Tradução do texto de uma palestra dada pelo Dr. Peter Kwasniewski na conferência Paix Liturgique, Roma, em 28 de outubro de 2022 e que foi mais tarde publicada pela Catholic Family News. Esta palestra representa basicamente aquilo que penso sobre o tema da obediência no atual contexto de crise da Igreja, me afastando de neoconservadores e sedevacantistas, embora que sem aderir a todas as consequências práticas defendidas e tomadas pelo autor.

Sempre que os tradicionalistas se opõem ou rejeitam uma determinação papal específica sobre a liturgia — seja a criação de novos livros litúrgicos ou a limitação severa do uso de ritos costumeiros — nossos oponentes neoconservadores [e também os sedevacantistas] estão prontos para nos atacar com uma bateria de textos extraídos de papas como São Pio X ou Pio XII, ou do Vaticano II, ou de manuais neoescolásticos, no sentido de que “o papa tem o direito de mudar a liturgia, instituir este ou aquele rito como quiser” etc., porque, como o Vaticano I ensina, ele tem jurisdição suprema, universal e imediata sobre a Igreja. Obviamente, há alguma verdade em tal afirmação, mas ela não prova tanto quanto aqueles que a dizem pensam que prova.
Primeiro, qualquer declaração como essa é governada por certas normas implícitas. Por exemplo, que o Papa pode instituir ou alterar ritos nunca foi tomado como significando que ele pode abolir um rito completamente, por exemplo, um dos ritos orientais da Igreja sobre o qual ele é tecnicamente o chefe supremo com autoridade jurídica universal e imediata. E se ele fizesse isso, os católicos bizantinos estariam totalmente dentro de seus direitos de ignorar sua ação completamente e continuar como se nada tivesse mudado. Há abusos ou usos indevidos de autoridade que cancelam sua ação, e somos capazes de formular critérios para tais casos.
Segundo, o Papa pode, sem dúvida, ter autoridade para instituir novos ritos, mas estes seriam suplementares e não contraditórios aos ritos tradicionais. Coloque desta forma: a única base sobre a qual um Papa pode justamente introduzir uma nova edição de um livro litúrgico que suplanta uma edição anterior é se houver continuidade manifesta entre os livros antigos e novos, de modo que se possa dizer com sinceridade: “É o mesmo livro, apenas aumentado com novas festas, ou editado de maneira mais condensada, ou expurgado de erros tipográficos”, etc. É por isso que podemos dizer que cada editio typica ou edição oficial do Missal de São Pio V — a editio de 1604 de Clemente VIII, a de 1634 de Urbano VIII, a de 1884 de Leão XIII e a de 1920 de Bento XV — ainda é o mesmo Missal, contendo o mesmo rito romano. Quando, no entanto, chegamos às severas alterações de Pio XII à Semana Santa, que fizeram seu caminho para a editio typica de João XXIII, já estamos olhando para uma situação seriamente problemática: não é possível afirmar que a Semana Santa pacelliana está essencialmente em continuidade com a tradição cumulativa precedente. Então, no Missal de 1962 já há uma “rachadura” comprometedora na estrutura, por assim dizer, e isso foi interpretado por muitos liturgistas na época como a antecipação de (e convite para) uma alteração total, uma mudança substancial, ainda por vir. Quando chegamos ao Missal do Novus Ordo, no qual apenas 13% do material eucológico ou do texto de oração é idêntico ao que é encontrado no missal de 1962, estamos manifestamente lidando com um Missal diferente, tendo, é claro, algumas semelhanças genéricas, mas certamente não “na mesma linha” de desenvolvimento, nem outro indivíduo da mesma espécie. Portanto, é um novo rito da Missa (e o mesmo pode ser dito dos outros novos ritos sacramentais), e assim logicamente sua introdução não ab-roga ou anula o antigo rito da Missa; ele simplesmente se junta a ele como um irmão (novamente, estou dando aqui a interpretação mais positiva possível). De maneira alguma, a forma ou a maneira das ações de Paulo VI poderia ser interpretada como uma substituição de um Missal romano por outra edição dele. E ele mesmo parece ter reconhecido esse fato muito claramente porque, pela primeira vez, ele não incluiu a bula Quo Primum de São Pio V no cabeçalho de seu Missal, significando que ele não pertence mais à família de missais inaugurada (mas não criada) em 1570. Como disse o Cardeal Alfons Stickler:
Não pode… escapar aos especialistas da antiga liturgia a grande distinção que existe entre o corpus traditionum, que estava vivo na antiga Missa, e o Novus Ordo artificial — para a decidida desvantagem deste último. Pastores, estudiosos e fiéis leigos notaram isso, é claro; e a multidão de vozes opostas aumentou com o tempo… Está se tornando cada vez mais claro que o radicalismo dos reformadores pós-conciliares não consistiu em renovar a liturgia católica de suas raízes [como se poderia fazer aplicando um fertilizante bem escolhido], mas em arrancá-la de seu solo tradicional. [A reforma] não retrabalhou o rito romano, o que foi solicitado a fazer pela Constituição da Liturgia do Vaticano II, mas o desenraizou. [1]
Os hiperpapalistas ignoram o registro histórico
Os apologistas hiperpapalistas — aqueles que defendem a ideia de que o Papa tem um poder virtualmente ilimitado para mudar a liturgia [2] — estão errados precisamente por causa da maneira como enquadraram a conversa. Começar colocando a liturgia na mesa de operação como um paciente anestesiado com o Papa como cirurgião-chefe é começar com um erro tão fundamental que não será possível evitar uma cascata de conclusões absurdas [3]. A crença de que a liturgia é o “brinquedo do Papa” (para usar a expressão colorida do bispo Mutsaerts) está fora de questão antes que qualquer discussão comece, então não precisa haver uma investigação laboriosa sobre se ele pode destruir seu brinquedo ou substituí-lo por um brinquedo de que goste mais. Na verdade, os hiperpapalistas nunca parecem se fazer uma pergunta muito simples: se o que eles afirmam fosse verdade, então por que nenhum Papa antes dos tempos modernos se comportou como se assim fosse? Em outras palavras: como se explica o fato de que, de 266 papas, apenas um punhado fez mudanças significativas nos ritos litúrgicos, enquanto a vasta maioria se contentou em passar adiante o que recebeu, com um conservadorismo padrão? E daqueles que fizeram as mudanças mais significativas, por que deveria ser o caso de que a maioria delas está concentrada no século XX, na verdade, na segunda metade do século XX? E podemos explicar por que, se pegarmos todas as mudanças dos papas anteriores a Paulo VI e as juntarmos, elas ainda pesariam menos na balança do que aquelas que Paulo VI sozinho impulsionou?
