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Apologética Religião comparada

A reencarnação é racional? [2]

Texto de Karlos Guedes

Uma crença religiosa que parece não ter muitos adeptos no mundo cristianizado é o espiritismo. Entretanto, em terras tupiniquins, ela tem uma popularidade impar. Some-se ao desprezo pela moral, a falta de transcendência e de rigor dogmático. Esta heresia goza da incrível capacidade de sincretismo. Talvez nessas considerações seja possível entender a simpatia por ela aqui no Brasil.

O princípio basilar do espiritismo é o da reencarnação, ou seja, a crença de que, após a morte, a alma de um ser humano retorna ao mundo material em outro corpo. Há também a metempsicose, variação desta doutrina, que é o retorno sob a forma de outras espécies.

Considerando o absurdo ululante da metempsicose, não nos deteremos sobre ela, mas analisaremos somente o espiritismo clássico. O escopo do texto é fazer uma apologética da Santa Religião contra a heresia espírita sem usar as fontes da Revelação. Usá-las seria por demais fácil e direto, visto as inúmeras proibições e condenações contra o espiritismo nas Sagradas Escrituras.

Chegaremos ao nosso propósito usando a razão, iluminada pela reta Filosofia.

 1 Hilemorfismo

Hilemorfismo é uma doutrina da cosmologia aristotélico-tomista, que tem sua etimologia do grego (hylê, matéria; morphê, forma), e entende os corpos como composição de dois princípios distintos e complementares, fontes das propriedades quantitativas e qualitativas pelas quais a realidade do corpo se impõe aos sentidos (cf. R. Jolivet, Tratado de Filosofia I).

O conceito de matéria e forma é analogamente utilizado nos Sacramentos. Recorremos a R. Jolivet (Vocabulário de Filosofia) para definirmos estes dois princípios:

  • Matéria é o elemento indeterminado e do qual os seres materiais são feitos: potência do ser.
  • Forma é o elemento que determina o ser: ato do ser.

A matéria pode ser ainda: primeira (ou prima), que é o sujeito primitivo que ainda não é um ser mesmo, pois que totalmente indeterminado: é a possibilidade inumerável. Ou pode ser segunda, que é o corpo enquanto suscetível a formas (determinações) acidentais, v.g., um bloco de mármore.

Quando algo se une à matéria prima, comunicando-lhe alguma determinação, resultando desta união um ser real (substância ouro, substância madeira, substância mármore), diz-se que este algo é a forma substancial do ser (cf. R. Jolivet, Tratado de Filosofia III). Recebe este nome porque a forma substancial, em união à matéria prima, configura uma essência (substância): forma dat esse rei.

Quando a substância já existente, isto é, matéria prima + forma substancial (bloco de mármore), recebe um princípio que lhe informa alguma determinação, quer dizer, algo que não muda sua essência, chamamos de forma acidental (cf. Ibidem). Exemplo: uma escultura de mármore difere acidentalmente do bloco de mármore, pois tanto um quanto outro são da mesma substância. Desta maneira, pode-se dizer que o bloco recebeu uma forma acidental e tornou-se escultura.

2 Antropologia tomista

“Nada há na inteligência que não seja antes nos sentidos”. Por este axioma fundamental do realismo, verificamos que os seres que são feitos de matéria tendem à “não-animação”. Por conseguinte, existe algo de diferente nos seres vivos: a vida.

A vida é a capacidade de automover-se (cf. S.T. I, q. 18, a. 1., sol.), explica o Aquinate.

Não se prenda o leitor ao movimento local, pelo qual um ser sai de um lugar para outro, mas a outra noção muito mais ampla. O movimento é o mesmo que mudança, i.e., “levar alguma coisa da potência ao ato” (Ibidem q.2, a.3, resp.). Assim, a vida é a capacidade do ser de mudar a si mesmo, de levar a si próprio de uma qualidade que poderia ter à posse atual desta qualidade – motus sui.

Pela observação, lembrando o adágio acima, há de existir algo que diferencia os entes pedra e leão (aquele, não vivo e inanimado; este, vivo e animado), a que se dá o nome de alma.

Do latim anima, a alma “é causa e princípio do corpo vivo”, como explica Santo Tomás, é a forma substancial do corpo. Ela, como afirma Manuel Corrêa de Barros, é o princípio que dá unidade ao todo do corpo, formando uma substância (cf. Lições de Filosofia Tomista). Não acidentalmente, mas formando o ser.

Existe, pois, uma superioridade ontológica imensa entre uma pedra e uma bactéria, entre algo inanimado e sem vida e algo animado e vivo.

A alma pode ser, conforme as potencialidades dos seres que realiza, material ou espiritual (racional).

