Um ótimo texto do tradutor José Francisco Botelho (Veja, 17 de maio de 2017):
Alguns meses atrás, um interlocutor bastante perspicaz me perguntou por que dedico tanto tempo e energia à tarefa de traduzir clássicos da literatura. A questão, na verdade, foi elaborada com menos palavras e mais pungência: “Por que você faz isso consigo mesmo?”, Meu amigo pressupunha, de forma bastante razoável, que os espinhos do ofício sejam bastante afiados e que não raro nos machuquem os dedos. Não pretendo ostentar cilícios nem posar de flagelante, mas a pergunta está longe de ser ociosa: se vamos nos dedicar à escrita, por que nos prender às sombras do passado? Não seria mais simples dizer de uma vez o que queremos sobre o nosso tempo e a nossa vida? Felizmente, não tenho de responder sozinho a essas questões perturbadoras: no que se refere à tradução dos clássicos, nossa língua vive um momento de ebulição. Intrépidos desbravadores buscam novas edições para textos canônicos, redescobrindo frescor e surpresa em território que pensávamos conhecer muito bem; ou nos revelam grandezas que só podíamos entrever ou imaginar, em obras nunca antes vertidas para o português. Em todos esses casos, a provocação persiste, oh amigos e amigas cravejados de espinhos: por que insistimos em dar voz aos mortos – e, ainda mais, numa hora destas?
Alguém há de perguntar, com justiça, o que eu entendo por “clássico”. Esta conversa merece ser longa, mas fiquemos, por ora, com duas definições – ambas, por seu próprio mérito, clássicas. A primeira é do grande crítico francês Charles-Augustin Saintr-Beuve (1804-1869). Para ele, o autor clássico é aquele que “falou a todos nós em seu estilo próprio e peculiar, um estilo que se revela também do mundo inteiro, um estilo ao mesmo tempo novo e antigo, facilmente contemporâneo a todas as idades”. A segunda, mais sucinta, é do italiano Ítalo Calvino (1923-1985): “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.
Além de pressupor que certos livros continuam tendo coisas a nos dizer, o ato de traduzir um clássico aponta, no meu caso, uma crença correlata: a de que ainda é frutífero e desejável que se digam certas coisas, e que essas coisas são dizíveis apenas pela literatura. Não bastam os aparatos acadêmicos, os comentários, os estudos sociológicos, as decifrações e as autópsias de todo gênero é preciso que certas obras se tornem clássicas para que as pessoas de hoje, por meio do contato, da imersão, da redescoberta. Conta o mito grego que as almas dos mortos, arrebanhadas no mundo subterrâneo, só recobravam o dom da fala após beberem o sangue dos vivos; nada mais justo que desçamos, de tempos em tempos, à gruta do Hades, para regar com algumas gotas quentes o solo do Além. É improvável que os mortos venham gritando e uivando, como fizeram ao cercar Ulisses. Mas, com a devida atenção, podemos ouvi-los falar: descobriremos que, de forma estranha, o tempo deles também é o nosso. E quem sabe juntos consigamos postergar, sabe-se lá até quando, nosso mergulho no rio do esquecimento.