A julgar pelas ações e palavras dos papas (isto é, quando eles falavam sobre isso) e pela prática geral da Igreja, a impressão que se tem da história católica é que os ritos sagrados — não apenas a “forma e a matéria” dos sacramentos — são uma herança sagrada a ser reverenciada e seguida com humildade. A ideia de que um Papa, especialmente após um longo período de estabilidade, poderia elaborar novos ritos do zero era impensável. Então, o problema que tenho com alguns dos apologistas de hoje que desenterram velhos escolásticos que falam longamente sobre como o Papa pode fazer praticamente tudo o que quiser com a liturgia é que eles — tanto os apologistas quanto os escolásticos, neste ponto — estão agindo como intelectuais de torre de marfim que estão defendendo um princípio que, de fato, é irrelevante para o registro histórico real e a vida da Igreja. Se um Papa mudasse tudo, exceto a matéria e a forma de um sacramento, ele mereceria condenação total de um ponto de vista eclesiológico, antropológico, espiritual e de todos os outros, independentemente de quaisquer argumentos que pudessem ser feitos para sua suposta “autoridade” para fazê-lo. Nem o povo cristão teria tolerado algo assim em tempos mais saudáveis, antes que a corrupção mental do hiperpapalismo tivesse infectado seus cérebros e os cérebros dos papas com um positivismo legal que destrói hábitos da mente e afeições do coração.
Não deveríamos levar mais a sério o fato de que por quinze séculos (é um tempo bem longo, você sabe) a Igreja foi capaz de prosseguir em sua vida litúrgica sem a necessidade de um Missal centralmente ajustado e promulgado pelo Papa? Por quinze séculos, a cristandade teve dezenas de milhares de missais espalhados em dezenas de milhares de altares, copiados à mão de uma geração para a outra, sem o nihil obstat e o imprimatur (por assim dizer) do Pontífice Romano. Não estou dizendo que não houve uma situação de emergência que exigiu os movimentos centralizadores do Concílio de Trento e de São Pio V, mas sim que podemos ver em três quartos da história da Igreja que a liturgia era obviamente algo que pertencia (e era visto como pertencente) à Igreja como um todo. Não era propriedade de ninguém para se dispor, mas a herança privilegiada de todos para ser recebida e transmitida. Certamente o Papa pode inserir-se neste processo, mas precisamente sob a condição de que ele também, como membro da Igreja, um recipiente da tradição e um guardião do status ecclesiae, não trate a liturgia como sua própria propriedade (com possibilidade de alterá-la radicalmente ou aboli-la [4]). É por isso que alguns autores mais antigos dizem que o Papa poderia se tornar “cismático” ao atacar os ritos da Igreja [5]. Não é simplesmente uma questão simplesmente de validade, que é o que uma mentalidade materialista e reducionista consideraria suficiente ou talvez exaustiva; é sobre a posição honrosa dos ritos de adoração divina aos olhos de Deus e da Igreja, o que os dota de uma certa prioridade sobre qualquer membro da Igreja. É por esta razão que um católico deve preferir ter alguém como Alexandre VI como Papa em vez de Paulo VI ou Francisco. Alexandre pode ter sido um homem mau, moralmente falando, mas ele não ousou tocar nos ritos tradicionais da Igreja. Ele celebrou a Missa papal com respeito aos rituais e rubricas, como qualquer católico fiel faria.
O que estamos lidando, suponho, é uma falha tipicamente moderna (iluminista, liberal, individualista, secularista) em entender ou mesmo reconhecer o conceito de tradição como tal. Que espaço há para paradosis ou traditio em uma visão de mundo de nominalismo e voluntarismo, onde o rito romano pode ser o que o Papa diz que é, independentemente da continuidade ou ruptura com o passado? Parece obliterar qualquer significado positivo para a história cristã em si, vendo apenas o momento presente como tendo algum peso. A razão pela qual os papas não agiram de acordo com as teorias de Franzelin (ou quem quer que seja) é que eles realmente tinham uma compreensão saudável, herdada, quase instintiva, de que os ritos são uma expressão da fé viva da Igreja e da obra do Espírito Santo ao longo dos séculos. Mudá-los substancialmente seria, portanto, minar a estabilidade da lex credendi e rejeitar os dons da Providência [6]. Nem é preciso dizer que este é um crime grave.
Quo Primum vs. Vaticano II
Com essa perspectiva em mente, voltemos ao grande Papa São Pio V. O Missale Romanum que ele promulgou em 1570 não era, como todos sabem, um livro novo, mas um que definitivamente incorporava e representava a tradição milenar cumulativa de Roma, bem como a confissão dogmática do Concílio de Trento, que esse Missal consagrou para todos os tempos e lugares. É por isso que a Quo Primum não é “meramente disciplinar” por natureza: Pio V estava canonizando o rito romano da Missa porque ele contém e transmite perfeitamente a autêntica fé católica, contra os erros dos protestantes (e muitas outras heresias, desde os tempos antigos até hoje). Em contraste, o Vaticano II, embora um concílio válido, não definiu nada dogmaticamente e não anatematizou nenhum erro. Portanto, é impossível ver o novo Missal de Paulo VI como uma síntese dogmática ordenada por um concílio dogmático. Além disso, quase todo mundo agora está ciente da enorme lacuna entre o que o Concílio Vaticano II pediu e o que Paulo VI aprovou, o que significaria que, por qualquer padrão racional objetivo, a Missa de Paulo VI não pode nem mesmo ser considerada “a Missa do Vaticano II”.