  • Alma material dá ao corpo o princípio de unidade, mas sem exceder as potencialidades da matéria. Exige da matéria a sua existência, não realizando senão o realizável pela matéria: ato do que há em potência na matéria (cf. Lições de Filosofia Tomista). Desse modo pode ser vegetativa (princípio do automovimento) ou sensível (princípio dos sentidos e modificação ambiental).
  • Alma espiritual dá ao corpo o princípio de unidade, mas o faz exceder à matéria, àquilo que não depende dos sentidos, atingindo, assim, a imaterialidade.

A alma espiritual precisa informar algo. Essa necessidade é uma deficiência do seu ser, pois ela não é completa em si. Para que se realize, ela tem que se unir como ato de outro ser que é potência (a matéria). A matéria é o corpo de cada ser humano. Então, o espírito e o corpo compõem entre si a relação de forma substancial e matéria (ato e potência) do homem. Essa união é um ser completo.

O homem é, por isso, capaz de imprimir em si o invisível dos seres, aquilo que não é necessariamente sentido, mas abstraído. A essa capacidade do homem, chamamos inteligência, por isso forma racional (ou alma racional).

Aquilo que existe sem dependência da matéria é espiritual. Assim a alma, no homem, é a forma substancial subsistente, ou seja, espiritual e imortal, porque realiza o que está além da matéria e, consequentemente, não precisa dela para existir.

Em resumo:

  • O homem é um ser composto por corpo e alma racional. Esta faz o papel de forma substancial e aquele faz o papel de matéria (hilemorfismo).
  • A vida se dá com a animação do corpo pela alma.
  • A morte é a separação entre o corpo e a alma.

 3 Das formas puras

Do que foi dito, rapidamente se pode raciocinar: já que o espiritual existe sem a matéria, deve haver um ser que é puramente espiritual. Não só a razão impera a existência dos puros espíritos, como também a Revelação a atesta.

Os anjos são formas puras, inteiramente espirituais, que agem independente da matéria. Por não precisarem de matéria para agir, são imortais – daí o termo tomista substância separada. Todos os anjos, devido a sua natureza, conhecem tudo o que naturalmente podem conhecer (cf. S.T. I q. 58, a. 1).

Conhecem as conclusões imediatamente, como explica o Doutor Angélico:

Assim, também os intelectos inferiores, isto é, dos homens, por certo movimento e discurso da operação intelectual, atingem a perfeição e o conhecimento da verdade, passando de um objeto conhecido para outro. Se, porém, imediatamente, pelo próprio conhecimento do princípio, tivessem como conhecidas todas as conclusões consequentes, não haveria neles lugar para o discurso. Ora, é isto o que se dá com os anjos, pois, imediatamente, vêem tudo o que podem conhecer nas coisas que primeiro naturalmente conhecem (cf. ibid. q. 58, a. 3, destaques nossos).

E num ato puramente simples:

Ora, tendo o anjo luz intelectual perfeita, por ser espelho puro e claríssimo, como diz Dionísio, resulta que ele, que não intelige raciocinando, também não intelige compondo e dividindo. Contudo, intelige a composição e a divisão dos enunciados, como também o raciocínio dos silogismos; pois, intelige as coisas compostas simplesmente, as móveis, imovelmente, e as materiais, imaterialmente (cf. ibid. a. 4, destaques nossos).

Serem formas puras não implica dizer que são seres simples. A simplicidade é um atributo que convém somente a Deus. Nos anjos há ato e potência – e, portanto, composição –, pois só Deus é ato puro. Existem neles, destarte, uma composição entre essência (potência) e existência (ato).

Todas as potencialidades angelicais são providas dos seus respectivos atos (cf. ibid. q. 54, a. 4). Na realidade, os anjos têm o que se chama de potência ativa, que é a aptidão para produzir algo em ato (ou de determinar).

Tal é o modo de ser das substâncias separadas que julgamos necessário ressaltar para o escopo do texto.

 3.1 Deus

Deus é o ser que é ato puro, inteira e perfeitamente simples. Em Ele não há composição alguma, sequer entre essência e existência. Deus é o ser cuja essência é existir, é o ser que existe necessariamente.

Em Deus também é forçoso admitir a potência ativa.

 4 Princípio de individuação

Dentre os seres que vimos nos itens anteriores, há algo que é o princípio que individualiza dois ou mais sujeitos da mesma essência entre si. Ensina Manuel Corrêa (cf. Lições de Filosofia Tomista):

  • No homem vivo: é o corpo, que é feito de uma porção de matéria que não a que faz o outro.
  • Na alma espiritual separada (morte): é a relação essencial para com o corpo que foi seu, pois não são formas puras.
  • Nos anjos: é a espécie. Cada anjo é uma espécie distinta e é tudo o que pode ser.
  • Em Deus: são as relações opostas das origens eternas das Pessoas divinas.

