Artigo de autoria do Conde José Dalla Torre para o Osservatore Romano em 1947, e publicado no Brasil pela Revista Vozes de setembro/outubro de 1947. Transcrevo com algumas modificações ortográficas.
Assombramo-nos de ver quanto tardam os homens em compreender os maus resultados da doutrina do secularismo, que intenta divorciar a sociedade da religião, do pensamento cristão e dos princípios cristãos. O intento de separar a religião da vida social, estabelecendo um código de moral independente e utilitário, destruindo as fontes da fé em Deus e nos valores cristãos, significa desfalcar a sociedade de sua vida espiritual. A organização social empobrecida e inerte, converte-se em presa fácil do materialismo, enfermidade que rapidamente se estende sobre todas as classes, atacando a família e o indivíduo. Faz mais que corromper a civilização e a sociedade: corrompe as verdadeiras raízes de nossa humanidade. O culto da força, a legitimidade do êxito, o anelo de dominação, conquista e prazer; o egoísmo, a falta de uma visão mais larga da vida temporal e mais ampla das terras pelas quais os homens combatem, o menosprezo da fraternidade humana e o estálido do ódio que incita e nutre as idéias são as coisas com que se alimentam tanto as nações como as classes, as famílias e o indivíduo. Não é que a justiça, o direito, a moralidade e o idealismo sejam ignorados, mas que estas palavras perderam seu sentido absoluto e são hoje a expressão de algo relativo e oportunista. Há tantas justiças, direitos e moralidades como motivos e ações; estes conceitos perderam seu valor essencial que os eleva acima das paixões e interpretações arbitrárias. Converteram-se em meros instrumentos de dominação, de êxito e vitórias; são propriedades dos fortes, e os vencedores fazem uso deles para apoiar seus planos e manifestações, sejam seus fins nobres ou maus.
Contemplando o mundo de hoje vemos quanto é comum este fenômeno; quanto mais a sociedade se opõe aos conceitos religiosos e cristãos, tanto mais claro aparece. Sua influência está em todas as partes, no reino do ensino, da cultura, do pensamento e da política. Presente nos movimentos sociais, impõe seu selo às relações internacionais; onde quer que seja, sua origem se revela.
O cristianismo opera com princípios diametralmente opostos, ao atrair sobre si as forças espirituais e as correntes do mundo. Se seguirmos os sulcos do caminho percorrido pelo Papado nos últimos duzentos anos, veremos em todo o seu esplendor e luminosidade a grandeza de sua obra, não só no sentido religioso, como também no leigo e humano. O Papado está excluído do campo político; as forças que dirigem a sociedade e o Estado já não admitem a influência benéfica da Igreja; as consciências dos homens, em vez de encontrar-se sujeitas ao poder livre e completo de Deus, encontram-se escravizados pelos poderes temporais. Estas são as circunstâncias nas quais os papas levantam sua voz em uma série de encíclicas e alocuções, preenchendo assim uma nova missão no mundo, porque estes são agora os canais vivos de comunicação com o mundo das almas e a alma do mundo. Em nenhum tempo de sua larga existência a Igreja teve uma oportunidade semelhante para fazer escutar sua voz em cada lar através do mundo, ressoando tanto para os indivíduos como para as multidões. A Pentecostes da antiguidade deu ao colégio apostólico o dom das línguas e da sabedoria, o dom de falar e compreender cada idioma; agora, a Divina Providência, servindo-se do gênio do homem, criou uma nova Pentecostes que ultrapassa os limites do espaço.
Em 1740 Bento XIV inicia esta missão de salvaguardar e preservar a herança da civilização. Em sua primeira encíclica Ubi Primum demanda a preparação adequada do clero em moral e doutrina, e insiste na importância do ensino e do exemplo que desde então unicamente a Igreja, como custódia da chama espiritual, será capaz de dar. Mais tarde, em 1791, Pio VI em Caritas quae condena o juramento civil imposto ao clero francês, e sobretudo trata dos perigos que ameaçam o Pastor e Mestre pela censura mundana que esteriliza as riquezas do espírito. Clemente XIII em Christianae Reipublicae (1766) passa do ensino para os livros, e dos livros para a vida atual, advertindo aos homens contra a imprensa corrompida que ameaça denegrir a luz pura do espírito. O Papa Bento XIV em Vix Pervenit (1745) contra a usura e a cobiça e em Inter cetera (1748) contra o desenfreio da vida, tratou de purificar as convenções e códigos da vida que são o verdadeiro alimento da alma.
