Deus, como por exemplo, as provações que o Criador, servindo-se do demônio, enviou a Jó para provar sua fidelidade (Jó XIV, 1ss).
Pode-se falar também de tentar a Deus quando se pretende por Deus à prova, exigindo dele um milagre ou uma ação extraordinária, com o fim de satisfazer nossa curiosidade, nossos caprichos, ou livrar-nos das conseqüências de nossas irreflexões ou imprudências. “Tentar a Deus – escreve D. Duarte Leopoldo e Silva – é expor-se ao perigo, a grandes tentações, sem necessidade, e depois pedir um milagre para não sucumbir. Deus protege no perigo, mas nem por isso devemos expor-nos temerariamente, porque, diz o Espírito Santo, quem ama o perigo nele perecerá” (Concordância dos Santos Evangelhos).
A tentação enganadora ou sedutora visa levar o homem à ruína espiritual; ela propõe-lhe um mal sob aparência de um bem, procurando arrastá-lo ao desejo deste mal, isto é, ao pecado. Pode, então, ser definida como uma incitação ao pecado. Consiste em um estímulo, uma solicitação da vontade para o mal; por isso mesmo, por ser apenas uma solicitação, em si mesma a tentação desta categoria não é um pecado.
Quando procede de nós mesmos (tentação interna), pode ser indicada mais bem como inclinação, arrebatamento, estímulo; se provém de outrem, inclusive dos demônios, podemos referir-se a ela como convite, solicitação, incitação.
A maior parte da atividade demoníaca se concretiza nesse último tipo de tentação. Por isso o Demônio, no Evangelho, é chamado tentador (Mateus IV, 3).
As demais causas da tentação sedutora – o mundo e carne – podem atuar independentemente umas das outras; entretanto, é comum que, nelas, a atração ao mundo se una à revolta da sensualidade, e a ambas se some a ação aliciante dos demônios.
De onde advertência de São Pedro: “Sede sóbrios e vigiai, porque o demônio, vosso adversário, anda ao redor com um leão que ruge, buscando a quem devorar” (I Pedro V, 9).
Os grandes remédios contra as tentações são a oração e o jejum, acompanhados por aquela fé que move as montanhas (Mateus XVII, 14-20). Junto com elas, é indispensável a freqüência aos sacramentos, sobretudo o da Confissão e o da Comunhão; assim como o uso de sacramentais (como a água benta) e objetos bentos. Não se pode, no campo natural, deixar de falar do fortalecimento da vontade e da inteligência, e no campo da prudência, do afastamento de toda superstição e vã curiosidade sobre práticas ocultistas (Lúcifer, dizia Santo Agostinho, é como um cão acorrentado que só morde quem chega perto dele).
b) Pela infestação ou obsessão:
É uma atividade perturbadora dos demônios mais forte que a simples tentação. Ela pode ser local ou pessoal.
A infestação local consiste na ação dos anjos caídos sobre a natureza inanimada (reino mineral, elementos atmosféricos, etc.), animada inferior (reino vegetal e reino animal) e também sobre lugares e objetos, procurando deste modo atingir indiretamente o homem (objetos que voam, plantações que secam, tempestades, etc.).
A infestação pessoal é uma perturbação que os demônios exercem sobre um um homem específico, sem contudo impedir-lhe o uso da inteligência e da livre vontade. Ela pode ser externa, quando age sobre nossos sentidos sob a forma de tentações fortíssimas (aparições sedutoras ou apavorantes, audição de blasfêmias, dores, etc.), ou interna, quando perfaz sugestões violentas e tenazes (idéias fixas e absorventes, movimentos profundos de emotividade que levam ao ódio, a ressentimentos e amargura, etc.).
A infestação é um tipo extraordinário de ação demoníaca, que pode ser combatida com o arsenal usado contra as tentações e com as chamadas orações de libertação que, nesse caso, não têm nenhuma relação com o que fazem protestantes pentecostais e carismáticos, mas dizem respeito àquelas nas quais pedimos a Deus, à Virgem, a São Miguel, aos anjos e aos santos para sermos libertados das influências maléficas de Satanás (são deprecativas e suplicantes). Em casos extremos, um sacerdote pode ser necessário para a efetuação de um exorcismo.
c) Pela possessão:
A possessão é a mais espetacular e extraordinária das manifestações diabólicas e a que mais impressiona as imaginações, a tal ponto que deixa na penumbra o trabalho constante dos anjos caídos nas tentações.
Ela se caracteriza por dois elementos: a) a presença de um demônio (ou demônios) no corpo de alguém; b) o exercício de um poder por parte do demônio sobre o mesmo.