Além disso — e este é o ponto crucial — se a suposta “Missa do Vaticano II” é tão diferente da “Missa de Trento” (ou, em outras palavras, a Missa de toda a tradição latina) que não pode ser celebrada pelos mesmos padres e pelos mesmos fiéis, mas deve definitivamente substituir, suplantar e cancelar a antiga liturgia, então deve ser uma falsa liturgia, que se afasta da tradição, do testemunho dos santos, concílios e papas que a usaram antes e confessaram a única Fé verdadeira por meio dela.
Se levarmos a sério a afirmação do Papa Francisco na Traditionis Custodes — de que há apenas “um único rito romano” — ela não tem o efeito de cancelar a antiga Missa; tem o efeito, ao contrário, de cancelar a nova Missa, bem como sua própria autoridade (pelo menos em relação a esse assunto). É um exemplo brilhante de alguém serrando o galho em que está sentado: não se pode declarar que a tradição litúrgica passada não reflete mais a teologia da Igreja sem implicar necessariamente que essa teologia mudou de maneira tão decisiva que não é mais essencialmente a mesma. Em suma, a Igreja teria alterado fundamentalmente sua lex credendi, e então uma nova lex orandi foi necessária. Mas se isso for verdade, então a “nova teologia” e o “novo culto” são falsos e devem ser rejeitados. Em suma, a autoridade papal tem que ser pelo menos logicamente consistente e teologicamente coerente, e se for obviamente o contrário, ela se autodestrói [7].
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A autoridade papal em tempos de crise doutrinal
Dizemos, então, que Francisco não tem autoridade? Que ele não é Papa? Se ele é Papa, certamente seus documentos são magisteriais e suas determinações — como um motu proprio sobre a lei litúrgica — têm força? A isso, respondo com o Pe. John Hunwicke que São John Henry Newman nos ofereceu um poderoso princípio explicativo quando falou da “suspensão” da autoridade episcopal durante a crise ariana, na medida em que a maioria dos bispos não professava mais abertamente e transmitia a Fé Católica na divindade de Cristo. O Pe. Hunwicke diz que em nosso tempo, o magistério do Papa, analogamente ao dos bispos arianos ou semiarianos ou cúmplices, está em um “estado de suspensão”. Pelo menos em relação a questões nas quais o Papa se desviou, seus ensinamentos e seus decretos são vazios, nulos, sem força, sem fundamento; eles são impedidos por defeitos intrínsecos de entrarem em vigor. Isso pode ser argumentado sobre um grande número de declarações e ações do Papa Francisco na última década. Michael Charlier explica bem esse ponto:
Presumimos que, devido ao estilo de governo argentino, descrito com precisão por Gagliarducci, o magistério papal está atualmente em estado de suspensão. O Papa fala e escreve muito; parte concorda com o Magistério tradicional da Igreja, parte o contradiz diretamente e parte escapa à classificação imediata por causa de sua incoerência. Lidar com essa situação é pouco familiar e altamente irritante para os católicos, mas de forma alguma impossível, e sem sucumbir à ilusão de um “Magistério em fluxo constante” criado por Francisco.
Para resumir, quando Francisco repete algo que a Igreja sempre ensinou, ficamos felizes em ouvi-lo sem reconhecer nele um magistério do próprio Papa. Não é nada além de tradição ininterrupta. Onde ele diz algo que contradiz diretamente o Magistério e a Tradição, tomamos nota disso com desgosto como sua opinião pessoal — uma opinião, no entanto, que não vincula os católicos de forma alguma. E onde ele diz algo que parece incompreensível ou incoerente, reconheceremos nisso — na melhor das hipóteses — um ímpeto para reflexão.
Nesta reflexão sobre as contradições papais, no entanto, em nenhum caso nos deixaremos guiar pela construção ridícula de seu colega jesuíta Spadaro de que “em teologia 2 + 2 também pode somar 5.” Teologia não é matemática, isso é verdade; mas “2 + 2 = 5” é em qualquer caso um absurdo, é uma inverdade e, portanto, uma blasfêmia contra a ordem divina. Tal coisa não pode se tornar o conteúdo da autoridade de ensino eclesiástico, mesmo que um Papa o diga.
Nesta conexão, vale a pena trazer à tona uma distinção fundamental feita pelo Pe. Chad Ripperger. Ele diz que em um período de tempo em que alguns documentos eclesiais não têm mais “nenhuma conexão com as posições mantidas pelo Magistério antes do Concílio Vaticano II”, o católico se depara com uma escolha: ele deve ser um “positivista magisterial” que acredita que “tudo o que o Magistério atual diz é sempre o que é ‘ortodoxo’”, ou um “tradicionalista” que toma “a Escritura, a tradição intrínseca, a tradição extrínseca e o Magistério atual como os princípios de julgamento do pensamento católico correto”. O positivista está pronto para mudar de ideia — literalmente para se contradizer ou contradizer qualquer fonte autoritativa do passado, incluindo definições dogmáticas e monumentos imemoriais de fé — se uma autoridade disser que ele deve fazê-lo, enquanto o tradicionalista recebe e respeita todas as fontes, de acordo com seu peso, vendo-as como testemunhas permanentes da verdade. Pe. Ripperger diz que cada um de nós deve tomar uma posição: Acredito que “[o mais novo] é necessariamente melhor… porque é presente (hegelianismo), porque vem de nós (imanentismo)”, ou “mantenho a tradição extrínseca como algo bom, algo que é o produto da sabedoria e do trabalho dos santos e da Igreja ao longo da história”? [8]
Assim, quando alguém nos desafia: “Vocês sabem mais do que o Papa?”, nossa resposta é bem simples: “Ora, sim, neste assunto, certamente sabemos”. Assim como Santo Atanásio de Alexandria (e todos os leigos que o apoiaram) sabiam mais do que o Papa Libério; como Justiniano sabia mais do que o Papa Vigílio; como o Rei Filipe VI de Valois sabia mais do que o Papa João XXII; como os leigos franceses sabiam mais do que o ralliement de Leão XIII ao governo maçônico anticlerical; assim também os leigos, clérigos e religiosos tradicionalistas sabem mais do que Paulo VI na sua “reforma litúrgica” ou mais que Francisco no seu ataque ao bem comum do Povo de Deus. Não precisamos nem ser metade tão inteligentes ou corajosos quanto nossos antepassados no movimento, que, a partir de meados da década de 1960, previram os desastres que se abateriam sobre a Igreja se a reforma continuasse na direção que Paulo VI havia estabelecido. Hoje, mais de cinquenta anos após a infame promulgação do Novus Ordo Missae e das demais novidades, podemos ver com nossos próprios olhos chocados e ouvir com nossos ouvidos agredidos a catástrofe global, a abominação da desolação, que substituiu o culto divino católico e afastou milhões de batizados. Não vou aborrecê-los com o tipo de estatísticas e histórias de horror com as quais todos nós, tenho certeza, já estamos muito familiarizados.