O pontificado de Pio VII, o primeiro pontífice do século XIX, revela, com o valor dos mártires, a inalterável primícia do espírito sobre a força bruta. Foi o Papa que teve de suportar as penas do exílio e da prisão, em quando em Fontainebleau, só, prisioneiro e enfermo, no meio das angústias do espírito e da consciência, negou-se a ceder, e sob protesto anulou o que quis impor-lhe pela força. E mais tarde, livre enfim, perdoou a seu perseguidor e ordenou orações em sua intenção.
Foi a esse pontificado que Leão XII rendeu homenagem ao proclamar o jubileu de 1825, e a quem Pio VIII defendeu em Traditi humiliati (1829) escrevendo: “Não existe talvez falta de piedade mais monstruosa, que quando os homens homenageiam igualmente a verdade e a falsidade, a virtude e o vício, a honradez e a vilania. Os povos devem ser protegidos dos impostores”. E este Papa procedeu assim para denunciar todas as faltas cometidas contra a verdade estrita que são para o espírito como o crepúsculo que anuncia a noite.
As três encíclicas de Gregório XVI Mirari Vos (1832), Singulari Nos (1834) e a que se dirige contra as Sociedades Bíblicas (1844) são fiéis a este princípio na esfera religiosa e social. Pio IX encontrou assim o terreno preparado para a sua Qui Pluribus (1846), na qual com a mesma compreensão denunciou a crença no materialismo triunfante e todos aqueles erros que destroem o espírito; e também para a sua encíclica Noscitis et nobiscum (1849) que expõe o comunismo e o socialismo como negações não só de todo dogma religioso, como ainda de toda realidade espiritual. A encíclica Quanta Cura (1864) e o Syllabus completam a ação defensiva do papado, ao condenar as fontes de toda desordem moral e social: o panteísmo, o naturalismo, o racionalismo, a indiferença e – por suas conseqüências sociais e políticas – o liberalismo que liga a consciência dos povos e dos indivíduos às coisas materiais. A convocação do Concílio e a proclamação dos dois dogmas foram um claro desafio do espírito àquele materialismo que cria que toda resistência havia terminado; uma afirmação triunfante da infalibilidade papal, que recebeu por meio da Revelação o mandato divino de guardar e ensinar a Verdade.
Chegou então o momento do papado passar da tarefa defensiva para a construtiva. Toda a obra de Leão XIII a favor de uma solução cristã dos problemas políticos, sociais econômicos, seu código para o Estado, a família e o trabalho cristão, abriu novos horizontes. Suas encíclicas Diuturnum (1881), Nobilissima Galliarum Gens (1884), Immortale Dei (1885), Libertas (1888), Sapientiae Christianae (1890), Au milieu (1892), Rerum Novarum (1891), Permoti Nos (1895), e no amanhecer do novo século Graves de Communi (1901) podem ser classificadas todas sob o título de “A Cidade do Espírito”, tão lógica é sua argumentação cristã. Pio X em Pascendi (1907) ataca o último baluarte do racionalismo; Bento XV e Pio XI nas encíclicas Ad Beatissimi (1914) e Ubi Arcano Dei (1922), como seu predecessor em E Supremi Apostolatus (1903), vaticinam uma crise que se torna cada dia mais aguda e cuja verdadeira causa eram os zelos, a inveja e a desigualdade dos bens terrestres.
Em todas essas encíclicas predomina a mesma acusação: a falta de idéias ou sistemas de liberdade, justiça ou igualdade, a falta de cooperação entre classes e indivíduos, a falta de paz ou prosperidade social, a ausência de relações equilibradas entre as pessoas, as famílias e os estados que não pode estabilizar e muito menos admitir o valor das coisas do espírito, aquele espírito que só na Cristandade e em nenhuma outra parte se revelou e realizou perfeitamente. A ordem que flui dela é o único que pode substituir a força pela justiça; no sentido oposto será a força que dominará e mandará. Quer possa chamar-se anarquia ou tirania, oligarquia de nobres ou demagogos, o resultado é caótico, comparado com a única e verdadeira ordem humana que surge da hierarquia dos valores morais.
