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Exegese da continuidade na Nostra Aetate

nostraO Concílio pastoral Vaticano II produziu o documento Nostra Aetate, que tratou do relacionamento do catolicismo com outras religiões, como o hinduísmo, o budismo, o islã e o judaísmo. Nele elementos positivos e negativos de cada uma delas foram abordados.

No que tange aos muçulmanos, diz o Concílio que eles adoram o Deus único, vivo e subsistente em si próprio.

Mas como pode ser isso, já que eles não crêem na Trindade e não aceitam Nosso Senhor como filho de Deus? Como podemos dizer que os muçulmanos adoram o mesmo Deus que nós? Vou analisar essa questão me baseando num texto do famoso apologeta Michael Jacob.

Bem, muitos dos críticos da Nostra Aetate passam ao largo da nota que ela faz a carta que o Papa Gregório VII escreveu ao rei Anzir da Mauritânia (Papa Gregório VII, Epístola 21, Migne´s Patrologia Latina). Nela está dito (a tradução é minha e é livre):

Vós e Nós estamos unidos, por uma caridade peculiar, comparada com o resto das nações, pois nós acreditamos e confessamos o Deus único, mas duma maneira diferente, a Quem nós louvamos e veneramos diariamente como Criador do tempo e Governante do Mundo.

Texto original:

Hanc itaque charitatem nos et vos specialibus nobis quam caeteris gentibus debemus, qui unum Deum, licet diverso modo, credimus et confitemur, qui eum Creatorem saeculorum et gubernatorem hujus mundi quotidie laudamus et veneramur.

Esse texto, contudo, ainda não responde a questão. Nosso Deus é trino e temos a tendência de gritar:

– Heresia!

Prossigamos.

O jornal Sim, Sim, Não, Não no ano de 2003, na sua série de reportagens sobre os supostos erros do Vaticano II, disse que as palavras do Papa derivavam da sua ignorância sobre a essência do islã e que o elogio ao rei não impediu que esse Papa louvasse uma expedição feita por países católicos contra os muçulmanos a fim de proteger católicos de rito oriental.

Esse argumento não satisfaz, pois vem do mesmo campo que insiste que os papas atuais são pessoalmente responsáveis por seus erros e que a ignorância não é desculpa, pois o Pontífice deve saber mais (na opinião deles). Além de que o fato do Papa Gregório VII ter lançado uma expedição contra os muçulmanos não tem relação direta com as crenças deles, mas de como as ações delas derivadas atingem os outros. É o mesmo que o combate medieval aos cátaros, que foi lançado após se constatar não o erro de fé deles, mas suas ações nefastas, como o assassinato de grávidas.

Uma resposta mais satisfatória pode ser dada ao nos aplicarmos a análise da forma e estrutura do texto conciliar. Ela começa falando do hinduísmo e do budismo e termina com o judaísmo; no meio é que encontramos as referências ao islã. Essa estrutura é importante, pois revela certa progressão: dos que são panteístas ou ateus práticos, aos que acreditam no Deus único, o Deus de Abraão (mas não de Isaac), e aqueles que crêem no Deus único, o Deus de Abraão, de Isaac e Jacó, o Deus do Antigo Testamento.

Indo do hinduísmo e budismo ao islã e do islã ao judaísmo, o Concílio começa com o que é mais distante da verdadeira religião e termina com o que é mais próximo. Nesse contexto é que a Nostra Aetate deve ser analisada: é uma consideração sobre a crença islâmica justaposta ao hinduísmo e budismo. Ela apresenta um contraste: hindus e budistas não acreditam no Deus único e Criador, eles acreditam em muitos deuses ou em nenhum deus; os muçulmanos, por sua vez, acreditam num deus único criador do universo.

Há um texto das Escrituras do livro dos Salmos geralmente citado contra o documento do Concílio (Salmo XCV, 4-5) :

Porque o Senhor é grande, e mui digno de ser louvado; terrível é sobre todos os deuses; Porque todos os deuses das gentes são demônios; mas o Senhor fez os céus.

