Artigo publicado na revista Veja de 10 de agosto do corrente ano, de autoria de Sérgio Danilo Pena, geneticista a professor da Universidade Federal de Minas Gerais:
O Febeapá das cotas
A exigência de que os candidatos a cargos públicos que se declaram negros sejam submetidos a uma avaliação visual faz parte do festival de besteiras que assola o país
O brasileiro Stanislaw Ponte Preta escreveu em 1966 um dos clássicos do humor nacional: O Festival de Besteira que Assola o País – Febeapá. O livro é uma crítica hilária ao cenário político e cultural daquele tempo. Adapta-se ainda muito bem aos dias de hoje. Desde que foi iniciada a discussão sobre cotas raciais no Brasil, o “besteirômetro” tem acusado alta contínua. Inúmeras asneiras têm sido ditas e escritas por políticos, professores e palpiteiros sobre o assunto. Na terça-feira 2, esse índice atingiu um nível extraordinário com a instrução normativa do Ministério de Planejamento e Gestão, publicada no Diário Oficial da União.
Por uma lei de 2014, concursos públicos federais devem reservar 20% das vagas para candidatos negros. A lei determinava que, para concorrer pelo sistema de cotas, era suficiente que o candidato se declarasse preto ou pardo, de acordo com a classificação do IBGE. Pois bem, a nova instrução normativa estipula que comissões especiais agora aprovem, ou não, a autodeclaração. Isso deverá ser feito com base na análise de aspectos fenotípicos – visuais – com o candidato presente.
A norma desperta um certo déjà-vu. Em 2004, a Universidade de Brasília (UnB) decidiu que cada candidato ao sistema de cotas fosse fotografado no momento da inscrição. Dependendo do exame do retrato, feito por uma comissão, a inscrição poderia ou não ser homologada.. O argumento a favor da utilização do critério morfológico, com uma imagem, era que aquelas pessoas com características físicas mais africanas teriam mais probabilidade de ser discriminadas na comunidade. Assim, uma comissão racial deveria examinar os candidatos com os “olhos da sociedade”. O raciocínio absurdo seria digno de medalha de ouro (nestes dias de Olimpíada) no Febeapá.
A mancha na justificativa dos defensores desses critérios visuais para a seleção de candidatos é que ela se baseia em informações erradas. Um brasileiro que apresente características africanas pode ter país, avós e bisavós brancos. Da mesma maneira, muitos descendentes de escravos podem não possuir traços africanos, como pele pigmentada, cabelo crespo, olhos escuros, lábios grossos e nariz largo. Uma foto de um jovem aparentemente branco poderia excluí-lo do benefício das cotas, mas ele pode muito bem ser filho de negros pobres. Uma adolescente de tez morena poderia ser aprovada na tal comissão, mas ser filha de pais bancos ricos. Felizmente, o “modelo UnB” foi desmoralizado e abandonado. Em 2007, dois gêmeos idênticos, univitelinos, se inscreveram para disputar uma vaga no sistema de cotas. Pelo exame de fotos do “tribunal de raças”, um foi considerado negro e o outro não.
Em quase todas as decisões governamentais sobre cotas, as conclusões científicas foram completamente ignoradas. De acordo com estudos sobre a formação do povo brasileiro feitos em laboratório, a presença de traços icônicos da negritude em um candidato a uma vaga na universidade ou a um emprego público não deveria ter nenhuma relevância.
Nos últimos vinte anos, nosso grupo de pesquisa na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realizou estudos moleculares sistemáticos da ancestralidade de brancos, pardos e pretos no Brasil, usando marcadores de DNA. Eles mostram que a esmagadora maioria dos brasileiros que se autodeclaram brancos tem ancestrais de linhagem patrilinear (de pai para filho) de origem europeia. Em contraste, quando olhamos as linhagens matrilineares, notamos uma distribuição bem equilibrada entre as três origens geográficas: 33% ameríndia, 28% africana e 39% europeia, com variações entre as diferentes regiões do território nacional. Esses dados revelam que ocorreu um fluxo gênico sexualmente assimétrico na formação dos brancos brasileiros, com a contribuição europeia sendo principalmente paterna e a contribuição ameríndia e africana sendo predominantemente materna.
Em outras palavras, os brasileiros brancos foram formados principalmente da união sexual de homens europeus com mulheres de origem africana e indígena. Essa mistura, que ocorreu ao longo de vários séculos, faz com que dois em cada três brasileiros que se autodeclaram brancos sejam afrodescendentes ou amerindiodescendentes pelo lado da mãe. Além disso, mais da metade daqueles que se dizem pretos são eurodescendentes pelo lado paterno.
Adicionalmente, utilizamos outros marcadores em DNA para pesquisar as correlações moleculares entre cor da pele e ancestralidade biogeográfica. Nossa pesquisa laboratorial revelou que, no Brasil, a cor, avaliada fenotipicamente, tem uma correlação fraca com grau de ancestralidade biogeográfica. Por mais apurado que seja o olhar, não há como, por meio de uma análise visual, acertar qual seria o grupo de cor de uma pessoa. Por baixo da pele, evanescem as diferenças entre brasileiros autodeclarados brancos, pardos ou pretos. Ademais, nossos estudos genéticos mostraram que as categorias de cor parda e preta possuem significados diversos em diferentes regiões do Brasil, quando medidas em termos de ancestralidade genômica. Assim, no Pará, os indivíduos que se diziam pardos tinham em média 66,6% de ancestralidade europeia, em comparação com 44,4% no Rio Grande do Sul. Não há, então, justificativa científica para unir em todo o Brasil as categorias parda e preta do IBGE em única categoria “negra”.
Ao decifrar e apresentar a realidade, a ciência pretende e pode estabelecer “o que é”. Por outro lado, “o que deve ser” pertence ao domínio da filosofia. O papel da ciência não é normativo, mas sim informativo. Isso não quer dizer que os cientistas não possam contribuir para o debate político e social. Ao mostrar “o que não é”, a ciência liberta e tem o poder de afastar erros e preconceitos. A meu ver, uma postura política que ao mesmo tempo seja cientificamente coerente e desejável no Brasil seria a valorização da singularidade e da dignidade de cada indivíduo. Todo brasileiro tem o direito inalienável de ser visto como um ser humano único em seu genoma e em sua história de vida, e não meramente como pertencente a um sexo, uma religião ou um grupo de cor.
De qualquer forma, o único critério admissível para a classificação da cor de um brasileiro em um sistema de cotas ainda é autodeclaração. Aparentemente, um dos argumentos usados para justificar a instrução ministerial é o fato de a autodeclaração ser suscetível a fraudes. Se for esse o caso, pecou o governo ao tentar corrigir potenciais desonestidades lançando mão de um método cientificamente inválido e socialmente ofensivo.
Particularmente sou contra as cotas raciais pois entendo que o critério de raça é muito perigoso para ser usado em políticas oficiais, já que divide o país de um modo difícil de ser superado e, ainda por cima, nega um dos legados de nossa formação, a miscigenação (de fato, ela nem sempre ocorreu num contexto de liberdade, mas como realidade concreta nos repete a um patamar acima do biológico para buscar a coesão social). Esse texto tem a virtude de mostrar que além perigoso, o conceito de raça também é fictício (naturalmente, não nego que se o fenótipo de alguém é importante para que se criem situações desfavoráveis a tal pessoa, isso tem de ser levado em conta num processo de afirmação da dignidade individual, mas não numa política de estado).