Certas coisas eu achei que tinham ficado na década de 1990, quando, ainda criança, assisti à queda da “cortina de ferro” e ouvi a conversa furada de que tudo deu errado porque não se era comunista de verdade. Uma triste tentativa de justificar o injustificável e não aprender nada! E que foi devidamente demolida na época.
Mas a história é cíclica, os mesmos erros sempre retornam, como atesta o esforço sem fim da Igreja em responder às mesmas heresias, que renascem com uma roupagem diferente, a cada período histórico. Sendo assim, foi com uma surpresa comedida que em meses recentes vi na universidade voltarem a falar em falta de verdadeiro comunismo nos países do antigo bloco socialista. A capacidade das esquerdas mundiais para justificar em nome de uma utopia humanitária as piores atrocidades e, desse modo, continuar a pregar com a maior inocência os ideais socialistas perfaz um perigoso sinal de paralaxe cognitiva. Sendo assim, quando vejo um esquerdista inteligente (pós-marxista?), como o professor Flávio Brayner do Centro de Educação da UFPE ir ao fundo do problema no texto abaixo (Jornal do Commercio, Recife, 3 de fevereiro de 2017), só posso me alegrar, pois isso é um sinal da lucidez necessária para qualquer debate produtivo no campo da política.
Rússia, 1917
Ainda ouço muita gente, sobretudo jovens universitários, falando de “revolução”. A palavra foi introduzida por Montesquieu, mas veio da astronomia: uma volta completa que um astro dá em torno de seu próprio eixo, voltando ao “ponto inicial”. Seu uso político indicava também uma volta a um estado “natural” rompido pelo absolutismo. Revolução significava “restauração”. Com os jacobinos introduzem-se a de ruptura com o passado e com as formas de autoridade tradicionais, e a razão passa a ser vista como entidade transcendente que deve se incorporar no social.
Marx vê a revolução como resultado das contradições entre forças produtivas e relações de produção, necessidade inscrita na dialética do social: a síntese final seria o homem reconciliado com sua própria humanidade. E imaginava que quanto mais desenvolvido fosse o capitalismo, mais próximo estaria da passagem para um “nível superior”. Deu tudo errado!
A contribuição de Lênin foi a ideia do “partido revolucionário”: o proletariado quando deixado só fazia besteira, entregava-se de mãos atadas aos “encantos burgueses”. Era necessário um “destacamento consciente”, capaz de introduzir “de fora” uma coisa chamada “consciência de classe”: um atavismo hegeliano que o marxismo herdou e que Lukács desenvolveu. Era pelo partido que a luz da razão histórica seria introduzida na escuridão da noite proletária. O leninismo não passa de uma mistura de jacobinismo com uma profunda descrença na espontaneidade do movimento operário. Aliás, o decano do marxismo russo, George Plekhanov, desconfiava das intenções de Lênin: se a mudança social é obra da necessidade histórica descoberta por Marx e Engels, não haveria necessidade de partido (não se cria um partido para apoiar a Lua em seu movimento em torno da Terra).
Surge aqui todo o drama político do proletariado: ele só é classe, no sentido político, enquanto representação. A ideia de que se possa deter a chave do enigma da história e incorporar, em si, o papel que supostamente cabe a uma classe, representando-a, é uma das maiores construções metafísicas da filosofia social. O proletariado não sabe que ele é a classe revolucionária. E como fica sabendo? Pelo Partido! E como o Partido sabe disso? Pelo marxismo que a designou! E assim, a fábula se completa com uma tautologia.
Quando o stalinismo pôs tudo a perder, os marxistas propuseram um “retorno a Marx”: a história real, concreta, não valia nada. Valia o texto fundador, a palavra do Mestre: a verdadeira História era aquela que realizaria a palavra. A tautologia se completa com fundamentalismo. Francamente!
Uma resposta em “Marxismo: tautologia e fundamentalismo”
A dualidade está presente em todo ser humano. Todos nós temos um lado de sombra e também um lado de luz.
O maior problema do marxismo assim como do fundamentalismo religioso é considerar o “outro” um pária social, sem fazer uma análise interna do seu próprio ser. Apontar o dedo será sempre mais fácil do que sair da “zona de conforto” promovendo sua transformação interior.
Nisso consiste a política do Reino de Deus!