
O Kyrie eleison oferece uma distinção interessante entre a Missa no rito romano tradicional e a no rito paulino, mas a sua história também oferece um desafio interessante aos mitos contemporâneos sobre o desenvolvimento litúrgico. Muitas vezes se supõe que o Kyrie é um resquício da época em que a Missa era rezada em grego e, portanto, um sinal para nós de que, assim como a Missa foi mudada do grego para o latim, ela deveria ser mudada para o vernáculo. Nada poderia estar mais longe da verdade.
Ele foi introduzido na liturgia romana quando ela já era celebrada em latim há muitos anos. Não aparece em nenhum lugar do relato de São Justino Mártir e não está presente na liturgia norte-africana que seguia de perto o rito romano. Nenhum dos antigos escritores latinos, como Tertuliano ou São Cipriano, menciona o Kyrie, nem Santo Agostinho, que é posterior a eles. De onde o Kyrie veio então? Segundo alguns, São João Crisóstomo o introduziu na liturgia de Constantinopla, e a partir daí ele foi popularizado e adotado em outras liturgias. Por ser grego, em vez de ser traduzido para o latim, foi importado exatamente como estava. Aparece pela primeira vez nas liturgias galicanas, que eram uma liturgia oriental trazida para o Ocidente pelos patriarcas de Milão, e na liturgia romana os primeiros registros são do século VI. Nos ritos gregos fazia parte de uma ladainha, enquanto no Ocidente a forma de sua introdução alternava com a invocação Christe eleison, algo não visto na liturgia grega, ou em qualquer outra liturgia ocidental, exceto a moçárabe.
O mito de que o Kyrie eleison seria um remanescente de uma época em que a liturgia romana era celebrada em grego nada mais é do que um exemplo de pesquisas mal feitas e falsas suposições dos que estavam ansiosos para impor uma liturgia vernácula à Igreja às custas de sua tradição, e deveria ser dispensado como um absurdo. O Kyrie deriva da influência de uma liturgia grega estrangeira, uma vez que a liturgia romana já havia adquirido sua forma latina.
Em segundo lugar, o Kyrie no Novus Ordo representa um desenvolvimento retrógrado, não para a Igreja primitiva como se supõe (com base na fantasia de que o rito paulino seria a restauração de uma forma de liturgia primitiva), mas sim, ironicamente, como veremos, para a alta Idade Média. A Missa tradicional em latim revisada por São Pio V removeu todos os tipos de criações locais em relação ao Kyrie e restaurou o antigo uso do rito romano de 3 Kyrie eleisons para Deus Pai, 3 Christe eleisons para Deus Filho e 3 Kyrie eleisons para Deus Espírito Santo, sem invocações, sem tropos, sem acréscimos à oração para preencher o canto. Isso se enquadra perfeitamente no aspecto trinitário das orações. Ora, o costume medieval, que a reforma de Pio V pôs de lado, era no sentido contrário, concretizando-se no uso um dispositivo musical denominado “tropo“, que consistia no preenchimento de um texto de notas longas com outras palavras e invocações.
Isso não se limitou ao Kyrie, mas também se concretizou no Gloria, no Agnus Dei e em muitas das antífonas e sequências (foram inovações úteis no seu início). O estilo seria mais ou menos assim: Kyrie eleison, redemptor mundi et rex Creationis, Christe eleison filius David, etc. Ou funcionaria de outra maneira: Princeps pacis qui salvare nos venire, Kyire eleison, Redemptor mundi Kyrie eleison, ou novamente, Precamur te Domine, Christe eleison, etc. É possível que a origem do tropo esteja na tradição da ladainha do rito galicano, que continuou ininterrupta em alguns lugares, apesar de Carlos Magno. Os nomes de certos kyries, como o Orbis Factor, vêm do primeiro tropo dos cantos do Kyrie na Idade Média; um exemplo (Orbis Factor de Eleanor da Bretanha):
Orbis factor rex aeterne, eleison
Kyrie eleison
Pietatis rex imenso, eleison
Kyrie eleison
Noxas omnes nostras pelle, eleison
Kyrie eleison
Christe qui lux es mundi dator vitae, eleison
Christe eleison
Arte laesos daemonis intuere, eleison
Christe eleison
Conservans te credentes confirmansque, eleison
Christe eleison
Deum scimus unum atque trinum esse, eleison
Kyrie eleison
Patrem tuum teque flamen utrorumque, eleison
Kyrie eleison
Clemens nobis adsis paraclite ut vivamus in te, eleison
Kyrie eleison
No caso de alguém ficar curioso com a natureza bizantina do som do tropo, isso se deve ao fato referido no começo do texto dos cantos litúrgicos do Norte da Europa se basearem na tradição oriental transmitida ao Ocidente por meio do rito galicano (que, segundo a maior parte das fontes, é uma liturgia oriental com origem antioquena, e que mais tarde se fundiu com a tradição romana incentivada por Carlos Magno). No entanto, na alta e no final da Idade Média, a prática dos tropos ficou fora de controle, o número e a enormidade dos textos eram ridículos e até algumas heresias começavam a ser introduzidas. Sendo o caráter principal do rito romano a nobre simplicidade, a reforma de São Pio V achou por bem eliminar seu uso. Pode-se dizer com razão que a reforma impôs o uso romano (que nunca usou essas interpolações) a toda a Igreja.
Para comparar, esquecendo as traduções nacionais, ou os múltiplos abusos existentes em relação ao Kyrie, vamos direto ao latim do Novus Ordo. Existem basicamente duas opções sobre ele. Primeira: Kyrie eleison duas vezes, Christe eleison duas vezes, Kyrie eleison duas vezes. Por que apenas duas vezes? Se vamos falar de tempo, quanto tempo realmente é economizado ao se retirar uma invocação extra para cada Pessoa da Santíssima Trindade? Não se está apenas reduzindo a honra prestada a Deus, mas também se reduzindo um belo simbolismo para os fiéis. Não há uma boa razão para esta mudança.
Vejamos outra opção para o Kyrie no Novus Ordo:
Postea sacerdos, vel diaconus vel alius minister, sequentes, vel alias, invocationes cum Kyrie, eléison profert: Qui missus es sanáre contrítos corde: Kyrie, eléison.
Populus respondet: Kyrie, eléison. Sacerdos: Qui peccatóres vocáre venísti: Christe, eléison. Populus: Christe, eléison. Sacerdos: Qui ad déxteram Patris sedes, ad interpellándum pro nobis: Kyrie, eléison. Populus: Kyrie, eléison.
Assim, o que o Novus Ordo fez foi reintroduzir um elemento estranho ao rito romano, a interpolação textual, que foi expurgada depois da Idade Média! Exatamente o contrário do que seus propagandistas afirmam (“volta ao primitivo”).
Em todo caso, se um padre escolher a opção mais próxima do tradicional, ele, ainda assim, não poderá dizê-la (ou cantá-la) segundo o modo que sempre foi o normal no rito romano: três referências a cada Pessoa Divina (isso mesmo nos tropos medievais).
Tradução e adaptação de um texto de Ryan Grant, colhido do site Unam Sanctam em 2010 que, por sua vez, o tinha retirado do site Athanasius Contra Mundum, sob o título “Forgetting ICEL: The Kyrie”. Esses posts originais se perderam, mas felizmente eu tinha guardado o conteúdo para futura tradução.