Esse trecho, na verdade, dá razão a Nostra Aetate! Geralmente as pessoas se concentram na primeira parte do versículo 5, “…os deuses das gentes são demônios…”, e se esquecem dos resto, “…mas o Senhor fez os céus”. Aqui temos o contraste claro: o Deus único, o Deus verdadeiro, o Deus que está apartado dos “deuses” que são demônios, é o Deus que fez os céus. A criação é o ponto de identificação. O fato dos muçulmanos acreditarem no Deus único criador dos céus os coloca na segunda parte do versículo. Eles acreditam no único Deus, não em “deuses”; eles acreditam num Deus que criou o universo (significado de “céus” na Bíblia). Se nós dissermos que eles cultuam demônios, temos um sério problema: que demônio criou os céus?

Por essa conexão entre o Deus único e sua criação ser tão importante é que ela é alvo de reflexão por Gregório VII e pelo Concílio pastoral.

Mesmo assim, como adoramos o mesmo Deus se nosso Deus é trino?

Urge, então, fazer uma distinção entre fé e vontade. A virtude da fé pertence ao intelecto, o culto pertence à vontade. A Igreja sempre ensinou que um homem pode ser salvo ao cumprir a Lei Natural, quando sua vontade está voltada fundamentalmente para o Criador, mesmo quando sua fé não tem um caráter explícito. Se sua vontade está voltada ao Bem Supremo, sua fé na Verdade pode ser implícita.

Isso quer dizer que um homem pode sofrer de um defeito do intelecto que faz com que seu culto seja direcionado para aquilo que ele conhece imperfeitamente e, ao mesmo tempo, ter sua vontade suficientemente dirigida ao Deus verdadeiro.

Façamos uma analogia. Tenho um amigo e acredito firmemente que ele tem um pai. Acredito que ele tem um pai porque esse meu amigo existe, o fato dele ser criado indica que há um criador. Entretanto, acredito que seu pai seja obeso, tem outros 7 filhos, afina pianos e se chama José.

Respondamos, então, a questão: acredito no pai de meu amigo ou não? Claro que sim. Conheço todas as especificidades dele? Provavelmente não. Mas a falta dessa percepção intelectual perfeita implica que eu não acredite do pai de meu amigo? Não.

Consigo o endereço de meu amigo e de sua família e passo a mandar cartas para seu pai, todas endereçadas a José, perguntando sobre pianos, regimes e sobre seus outros 7 filhos. Minhas catas foram mandadas para o homem certo? Evidente. Ele recebeu minhas cartas? Sim. Ele gostou de minha correspondência? Provavelmente não, ele deve achar que sou um doido e minhas cartas lhe causaram aborrecimento e desconforto.

Aqui temos uma distinção importante. Se o Concílio pastoral nos diz que os muçulmanos cultuam nosso mesmo Deus, isso não implica que tal culto Lhe seja agradável e que Ele o aceita. Afinal, Caim cultuou o Deus verdadeiro e Ele não aceitou seus sacrifícios, pois eles foram feitos inapropriadamente.

Ensina Garrigou Lagrange (O nosso salvador e seu amor):

Não podemos deixar de enfatizar esse ponto: no momento que a vontade fundamental de um homem está eficazmente direcionada para o Deus verdadeiro, este homem está justificado, ele está no estado de graça, ele possui o germe da vida eterna.

Ensina D. Lefebvre (Carta aberta aos católicos confusos):

A doutrina da Igreja também reconhece implicitamente o batismo de desejo. Ele consiste em fazer a vontade de Deus. Deus conhece todos os homens e conhece aqueles entre protestantes, muçulmanos e budistas que são de boa vontade. Eles recebem a graça do batismo, mesmo sem conhecê-lo, de uma maneira efetiva. Nesse sentido eles se tornam parte da Igreja.