Quanto à presença demoníaca, ela não significa presença física, pois, como já vimos, os anjos estão em um local por meio do contato operativo, isto é, onde atuam; desse modo, um demônio pode desenvolver sua atividade por toda parte, tanto dentro como fora dos corpos humanos. Um indivíduo, por exemplo, pode estar possuído por vários demônios (os quais operam simultaneamente sobre ele, embora sob aspectos diversos), como um só demônio pode possuir várias pessoas (atuando sucessivamente sobre cada uma delas).
Embora nesses casos o demônio domine o corpo, sobretudo o sistema nervoso, e possa impedir o uso das potências da alma, ele não pode penetrar nela e obrigar sua vítima a cometer um pecado. O possesso, portanto, não é moralmente responsável por seus atos, por piores que sejam, uma vez que não tem plena consciência deles, nem existe colaboração da vontade.
São Boaventura explica que Deus permite a possessão “seja em vista de manifestar sua glória, obrigando o demônio pela boca do possesso a confessar, por exemplo, a divindade de Cristo, seja para a punição do pecado, seja para nossa instrução. Mas, por qual dessas causas precisamente ele deixa o demônio possuir um homem, é o que escapa à sagacidade humana: os julgamentos de Deus são escondidos aos homens. O que é certo, é que eles sempre são justos” (In 2dum Sent. dist. VIII, part. II q. 1 art. único apud L. ROURE, Possession Diabolique, col. 2644).
Para que a Igreja aceite que um caso de suposta ação diabólica se enquadre na categoria aqui tratada e permita que um sacerdote habilitado providencie seu remédio, o exorcismo, todas as possíveis explicações científicas para o fenômeno, como os distúrbios psiquiátricos, têm de ser excluídas e certos sinais devem estar presentes (força descomunal, falar em línguas que não aprendeu, saber de fatos fora do que seria plausível para a pessoa em questão, etc.). O exorcismo (solene), vale lembrar, perfaz uma série de orações imperativas e ameaçadoras, nas quais se interpela diretamente o demônio.
OBS: Existe diferença entre Lúcifer e Satanás (ou Satã)? Não, as duas palavras se referem ao maior entre os demônios, só que destacando erros diferentes vinculados ao orgulho e, portanto, ao pecado que normalmente se considera a causa da queda dos anjos.
Percebam o seguinte, as duas máximas ilusões dos filósofos, ao longo dos tempos, foram essas: uns pretenderam transcender a totalidade e julgá-la, outros decretaram que nada podemos saber sobre a transcendência. Uns quiseram nos transformar em deuses; outros, em bichinhos inermes separados da transcendência por fronteiras cognitivas intransponíveis.
Na Bíblia, esses dois erros fatais da inteligência humana já estavam anunciados com muita precisão. A ilusão de julgar o mundo enquanto se está dentro dele é o “conhecimento do bem e do mal” que a serpente promete a Eva. O muro que veda o acesso à transcendência é a “insensatez” que limita a visão da existência à esfera do imediatamente acessível.
Esses dois erros têm nomes técnicos tradicionais, derivados da mesma raiz: gnosticismo e agnosticismo. O primeiro promete a posse de um conhecimento impossível; o segundo inibe e frustra a aquisição de um conhecimento possível. Correspondem a dois nomes do demônio: Lúcifer e Satã. O demônio da falsa luz e o demônio das trevas falsamente triunfantes. O demônio do conhecimento errado e o demônio da ignorância soberba.
Conclusão
Encerro aqui o estudo que nos conduziu da maravilhosa realidade dos anjos de luz à tenebrosa dos anjos decaídos; da fidelidade e amor enlevado a Deus dos primeiros à revolta desesperada dos segundos; da solicitude dos anjos por nós homens ao ódio implacável que nos têm os demônios.
Invoquemos, pois, Maria Santíssima, a Rainha dos Anjos e Terror dos demônios (Gênesis III, 15) para que possamos auferir o melhor, espiritualmente falando, do conhecimento exposto.
E mandará os seus anjos com trombetas e com grande voz, e juntarão os seus escolhidos dos quatro ventos, duma extremidade dos céus até à outra. (Mateus XIV, 31)
Bibliografia
BOULANGER. Doutrina Católica – Primeira Parte – O Dogma. Livraria Francisco Alves, 1927.
SOLIMEU, Gustavo Antônio; SOLIMEU, Luiz Sérgio. Anjos e Demônios – A Luta Contra o Poder das Trevas. São Paulo: Editora Artpress, 1996.
Entre Lúcifer e Satanás. Acesso em 15 de abril de 2017.
Uma resposta em “Processões externas de Deus: o mundo angélico”
[…] [6] Para a elaboração deste tópico utilizamos a ST. I, qq. 52, 107, 110-112; confira também. […]