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Fascistas são os outros

Na semana passada um confrade da comunidade do Orkut, instigado pelo que ouviu em sala de aula, abriu um tópico questionando sobre as relações da Opus Dei com o “fascismo espanhol”. Logo o debate se direcionou para a questão do conceito de fascismo e, nesse âmbito, transcrevi um texto de Hugo Estenssoro publicado na Primeira Leitura de novembro de 2004 que agora posto aqui:

Fascistas são os outros

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“Fascismo” é um termo que se usa com certa leviandade. Tradicionalmente é um insulto usado pela esquerda para desqualificar toda oposição que ofereça um mínimo de resistência a seu monopólio da virtude. Mas o centro e a direita não se privam de usá-lo. Fizeram-no abundantemente para descrever a violência intolerante das manifestações antiglobalização em vários pontos do mundo. E hoje é comum chamar os terroristas muçulmanos – que contam com apoio explícito da imensa maioria da esquerda – de “islamo-fascistas”.

Parece óbvio que não há flexibilidade lingüística que justifique ambos os usos. A confusão é total e não é nova. Há para isso excelentes razões. Antes de 1914, o simbolismo dos fasces – um machado envolto em varetas que os magistrados romanos usavam como símbolo da autoridade e unidade do Estado – era apanágio da esquerda e do republicanismo francês. Em fins do século 19, foi usado pelos sem-terra italianos e por seus compatriotas da esquerda nacionalista. Um deles, Mussolini, cunhou o termo fascismo para descrever seus seguidores, os sindicalistas revolucionários a favor da guerra. A confusão esquerda-direita aumentou quando os comunistas passaram a chamar de “social-fascistas” os esquerdistas opostos ao stalinismo. Desde então as coisas só pioraram.

Um grande historiador americano de esquerda, Robert Paxton, depois de anos dando aulas sobre o fascismo, chegou à conclusão de que, “quanto mais discutia o tema com os estudantes, mais perplexo ficava”, e decidiu esclarecer suas idéias escrevendo um livro a respeito – The Anatomy of Fascism. Para isso suas credenciais são insuperáveis. Em 1972 Paxton conquistou merecida fama com um volume hoje clássico: Vichy France: Old Guard and New Order 1940-1944. Nele Paxton conseguiu elucidar a polêmica questão sobre se o regime de Viechy era fascista ou não, chegando à conclusão de que o general Pétain tinha presidido de fato sobre um regime meramente autoritário.

Para obter esse resultado contrário à opinião estabelecida, Paxton usou uma metodologia pouco revolucionária: examinou fatos, as ações concretas do regime de Vichy, comparando-as às dos regimes fascistas. No seu novo livro – que não é uma história do fascismo, mas uma tentativa de defini-lo -, faz a mesma coisa: “Procuro descobrir como o fascismo funcionava. É por isso que o foco se concentra com maior detalhe nas ações dos fascistas e não nas suas palavras, ao contrário da prática comum”.

Paxton faz questão de se distanciar, apesar de reconhecer-lhe fidalgamente os méritos, da melhor história do fascismo da atualidade, A History of Fascism, 1914-45 (1995), de Stanley G. Payne. Há nisso uma nítida dose de vaidade universitária. A trajetória de Payne é similar à de Paxton, ganhando a sua reputação com uma história do regime de Franco (1987) que deixa claro que quase nada tinha de fascista. Paxton acredita que, como outros historiadores, Payne toma demasiado a sério os programas e textos ideológicos dos regimes fascistas, o que de certa maneira predeterminaria suas conclusões. Não concordo. Aliás, uma das tendências da historiografia do totalitarismo atual é a que assinala que, se os regimes democráticos da época tivessem lido e tomado a sério os escritos e declarações de Hitler (o caso do falastrão Mussolini é diferente), poderiam ter reagido com maior rapidez e eficácia, poupando milhões de vidas, especialmente no caso do Holocausto. Ademais, o método comparativo de Paxton é radicalmente limitado em suas possibilidades de análise, com a recusa do autor de confrontar o nazi-fascismo com o comunismo. O historiador francês, de origem marxista, François Furet e o polêmico alemão Ernst Nolte são mencionados só de passagem nas notas.

Mesmo assim a dissecação do fascismo de Paxton é brilhante e constitui um indispensável complemento ao livro de Payne. De especial importância, tratando-se de um historiador de esquerda, é a distinção que faz entre os fascismos e o conservadorismo, enterrando definitivamente o mito de que são intrinsecamente identificáveis. A examinar o fascismo como um processo – dividido em cinco etapas – e não como uma ideologia, que não era apesar de suas pretensões, Paxton ilumina com impiedosa claridade seus elementos básicos. Daí que, na hora de definir o fascismo, no capítulo final, consiga uma síntese dificilmente superável: “O fascismo pode ser definido como um tipo de conduta política caracterizada por uma preocupação obsessiva com a decadência da comunidade, a humilhação ou o vitimismo, e pelos cultos compensatórios da unidade, energia e pureza, em que um partido de massas com militantes nacionalistas engajados, trabalhando em colaboração difícil mas efetiva com as elites tradicionais, abandona as liberdades democráticas e procura, com violência redentora e sem restrições éticas ou legais, objetivos de purificação interna e expansão externa”.

Rara vez nos é dado ver décadas de estudo e reflexão resumidas com tanta elegância e concisão. Lá estão os fascismos históricos e quase todos as suas derivações atuais. Mas não todas. Por ranço ideológico ou por limitações “acadêmicas”, Paxton rejeita a inclusão aberta de vários setores implicitamente incluídos na sua definição. Um exemplo é literalmente escandaloso. O historiador admite com a maior equanimidade “o potencial do fascismo em Israel”, mas resiste à “tentação” de chamar de fascista o fundamentalismo islâmico. A justificativa é casuística, pois na sua taxionomia não admite usar o termo fascismo com “ditaduras pré-democráticas”.

Mas isso só é aceitável se o fascismo é visto como um fenômeno estático: os fascismos clássicos, de fato, se caracterizaram pela destruição da ordem democrática. A novidade e a eficácia de ver o fascismo como um processo – está é a tese do livro de Paxton – consistem justamente em enfatizar a conduta e ações dos protagonistas além das construções ideológicas e particularidades nacionais ou políticas. Ora, o que define o fundamentalismo islâmico na sua fase atual é seu ataque visceral ao mundo democrático em todas as suas versões (incluída a possibilidade democrática no mundo muçulmano), seguindo palavra por palavra a cartilha estabelecida pela definição de fascismo proposta por Paxton, desde “a preocupação obsessiva com a decadência da comunidade, a humilhação ou o vitimismo”, até a “violência redentora e sem restrições éticas ou legais, objetivos de purificação interna e expansão externa”. Em termos da realidade política atual, o leitor deste excelente livro terá de tirar suas próprias conclusões. O que não é uma má maneira de ler.

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