Diz o Espírito Santo (Lucas II, 13-14):

E subitamente apareceu com o anjo uma multidão numerosa da milícia celestial, que louvavam a Deus e diziam: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade.

Sendo assim, podemos dizer que os muçulmanos cultuam o Deus verdadeiro, Criador do universo, distinto dos falsos “deuses” que são demônios e que não criaram os céus e a terra, mas eles não possuem a fé verdadeira.

Conhecimento exato e fé não são um pré-requisito para um culto verdadeiro, contanto que a vontade esteja direcionada ao Sumo Bem. Isso também não implica que Deus aceite tal culto. Só pela razão (os muçulmanos não têm Revelação) ninguém chega a Trindade, mas chega-se ao Deus único, remunerador e criador de todas as coisas.

Palavras chaves:

intelecto – fé

vontade – culto

Treze anos após a publicação desse texto, o Professor Omar Mansour fez um vídeo interessantíssimo sobre o tema que recomendo a todos (ele não concorda comigo em tudo, mas, mesmo nisso, aponta perspectivas importantes sobre o tema):

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16 respostas em “Exegese da continuidade na Nostra Aetate”

Obrigado Thiago o texto foi de grande valia!

Pax et bonvs!

Eu ainda não entendo como nós podemos dizer que os muçulmanos e os cristãos cultuam o mesmo Deus, se o Deus que cultuamos, por exemplo, não promete um Paraíso cheio de virgens para ninguém.

Essa é uma dúvida muito comum, Gustavo. Ao longo dos anos, desde que publiquei esse artigo, tenho recebido muitas críticas nesse sentido, em geral feitas com má vontade, com uma visão reducionista da fé e insufladas por algum acontecimento envolvendo o terrorismo de matriz islâmica (não estou dizendo que é seu caso – que fique bem entendido).

O que se deve ter em mente é que quando se diz que nós e os muçulmanos cultuamos o mesmo Deus se está, simplesmente, dizendo que cultuamos o mesmo Criador, não que haja um acordo sobre quais são os atributos e o caráter desse Criador; não significa que concordemos em quem seja Jesus e Maomé; não significa que as diferenças entre as duas religiões sejam sem conseqüências; e, principalmente, não significa que nós abandonamos a noção de que a salvação só se encontra em Cristo.

Pense apenas nesses dois pontos para simplificar a questão:

1) “Deus” e “Alá” designam o mesmo Criador transcendente do “Céu e da Terra”;
2) Cristão e muçulmanos alegam que cultuam o mesma divindade a que Abrão e Moisés serviram.

Isso basta, em conjunto ou individualmente, para se estabelecer a mesma “identidade referencial”.

São Pio X, no seu catecismo maior, diz que os muçulmanos adoram o Deus Único e Verdadeiro. Isso na questão 225. Ele também era herege?

Só que o Deus dos católico apostólicos romanos é uma Trindade e o Deus dos muçulmanos não é.

Você não entendeu nada do texto para falar algo assim. Já lhe dei um conselho, Luiz, no post com o catecismo sobre o sedevacantismo, a baixar a bola e aprender o básico antes de querer dar saltos.

A associação que se faz aqui é entre o que se conhece de Deus por meio da razão e a concepção islâmica sobre a essência da divindade. A Trindade é um dado da Revelação apenas.

A essência da divindade no Cristianismo é a natureza divina em 3 pessoas distintas e um Deus. No ato da criação o Cristianismo cre que pelo menos 2 pessoas participaram conforme João 1:3 e Colossenses 1:16 e em Gênesis 1:26 a palavra “façamos” aponta para no mínimo 2 pessoas ou seja sem essas duas pessoas não haveria criação por isso é essencial entender que a Trindade já faz parte disso e que Catolicamente falando sem a Trindade não haveria criação.
No Cristianismo para Deus criar é presciso que ele seja uma Trindade pois a Trindade é parte integrante de Deus no Cristianismo. No Cristianismo Deus é transcendente por que é uma Trindade.