Obviamente, o equivalente a “2+2=5” no domínio litúrgico é a afirmação de que “os livros litúrgicos promulgados por São Paulo VI e São João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a expressão única da lex orandi do Rito Romano”. Trata-se, claro, de uma citação de Traditionis Custodes. É um completo absurdo, uma mentira e, portanto, uma blasfêmia contra a ordem divina.
Assim como o hábito de mentir começa com “mentiras brandas” e evolui para mentiras maiores e mais numerosas, ganhando força ao longo do caminho como uma pedra rolando morro abaixo, também, partindo dessa falsidade primordial, o Papa Francisco, o Cardeal Roche e outros inimigos da herança litúrgica da Igreja ganham força ao buscarem a eventual abolição e extinção do usus antiquior da face da Terra. No entanto, sabemos bem, como Joseph Ratzinger disse muitas vezes, que é contrário ao espírito da Igreja abolir ou perseguir ativamente qualquer um de seus ritos ortodoxos. Toda a estrutura da Traditionis Custodes e da Responsa ad Dubia é construída com base na suposição de que os ritos da Igreja são um brinquedo do Papa [9]. Todas as outras estruturas baseadas nessa noção errônea do poder papal são igualmente inválidas. Ao lidar com as consequências desses documentos, podemos ser “prudentes como as serpentes e inocentes como as pombas” (Mateus X,16), ou seja, ser pragmáticos e encontrar soluções alternativas e compromissos temporários, mas nunca devemos esquecer que há questões de verdade em jogo. Comprometer a verdade por conveniência ou conforto é covarde e indigno dAquele a quem desejamos servir, Aquele a quem o ofício das Completas chama de Deus veritatis. Gabriel Marcel observa: “A bravura não consiste, de modo algum, em iludir-se sobre uma determinada situação. Ela atinge seu ápice, ao contrário, quando a situação é mais claramente apreciada” [10]. Apreciemos claramente nossa situação, para que possamos agir com coragem.
Manipulando a lei e a obediência
Lembre-se: os bandidos no comando usam a lei como arma e a obediência como arena para manipulação psicológica. Motu proprios e similares são, para eles, cortinas de fumaça para suas agendas. Eles não se importam com a coerência lógica. Não se importam em seguir as regras que eles próprios estabelecem (como podemos ver quando Francisco, ao remover arbitrariamente bispos dos quais não gosta, se recusa a seguir o devido processo canônico, violando as próprias regras que ele aprovou). Eles não se importam com a unidade ou com o bem das almas. Eles se importam com o poder sobre as pessoas e usarão esse poder para promover um neocatolicismo modernizado. Um comentarista canadense aponta, com razão:
As pessoas que fazem essas coisas — este Papa e seus colaboradores — nunca em suas vidas foram restringidas pela letra de nenhuma lei, nem civil/secular, nem moral, nem divina, nem mesmo por qualquer lei que eles próprios tenham escrito. São pessoas de mentes criminosas, tendo apenas seus próprios objetivos e propósitos diante de si.
Esta é a chave que precisamos entender: eles sabem que a lei é importante para as pessoas que estão atacando, e é por isso que a usam como arma contra os fiéis restantes. Mas eles próprios não se importam com a lei e não a entendem. Eles têm uma visão completamente prescritiva, determinista e positivista da lei. A mente de um tirano é como a mente de uma criança de seis anos: a lei é o que está escrito e você deve obedecê-la. Não existe “lei superior”, nenhum conceito de que a lei serve a um conjunto superior de propósitos ou [tem] princípios que a conduzem ou guiam. Embora recitem alegremente tais panaceias, nenhum deles jamais concebeu leis como servas de um bem maior. Lei = poder. [11]
Sabendo disso — sabendo que os governantes da Igreja estão abusando de sua autoridade e usando o direito canônico como arma — também sabemos que nossa resistência baseada em princípios não é uma questão de “ser desobediente”. É reconhecer com a fé e a razão o que é inerentemente certo e fazê-lo, no temor e no amor de Deus, sem implorar, bajular ou pedir desculpas. A obediência, afinal, sempre se fundamenta na razão e no sensus fidei fidelium. Ela jamais pode contradizê-los, anulá-los ou espezinha-los. Nossos pensamentos e ações devem estar enraizados em princípios verdadeiros, para que possamos evitar ou escapar da armadilha de uma “obediência” exagerada, excessivamente espiritualizada e até fetichizada, que deriva da duvidosa obediência cega perinde ac cadaver cultivada na vida religiosa jesuíta. [12]
Apelo aos padres
Caros sacerdotes de Deus que celebram a Missa antiga e os antigos ritos dos sacramentos, que usam o Rituale Romanum e rezam o Breviarium Romanum: vocês que sabem o que o usus antiquior significa em si mesmo; o que ele passou a significar para vocês pessoalmente; o que ele significa para as pessoas a quem ministram — vocês não podem ficar parados e conformar-se com essa tirania. Sua promessa de “obediência ao bispo” jamais deve servir de pretexto para a tomada modernista da Igreja, que é exatamente o que estamos testemunhando. Não é “a Igreja” ou “o bispo” que está pedindo que vocês renunciem ao que é nobre, grande, belo, santo, verdadeiro, nutritivo para vocês e para os fiéis. Nem Jesus Cristo, que nos concedeu a herança bimilenar da Igreja, nem Sua Noiva imaculada jamais pediriam tal coisa, nem qualquer pastor que ande nas pegadas do Senhor e ame Sua Noiva.