Para encontrar uma tamanha florescência de pensamento científico, de sabedoria e ensinamento, unidos às exigências espirituais, no mesmo momento em que o materialismo e o positivismo organizaram seus ataques mais destrutivos, devemos retornar aos ensinamentos da Idade de Ouro, da Idade Média, em que as novas universidades pediam ao Papa o privilégio de garantir-lhes os títulos de doutor e “ubique docendi”. Não devemos olvidar nunca essa época, em que o triunfo do espírito atingiu o zênite.
O papado estava pronto para cumprir sua grande missão; passou, gradualmente, das leis e costumes que regem a cooperação pacífica dos estados às leis e costumes da justiça internacional; da sociedade doméstica e nacional à sociedade das nações, mantendo os mesmos princípios, as mesmas verdades, as mesmas leis do espírito. A morte de Pio X no momento de estalar a guerra, parecia por um ponto final a todos os chamamentos de paz. O Santo Padre temia a perda das almas e da civilização mais ainda que a própria destruição das vidas; e fazia todos os esforços possíveis para evitá-lo. Esta herança de seu cuidado e de sua angústia passou a Bento XV, cujo nome figura entre os grandes benfeitores da humanidade. Tudo quanto planejou este Pontífice para o melhoramento da guerra, suas paixões e ódios, tudo quanto fez para evitar um abismo entre as nações, a fim de que a caridade – em vez de afogar em sangue – pudesse sustentar-se com firmeza contra a fúria da batalha, tudo isto pertence à história contemporânea. Sua mensagem de paz, de 1º de agosto de 1917, proclamou os princípios do direito cristão internacional, e urgiu para que a arbitrariedade da força cedesse lugar à justiça e à lei.
Pio XI insistiu sem cessar sobre os fundamentos espirituais da paz e da organização da sociedade das nações. Depois da guerra, através de seu largo pontificado, persistiu em dizer ao mundo que devia retornar sua vista às causas finais que, mesmo quando mais distantes ou remotas, são frequentemente as mais importantes. Em uma série de encíclicas, como Quas primas (1925), Quadragesimo Anno (1931), Divini Redemptoris e Mit brennender Sorge (1937) encontrou as causas da inquietação nas normas de vida de nossos dias, no desprezo da família, na exploração do trabalho, na negligência da educação cristã, na cobiça de riquezas; que são os frutos deste novo paganismo na teoria e na prática, do ateísmo dogmático e do culto da força, que nega a realidade de uma lei ética superior que obriga de igual forma a todas as pessoas e sociedades, aos governantes e aos governados, ao Estado e ao cidadão.
Pio XII, ao enfrentar o novo conflito, maior e mais decisivo que todos os anteriores, desenvolveu, classificou e resumiu o ensinamento pontifício, e em particular definiu o caráter espiritual da Cátedra de São Pedro. Tudo isso se estabelece em Summi Pontificatus (1939). Em uma análise da situação mundial comprova que as causas originais revelaram-se o ateísmo, a repulsa ao cristianismo, e o materialismo; e o único remédio encontra-se no retorno às coisas do espírito. “Sobre todas as coisas ressalta claramente que a fonte suprema de nossa miséria está na negação de uma norma de moral universal… A vitalidade que há de renovar a face da terra deve emanar das reservas do espírito… A nova ordem mundial há de ser estabelecida sobre a rocha irremovível da lei natural e da revelação divina… A reeducação da humanidade, para ser verdadeiramente eficaz, há de ser, antes de tudo, espiritual e religiosa”. É no reino do espírito que se manifestou o reinado de Cristo e onde deve triunfar. É na supremacia do espírito que a civilização cristã florescerá. Os evangelhos estão cheios do alimento para o espírito; ao menos devemos compreender que são incompreendidos. Mas se os compreendermos, veremos quão lógico e indestrutível é sua mensagem, e mensagem de Pio XII que a repete fielmente.
Esta mensagem é proclamada em todas as alocuções pontifícias, especialmente nas de Natal; nos princípios apresentados para a solução da crise mundial, para a paz e para as bases da pacificação demonstrou tão bom sentido prático, que os homens foram obrigados a contemplá-los de fato. Que o clamor do espírito sobre a consciência, pensamento, leis e costumes possa prevalecer em um mundo que nega as realidades eternas da alma. A humanidade deve eleger entre duas causas fundamentais e duas causas primárias, entre a civilização e a barbárie. Esta é a senda para a qual o Papa conduziu o mundo.