Bom então um deísta que cre em um Deus Pessoal também acreditaria num Deus verdadeiro?

Infelizmente você insiste…

“A essência da divindade no Cristianismo é a natureza divina em 3 pessoas distintas e um Deus.”

A ideia está correta, mas foi expressa de maneira equívoca. Isso não é a natureza divina. Deus é um espírito, perfeitíssimo, criador do Céu e da Terra. Os atributos que constituem a própria essência de Deus são: unidade, simplicidade, imutabilidade e eternidade. Cada uma das pessoas da Trindade possue tal natureza, ou seja, é Deus. Elas possuem, mas elas mesmas não são essa natureza. Deus é único quanto à sua natureza e trino quanto às Pessoas. Vou repetir: leia o volume I do Catecismo de Boulanger para poder pensar em debater essas coisas (esse catecismo você compra aqui).

“No ato da criação o Cristianismo cre que pelo menos 2 pessoas participaram conforme João 1:3 e Colossenses 1:16 e em Gênesis 1:26 a palavra “façamos” aponta para no mínimo 2 pessoas ou seja sem essas duas pessoas não haveria criação por isso é essencial entender que a Trindade já faz parte disso e que Catolicamente falando sem a Trindade não haveria criação.”

Não foram duas Pessoas que participaram, mas as três. Sempre as três agem em conjunto, mesmo que se atribua a uma ou duas. Isso só encontra duas exceções: a Encarnação do Verbo e a sua Paixão e Morte.

“Bom então um deísta que cre em um Deus Pessoal também acreditaria num Deus verdadeiro?”

Um deísta que crê num Deus único, criador de todas as coisas, que premia o bem e castiga o mal, acredita no Deus verdadeiro (crer aqui quer dizer “adere”). Isso não implica em que a maneira como ele efetiva tal crença seja agradável ao Senhor ou que dela tire algo que o santifique.

Quem dera pudesse colocar aqui o Pica-Pau com um capacete na cabeça passando pano para esses erros absurdos.

“Nos et vos […] qui unum Deum, licet diverso modo, credimur et confitemur, qui eum creativeem huius mundi quotidie laudamus et veneramur”

Papa São Gregório disse UNUM DEUM, não EUNDEM DEUM (mesmo Deus), tanto é que ele acrescenta: licet diverso modo (de maneira diferente). Claro, como é um Deus diferente, Ele é adorado de maneira diferente. O Segundo Vaticano Concílio vai contra tudo o que diz o Magistério Autêntico; claro, somente quis ser pastoral, deu no que deu, vivemos a tão famosa primavera da Igreja.

A argumentação foi com base em “unum Deum” mesmo, ou seja, o pica -pau maculou seu entendimento.

Com todas as críticas que eu tenha ao CVII e à Igreja Conciliar, acho esse argumento muito infantil.

Um deísta obviamente não é um teísta, logo, cristianicamente falando, não acredita no Deus Verdadeiro que, para os cristãos evangélicos é o Deus da Bíblia, a saber a Santíssima Trindade, e até onde eu sei um deísta não crê na Santíssima Trindade como o cristianismo apresenta.

Óbvio que não, mas se você levasse às últimas consequências o que diz deveria concluir que os judeus na época do Velho Testamento também não adoravam o Deus verdadeiro. Infelizmente a mentalidade protestante não parece entender que podemos falar de Deus a partir da Revelação ou a partir da razão.

Os judeus no Antigo Testamento adoravam o Deus verdadeiro pois as Pessoas da Santíssima Trindade sempre agem juntas, exceto na encarnação do Verbo. O Antigo Testamento nunca considerou Deus sendo um deus deísta. O deus deísta cristianicamente falando sequer existe. A razão levaria um católico a achar o Deus Cristão i.e. Santíssima Trindade e nunca um deus deísta.

Luiz, não se chega à Trindade pela razão. Leia e medite sobre o que está escrito no post antes de fazer comentários.

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