Não, são os “guardas da traição”, custodes traditionis — isto é, os progressistas, liberais e modernistas que ocuparam altos cargos, a máfia lavanda que usa ameaças, chantagem e subornos — estes são os que agora vos ordenam (e que manipulam bispos de escalões inferiores) a rejeitar a sabedoria de Bento XVI, a abandonar os vossos missais e os vossos rebanhos, a rastejar por uma permissão que eles avidamente negarão. Estes homens preferem ver uma Igreja moribunda casada com um Ocidente moderno moribundo do que uma Igreja viva redescobrindo a alegria da sua juventude. Ligar-se a eles é ligar-se à morte e abandonar as fontes da vida espiritual e eclesial.
Sabemos que os liberais, progressistas e modernistas estão errados no que dizem e fazem precisamente por serem acatólicos ou anticatólicos. Os tradicionalistas são aqueles que se esforçam para viver e lutar pelo que é, sempre foi e sempre será católico. Não deixem que os conservadores se safem alegando que existe um paralelo lógico entre, por exemplo, os dissidentes da Humanae Vitae e os chamados dissidentes da Traditionis Custodes. Não há paralelo. As situações são, de fato, contrárias. Obedecemos à Humanae Vitae pela mesma razão que rejeitamos a Traditionis Custodes: isto é, aderimos ao ensinamento e à prática constantes da Igreja, que sempre foi contra a contracepção e sempre a favor da tradição litúrgica.
Há uma mentalidade de positivismo jurídico que precisa ser superada para que o catolicismo floresça novamente. É uma tremenda doença reduzir o tesouro da Fé a um exercício de sala de aula de conectar pontos canônicos ou marcar caixas de conformidade. Há leis e bens superiores em jogo. Assim como a filosofia e a própria razão quase foram asfixiadas pelo positivismo científico, a teologia e a fé estão sendo asfixiadas pelo positivismo jurídico. Digo isso a todos os católicos amantes da tradição em todo o mundo, que estão ou poderão em breve enfrentar restrições injustas e onerosas (como as impostas aos fiéis em Washington, D.C.; Arlington, Virgínia; Chicago e Savannah): sim, rezem por seus bispos, rezem pelo Papa, rezem por seus inimigos e perseguidores, jejuem e rezem para que os demônios sejam expulsos e a paz restaurada; mas não coloque sua própria salvação em risco obedecendo àquilo que nunca deve ser obedecido, àquilo que deve ser resistido se você espera se olhar no espelho e não vacilar porque negou o que sabe ser certo e verdadeiro.
Olhem para os nossos antepassados
Em muitos aspectos, nossa situação é sombria. Será que chegou a hora de nos rendermos ao desespero? Claro que não. Rezemos mais do que nunca. Apoiemos a Missa no rito tradicional e seus padres mais do que nunca. Doemos nosso dinheiro apenas para boas causas. Compareçamos a eventos públicos e protestos. Aprendamos com nossos antepassados amantes da tradição na década de 1970. Nunca desistamos da luta. Inspiremo-nos nos padres lúcidos e corajosos das décadas imediatamente posteriores ao Vaticano II, que se recusaram a cumprir o que sabiam ser desastroso para a vida da Igreja: o brilhante Padre Bryan Houghton; o formidável Padre Roger-Thomas Calmel; o fundador monástico Padre Gerard Calvet; o franco Abade Georges de Nantes; Padre Gommar dePauw; Padre Yves Normandin; Padre George Kathrein; é claro, o Arcebispo Lefebvre; e muitos outros, incluindo padres que tentaram celebrar a nova Missa por um tempo e depois desistiram como uma causa perdida [13]. Temos uma enorme dívida de gratidão com todos esses padres (e alguns bispos também) por manterem a chama da tradição acesa em um momento sombrio, quando quase parecia que, afinal, Aníbal havia conquistado Roma. Graças a eles, podemos dizer hoje: a tradição litúrgica da Igreja Romana nunca foi total e irreparavelmente quebrada; ela continua viva, ao lado do inorgânico e incoerente Rito Montiniano que buscou substituí-la. Sempre foi certo e justo agradecer a Deus pelos heróis que resistiram à ruptura com a tradição, mas agora, após 16 de julho de 2021, devemos expressar nossas dívidas ainda mais. Gostaria de prestar homenagem de maneira particular a Michael Davies, que foi uma grande inspiração pessoal para mim ao assumir o trabalho que venho fazendo há muitos anos. Em uma carta de 1976 ao bispo Hugh Donohoe de Fresno, Califórnia, Davies escreveu as seguintes palavras, que ganharam nova relevância 46 anos depois:
Uma lei pode deixar de ser vinculativa sem revogação por parte do legislador quando for claramente prejudicial, impossível ou irracional. Se proibir os fiéis católicos de honrar a Deus adorando-O no rito mais venerável e sagrado da cristandade não atende a essas condições, seria difícil imaginar algo que atendesse. [14]
Inspirados por “tão grande nuvem de testemunhas” (Hebreus XII,1), estamos nos preparando para um período como o início da década de 1970, quando os amantes da Tradição Católica — a despeito de seus próprios instintos e desejos! — tiveram que se opor aos líderes abusivos da instituição para levar adiante a plena herança dos santos. E essa perseverança, que ignorou obstinadamente a “ação disciplinar”, é o que levou, por fim, à Pax Benedictina, isto é, ao Summorum Pontificum, com seus frutos ainda florescentes. Nas palavras, mais uma vez, de Michael Charlier:
Se Francisco tentar deslocar completamente o rito romano autêntico da Igreja de Roma, e se um ou mais sucessores o seguirem nessa tarefa, a questão surgirá mais cedo do que tarde para todos que sabem que esse rito não pode e não deve ser abandonado: como realizar a manutenção de uma “Igreja do Rito” independente, mesmo que isso traga grandes dificuldades, angústia de consciência e a calúnia de serem “cismáticos”. O reconhecimento de tal Igreja do rito do Papa São Gregório pelo Papa de Roma virá algum dia. Talvez um futuro Gregório XVII já seja seminarista de uma comunidade fiel. [15]
É assim que se apresenta hoje a confiança na Providência Divina: não abandonar a Fé ou suas expressões mais elevadas e nobres porque um Papa ou bispo nos indica, devido ao seu próprio ódio ao passado, quais seriam os referencias de julgamento dos nossos vícios e erros modernos, mas, em vez disso, devemos nos apegar a tudo o que é verdadeiro, bom, belo e santo, confiando em Deus para nos livrar de nossos inimigos, endireitar nossos caminhos e prosperar a obra de nossas mãos. Quando fizermos o que está em nossas mãos, Ele abençoará nossa fidelidade a Ele e erguerá no futuro as estruturas de apoio e reconhecimento que merecemos e desejamos.