 5 Doutrina espírita

A verdade cristalina de que o homem é o composto da união substancial entre alma racional e corpo material é negada pelo espiritismo que ensina poder uma alma ter vários corpos nas sucessivas vidas terrestres que experienciarão.

Supondo correta esta premissa espírita, a união da alma racional com o corpo não pode ser uma união substancial porque já não é necessária a íntima união dos componentes para formar um ser único. A essência humana, pelo espiritismo, seria apenas a alma, excluindo o corpo como componente indispensável, pois o espírito possuirá muitos outros, impedindo, com isso, que ele lhe seja parte substancial.

A consequência desta doutrina é que os homens seriam formas puras e toda a criação racional seria composta pelos homens. Para o espiritismo, todos os homens são puros espíritos.

Contudo, se a substância humana é apenas a alma espiritual, o homem seria ontologicamente impossibilitado de mudança substancial, pois, como forma pura, seria tudo o que pode ser, como acima foi dito.

Demais, a inteligência e o modo de conhecer de uma substância separada independem do tempo. Ela não apreende por sucessão; vislumbra tudo num só ato. E, quando decide, não se arrepende, porque nela não recai o hábito (cf. S.T. I-II, q. 50, a. 6) tampouco a paixão (potência do corpo) e é incapaz de errar:

Assim, pois, falsidade, erro ou engano por si, não pode haver no intelecto de nenhum anjo; mas o pode por acidente, embora de modo diferente do pelo qual existe em nós. Pois, nós, por vezes, chegamos à intelecção da qüididade compondo e dividindo; assim quando, dividindo, ou demonstrando, investigamos uma definição. Ora, tal não se dá com os anjos que, pela qüididade, conhecem todos os enunciados relativos a uma determinada coisa. (cf. S.T. I, q. 58, a. 5, resp., destaques nossos).

Mais uma vez, lembremos aqui o aforismo realista: a experiência mostra que os homens mudam de opinião, aumentam o conhecimento sobre algo, e conhecem através dos sentidos.

Aumentar o conhecimento é submeter a inteligência à sucessão. Como foi explanado, isto é incompatível com o ser de uma substância separada. Mudar de opinião é próprio de quem ignora algo, que decide por algo de maneira não definitiva e certa, ação impossível a uma forma pura. Conhecer algo necessariamente pelos sentidos é totalmente inconciliável com a natureza simples.

Admitir tal dependência dos sentidos para inteligir é afirmar que a matéria faz parte da natureza do ser em questão, ou seja, a união da matéria com a forma constitui uma substância única, completa e composta, o que contraria a premissa do espiritismo.

Ademais, admitindo a premissa, ou seja, sendo a alma humana a substância mesma do ser, qual a necessidade das reencarnações? Ou melhor, de uma encarnação sequer? Se formas puras, para que se unir a um corpo?

Logo se conclui que afirmar que o homem pode – ou tem que – reencarnar é uma contradição.

 5.1 Problema da individuação

Além do que foi dito, pela premissa, impõe-se o problema da individuação da alma “desencarnada”. Por suposição, o homem não é um anjo e, por isso, não tem seu princípio de individuação na espécie (cf. item 4).

Como a alma tem potência ativa para informar diversos corpos – o que por si contradiz a definição de alma como forma substancial, ato do corpo –, não pode ter por princípio de individuação “a relação essencial para com o corpo que foi seu” (cf. item 4), visto ter possuído outros tantos.

A irrealidade do espiritismo nos obriga a deduzir que as almas dos homens são indistinguíveis, ou seja, só existe uma alma, todas são manifestações desta mesma e única. É um absurdo lógico, senão uma gnose extremamente rasteira.

 6 Conclusão

A reencarnação é, pois, uma ilogicidade que vai contra o senso comum, a experiência e a observação. Embora revestido de [pseudo] intelectualidade, o kardecismo repugna a reta razão e a Filosofia Perene.

O ser humano, união substancial entre alma espiritual e corpo, é um ser completo e por isso seu espírito não pode informar outro corpo. O espírito, que não muda, sempre informará “da mesma maneira”, i.e., o mesmo corpo, o que exclui a reencarnação.

Difere a reencarnação da ressurreição. Nesta verdade, proposta para crença dos fieis, a Igreja ensina que novamente se dará a união da alma espiritual com o mesmo corpo que outrora informou, precisamente porque nosso ser é completo apenas assim: é uma obrigação da nossa natureza. Mereceremos os gáudios eternos ou desmereceremos o ranger de dentes como ser total, alma e corpo.

Alegremo-nos por ver a perfeição da doutrina celeste. Alegremo-nos também porque por ela chegamos ao horror do pecado, que nos mereceu a morte (separação desta realidade substancial). Alegremo-nos, por fim, porque diante dela cai a falsidade disseminada pelo pai da mentira, homicida desde o princípio (Jo 8,44).

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