Resistência baseada em princípios
A questão do que fazer exatamente é e não pode deixar de ser uma luta intelectual, porque não sabemos o que o futuro reserva, nem para o clero diocesano nem para os institutos da Ecclesia Dei. É minha opinião ponderada que a política da Traditionis Custodes acabará sendo revertida e que os institutos da Ecclesia Dei perdurarão; mas este Papa é capaz de qualquer ato irracional e cruel, e seu sucessor — que Deus o proíba! — pode ser cortado do mesmo saco. Temos que pensar a longo prazo.
Os apologistas neoconservadores do papado parecem pensar que um Papa vilão significa a refutação do próprio catolicismo. Se eles realmente acreditam nisso — e parece que se colocaram nessa situação intelectualmente devido a uma leitura simplista do Vaticano I — então é compreensível que defendam o Papa mesmo quando ele age para destruir aquilo que é obrigado por seu ofício a defender e proteger. Quanto à “saída” desta crise eclesiástica autoimune e sem precedentes, acho justo admitir que nenhuma resposta fácil se apresenta; e nenhuma solução pode surgir por anos ou mesmo décadas. É justo dizer, penso eu, que o catolicismo não pode persistir indefinidamente sem um Papa que realmente faça seu trabalho e, no mínimo, não pratique ativamente a vilania atacando aquilo que deveria defender. Mas me parece que tal estado de disfuncionalidade é possível por um longo período de tempo. Quanto tempo? Não há como saber. No entanto, existem verdades — luminosas, majestosas, imperecíveis, absolutamente confiáveis — que podemos conhecer; que temos o dever de conhecer; e que temos o direito de abraçar, valorizar, agir e transmitir, enquanto construímos nossas vidas sobre a rocha da verdade. Nas palavras comoventes do Padre Kevin Cusick:
Se há algo que é irredutível e irrevogavelmente católico, é a oração oficial, revelada por Nosso Senhor, transmitida sob obediência por Seus Apóstolos, santificada pelo Espírito Santo através dos séculos e oferecida ao mesmo tempo e em todos os lugares por todos. Apenas uma liturgia atende a essa definição: a Missa tradicional em latim. Por essa razão, a forma antiga da Missa é parte integrante, agora e sempre, da Fé Católica. Por isso, nenhum homem, Papa ou leigo, pode alienar os fiéis, por qualquer meio, deste ritual tão sagrado. Não há poder nesta terra que possa violar a Vontade Divina manifestada nesta ou em qualquer outra forma de revelação.
A nova Missa, por outro lado, nunca foi aceita por todos na Igreja, cercada como tem sido desde o início por controvérsias, trazendo consigo abusos desenfreados, escândalos, sacrilégios e perda da fé. A única constante pela qual ela pode ser medida é o declínio contínuo da frequência. Os homens podem tentar [opor-se ao usus antiquior], como já tentaram antes e falharam, mas a Missa de todos os tempos jamais será extirpada da face da Terra, assim como a própria Fé não pode ser apagada. Tudo o que é necessário é a perseverança de uma alma fiel. Há um exército dessas almas que mantém a chama da fé viva em todo o mundo, agora como sempre. [16]
Os oponentes da herança litúrgica ocidental podem trovejar e fulminar, xingar e apontar o dedo, guetizar e demonizar, ameaçar, cancelar, suspender e suprimir — podem tentar tudo isso, como seus antepassados fizeram décadas atrás, após o Concílio, usando as mesmas táticas. No entanto, eles acabarão fracassando, porque aqueles de nós que se apegam à liturgia romana tradicional (e com ela, à fé católica tradicional in toto) o fazem por uma questão de princípio, não como uma questão pragmática de “pegar ou largar”, e somos cada vez mais numerosos — muito, muito mais do que nos dias sombrios da década de 1970. Além disso, nossos inimigos humanos são muito menos diplomáticos e cautelosos quanto às suas intenções; não fizeram nenhuma tentativa de esconder sua agenda modernista. Tornaram fácil para nós enxergarmos suas razões especiosas e desprezarmos seus atos ilícitos. Talvez, em tempos idos, alguns pudessem imaginar que nossas disputas se resumiam a questões litúrgicas, mas agora podemos ver que elas envolvem a integridade e a veracidade da Fé Católica, a unidade da Igreja consigo mesma ao longo do tempo. Esta é, como sempre foi (mas nunca tão claramente), uma batalha pela Fé.
Assim como se diz que o diabo não consegue compreender nenhuma ação humana que brote da humildade, os antitradicionalistas também têm um ponto cego fatal. Devido a impedimentos intelectuais e morais, eles não compreendem o tipo preciso de “apego” ou “adesão” que temos aos ritos tradicionais da Igreja. Como esta é a força secreta do nosso movimento, compensando nossa condição minoritária e nossa relativa falta de recursos materiais, gostaria de me aprofundar nela por alguns instantes.
A natureza e o papel da piedade
A virtude da pietas, a piedade em seu significado mais profundo, é o amor que se tem pelo próprio país em toda a sua beleza e complexidade concretas, a pátria pela qual se está disposto a sofrer e morrer; está obviamente ligada ao amor que se tem pelos familiares, aos quais se está ligado pelos laços mais íntimos de geração, familiaridade, longevidade, homenagem, gratidão e devoção. Temos (ou deveríamos ter) piedade por aquilo que nos amamenta e nutre, nos educa e nos eleva. Somos elos de uma corrente viva que vai para trás e para a frente. Essa piedade é algo tão profundo que mal pode ser descrita com precisão: é tanto psicológica quanto ontológica, tanto nos ossos quanto na alma, uma questão mais do coração do que da cabeça (o que não quer dizer que não se possa argumentar a favor dela quando pressionado; no entanto, palavras nunca lhe farão justiça).
Poderíamos dizer que nosso amor pelo culto tradicional da Igreja é exatamente isso: uma pietas por nossa pátria espiritual como católicos de rito latino ou de rito oriental. Essa piedade é o que anima os católicos que conhecem e amam a liturgia milenar da Igreja. Essa piedade cresce com o tempo, à medida que somos, por assim dizer, enxertados cada vez mais na família dos santos e na sabedoria dos séculos. Não é algum tipo de “preferência” em um mercado de mercadorias, ou um “consolo” que buscamos por motivos egoístas. Depois de um tempo, é simplesmente quem e o que somos como católicos adorando a Deus e amando a beleza de Sua santidade, que experimentamos neste dom inspirador de Sua Providência — e que, à medida que nos aprofundamos na tradição, simplesmente não encontramos nem mesmo no melhor do melhor do Novus Ordo; pois é um rito diferente, uma família e linhagem diferentes, um mundo diferente. Pelo menos é assim que eu descreveria, depois de décadas de experiência em cada um deles — boa parte desse tempo, participando de ambos como regente de coral, até que não pude mais suportar a dissonância.
Abandonaríamos os antigos ritos da Igreja da mesma forma que abandonaríamos nossas mães e pais, nossos maridos e esposas, nossos filhos e filhas. Por estarmos lidando com um vínculo espiritual-ético-existencial no âmago de uma pessoa, podemos ver que os ataques à liturgia latina tradicional estão fadados ao fracasso, em termos gerais, e até mesmo sairão pela culatra. Longe de ser uma batalha por “exteriores”, esta guerra é sobre o que há de mais profundo no coração humano — o lugar onde a fé se torna carne, a beleza se torna vida e a oração se torna real. Temos um apego imediato aos ritos tradicionais que são constitutivos do catolicismo e anteriores à vontade papal (como mencionei anteriormente, a liturgia romana floresceu por quinze séculos antes que qualquer Papa decidisse codificá-la e regulá-la centralmente).
Mas aqueles que estão de fora, que ainda não experimentaram este dom, não podem nos compreender; eles pensarão que é suficiente (ou “deveria” ser suficiente) receber uma ordem de uma autoridade, e então todos nós simplesmente nos alinharemos. Eles pensarão que é suficiente adicionar os “cheiros e sinos”, como se nosso interesse fosse tão superficial quanto o meramente sensível — como se fôssemos materialistas litúrgicos, por assim dizer. Como são tolos, como são cegos! Não culpo os fanáticos e apologistas das novas formas litúrgicas por seu julgamento equivocado de seus irmãos. As novas formas são invenções de época, máquinas de rezar, bugigangas e livros mutáveis à vontade, impostos em um momento e descartados em um momento. Não pode haver devoção profunda, duradoura e comovente a tais coisas, nenhuma pietas. São como peças de roupa que você veste e tira.
Assim, os fiéis adeptos do Novus Ordo — especialmente onde mal foram tocados pelo sonho de Bento XVI de um “enriquecimento mútuo”, que nunca foi mais do que um expediente esperançoso para impulsionar um novo movimento litúrgico (e se observarmos como o Papa Francisco celebra a Missa, veremos que a visão de Bento mal roçou em sua sombra) — esses adeptos do novo rito, em um nível fundamental, não conseguem compreender seus irmãos tradicionais, e é por isso que, ao tentarem “ajudá-los” ou, talvez, “discipliná-los”, continuam a cometer os mais flagrantes erros autodestrutivos e geradores de mártires. Quanto mais se enfurecem contra a tradição, mais propaganda gratuita nos dão, levando mais almas a levantar as questões essenciais que devem ser levantadas e a buscar respostas convincentes, que não serão encontradas nem na ideologia progressista nem no compromisso conservador.
a unidade na adoração é necessária
Concluindo, o Papa Francisco e sua corte afirmam desejar “unidade” no culto da Igreja de rito latino. Concordamos plenamente com ele! Unidade é algo que todos desejamos e precisamos:
Unidade na linguagem: A Santa Missa deve ser celebrada em latim em todos os cantos do mundo católico onde o rito latino existe, para que seja vivenciada como sempre a mesma, sempre familiar: em todos os lugares estamos em casa, em vez de perdidos em uma confusão de traduções.
Unidade no ritual: A Santa Missa deve ser celebrada com beleza, solenidade e ordem, uma oração estável dentro da qual se possa rezar livre e profundamente, sem opções caóticas ou inculturações da moda.
Unidade no clero: A Santa Missa deve ser celebrada de forma fixa, constante e confiável, de acordo com rubricas rigorosas e detalhadas, de modo que faça pouca ou nenhuma diferença qual padre a celebra — em vez de variar enormemente dependendo do grau de reverência, gosto e teologia (ou da falta deles) do celebrante.
Unidade na orientação: A Santa Missa deve ser celebrada voltada para o oriente, com o padre e o povo voltados para a mesma direção, um único corpo olhando com esperança para a vinda do Senhor — não um círculo fechado de humanismo horizontal.
Unidade na música: A Santa Missa deve ser adornada com o mesmo canto sagrado que tem sido cantado há séculos, até milênios — não uma cacofonia de imitações de segunda categoria de estilos modernos.
Unidade na tradição: A Santa Missa deve ser oferecida em continuidade com o culto conhecido por santos e pecadores ocidentais ao longo dos tempos, nossos irmãos e irmãs no Corpo Místico — e não em ruptura com ele.
Esta é uma campanha pela unidade que todos nós, tenho certeza, apoiaríamos com entusiasmo! É, pelo menos em boa parte, a razão pela qual estamos aqui neste fim de semana. Que Nosso Senhor Jesus Cristo, Sumo Sacerdote Eterno, “autor e consumador da nossa fé” (Hebreus XII,2), abençoe e multiplique os esforços dos católicos tradicionais em todo o mundo para ajudar a restaurar à nossa amada Igreja Católica a manifestação visível das marcas que professamos no Credo — unam, sanctam, catholicam et apostolicam — que estão sob tanto ataque das forças das trevas. Que Nossa Senhora sorria para nós, seus filhos, neste vale de lágrimas.
[1] Veja-se: “Recollections of a Vatican II Peritus”, New Liturgical Movement, 29 de junho de 2022.
[2] Veja-se a obra prolificamente hiperpapalista de Michael Lofton. Tim Gordon é um exemplo de alguém que defende a superioridade dos ritos litúrgicos tradicionais, mas simultaneamente defende o poder absoluto de disposição do Papa sobre a liturgia.
[3] Como John Monaco mostra muito bem: “Was the Sacred Liturgy made for the pope, or the pope for the Sacred Liturgy?”, Catholic World Report, 28 de julho de 2021; “Are There Limits to Papal Power?”, Catholic World Report, 13 de outubro de 2021; “The Church of the Papal Fiat,” Crisis Magazine, 20 de janeiro de 2022.
[4] Veja-se Matthew Hazell: “‘All the Elements of the Roman Rite’? Mythbusting, Part II”, New Liturgical Movement, 1 de outubro de 2021.
[5] O Cardeal Juan de Torquemada (1388-1468), por exemplo, afirma que se um Papa deixar de observar “o rito universal do culto eclesiástico” e “se separar com pertinácia da observância da Igreja universal”, ele “pode cair em cisma” e não deve ser obedecido nem “suportado” (non est sustinendus). Para este e outros exemplos, veja minha palestra, “The Pope’s Boundedness to Tradition as a Legislative Limit: Replying to Ultramontanist Apologetics”, Rorate Caeli, 3 de agosto de 2021.
[6] Veja-se: Peter A. Kwasniewski, The Once and Future Roman Rite: Returning to the Traditional Latin Liturgy after Seventy Years of Exile (Gastonia, NC: TAN Books, 2022), pp. 33–77.
[7] A única maneira de um novo rito ter legitimidade é se vier do mesmo Pai (Deus em Sua Providência) e Mãe (a Santa Madre Igreja em sua tradição), e se unir pacificamente aos seus irmãos mais velhos, os ritos tradicionais do Oriente e do Ocidente. Caso contrário, é um bastardo rebelde.
[8] “Conservative vs. Traditional Catholicism,” Latin Mass magazine, Primavera de 2001.
[9] E quando você deixa o Papa fazer da liturgia o seu “brinquedo”, você acaba numa situação em que tudo é politizado. A liturgia não precisa ser um jogo político, mas um Papa pode facilmente transformá-la em algo assim.
[10] Mystery of Being 2:178.
[11] Hilary White, “Don’t be afraid of the Big Bad ‘Traditions Custodes’”, World of Hilarity, 15 de janeiro de 2021.
[12] Veja-se John Lamont, “Tyranny and Sexual Abuse in the Catholic Church: A Jesuit Tragedy”, Catholic Family News, 27de outubro de 2018. Podemos fazer nossa a verdade declarada pelo estoico Epicteto: “Quando apresentados a princípios válidos, trate-os como se fossem a lei e seria um sacrilégio ir contra eles”. Handbook, ch. 50; in Kevin Vost, Memorize the Stoics (Brooklyn: Angelico Press, 2022), p. 97.
[13] Veja-se, inter alia: Fr. Bryan Houghton, Unwanted Priest: The Autobiography of a Latin Mass Exile (Brooklyn: Angelico Press, 2022); Père Jean-Dominique Fabre, Le père Roger-Thomas Calmel, 1914-1975: un fils de saint Dominique au XXe siècle (Suresnes: Clovis Fideliter, 2012); Yves Chiron, Dom Gérard Calvet, 1927–2008: tourné vers le Seigneur (Le Barroux: Éditions Sainte-Madeleine, 2018); Pastor Out in the Cold: The Story of Fr. Normandin’s Fight for the Latin Mass in Canada (St. Marys, KS: Angelus Press, 2021); The Story of Fr. George Kathrein (St. Marys, KS: Angelus Press, 2022); Priest, Where Is Thy Mass? Mass, Where Is Thy Priest?, expanded ed. (Kansas City, MO: Angelus Press, 2004).
[14] “Michael Davies to bishop of Fresno in 1976: ‘My Lord, this is not the action of a good shepherd but a bad bureaucrat’”, Rorate Caeli, 30 de agosto de 2022.
[15] “The amorphous ‘Roman rite’ and the authentic Roman Rite: A keen analysis by Michael Charlier”, Rorate Caeli, 6 de julho de 2022; cf. “Interview with Dom Alcuin Reid on his ordination, his community, the diocese of Fréjus-Toulon, and Desiderio Desideravi”, Rorate Caeli, 15 de julho de 2022.
[16] “The Death of a Parish,” Rorate Caeli, 4 de agosto de 2022.