Comemorando o dia em que o Motu Proprio Summorum Pontificum entrou em vigor (14 de setembro de 2007) publicamos hoje um texto do New Liturgical Movement, traduzido por Cláudio e revisado e adaptado por Thiago.
Liturgistas progressistas – isto é, todo o establishment durante e depois do Vaticano II, com poucas e notáveis excessões – parecem cometer um erro elementar nas suas opiniões, resvalando no mesmo problema encontrado na crítica bíblica liberal.
Quando os liturgistas escavam a fundo a história dos ritos, eles descobrem muitas mudanças, desenvolvimentos, variações e, aparentemente, eventos inesperados (afinal, você não sabe, mas foi por causa de Carlos Magno que o rito romano substituiu o galicano e assimilou muitos dos seus elementos). Até aí, tudo bem. Mas então eles fazem uma injustificada afirmação: além da “Era de Ouro” do trabalho Apostólico, não devemos reverência a nenhum estágio posterior de desenvolvimento dos nossos ritos litúrgicos. Por exemplo, pelo fato das características barrocas e medievais da liturgia romana terem resultado de acidentes históricos, elas são vistas como passíveis de serem expurgadas pelos cognoscenti, isto é, por aqueles que sabem melhor o que o nosso contexto histórico atual exige.
Tal raciocínio revela uma falta de estrutura metafísica e teológica para ver como a Divina Providência governa todas as coisas no geral e nos detalhes. Para nós aqui embaixo, com o nosso fraco e finito alcance das causalidades, parece que tudo deriva do acaso; aos olhos de Deus, contudo, tal coisa não existe. Ele vê tudo. Ele causa tudo. Sem uma adequada concepção e confiança na Providência, nós cometeremos (ou seremos tentados a cometer) o pecado de julgar, rejeitando dos frutos do desenvolvimento orgânico da liturgia, como se nós, modernos, fôssemos superiores aos nossos antepassados. A principal presunção da história católica é que nossos antepassados tinham mais sabedoria do que nós e que é nossa obrigação receber e assimilar seus ensinamentos, esforçando-nos para vivê-los sempre que possível.
Portanto, essa inferência litúrgica falha em apreciar a atitude espiritual que devemos ter em relação à nossa herança – em direção ao “acaso”. O salmista captura essa atitude perfeitamente: Funes ceciderunt mihi in praeclaris; etenim haereditas mea praeclara est mihi (Ps XV, 6). A bíblia Ave Maria assim o traduz: O cordel mediu para mim um lote aprazível, muito me agrada a minha herança. O sentido deste verso é que os limites que Deus tem dado ao seu povo, no curso de sua orientação paternal, são os corretos: eles brilham de sabedoria. O que recebemos é bom e não deve ser desprezado.
Note a palavra usada duas vezes pela Vulgata: praeclarus. Essa palavra tem muitos significados: esplêndido, brilhante, excelente, famoso, ilustre, nobre, distinto. Esses significados são como uma lista de todas as qualidade que as liturgias tradicionais do oriente e do ocidente possuem – e exatamente as qualidades que eram esperadas nos ritos fabricados nas décadas de 1960 e 1970. Mas, por mais que possamos celebrá-los solenemente, eles sempre parecerão estranhos como um novo rico. O salmista, no entanto, exclama que sua herança recebida é praeclarus. Ele diz isso duas vezes, uma maneira hebraica de enfatizar.
Onde mais vemos a palavra latina praeclarus? Nós a vemos duas vezes no Cânon Romano – o Cânon que define o rito romano, e foi vítima da marginalização derivada da opcionalidade, prova a descontinuidade e ruptura entre a liturgia legada pela tradição e a que foi fabricada após o Vaticano II. Primeiro, nós a ouvimos na consagração do cálice: tomando em Sua Santas e Veneráveis mãos este preclaro cálice (hunc praeclarum calicem). Então nós a ouvimos imediatamente depois: por isso, ó Senhor, nós vossos servos e também vosso povo santo… oferecemos à Vossa Resplandecente Majestade (praeclarae maiestati tuae) esta Hóstia Pura, Hóstia Santa, Hóstia Imaculada, este Pão Santo da Vida Eterna e o Cálice da perpétua salvação.
Não é por acaso que o mesmo Salmo XV usa o cálice como símbolo da provisão generosa de Deus para o seu povo: Dominus pars haereditatis meae, et calicis mei: tu es qui restitues haereditatem meam mihi (Senhor, vós sois a minha parte de herança e meu cálice; vós tendes nas mãos o meu destino. Sl. XV,5).
Analisando a palavra calix com o uso duplo da palavra praeclarus, o Cânon Romano não apenas ecoa o Salmo XV, mas reza uma das orações favoritas dos primeiros cristãos, como vemos nos Atos dos Apóstolos, nos lembrando assim a natureza de nossa herança litúrgica. Ela não perfaz um conjunto estático e desatualizado de livros, nem deriva do acaso ou de meras intenções humanas, mas é uma tradição viva que “começa” no Logos de Deus e culmina no Logos feito carne, nosso Eterno Sumo Sacerdote que guia a Sua Igreja para a Plenitude da Verdade pelo dom do Espírito Santo. Nossa boa herança é o rico conteúdo de um cálice derramado em maior medida sobre Adão, Abel, Abraão, Melquisedeque, Davi, o culto no Templo, os primeiros dies Domini (domingos) e os séculos fé católica, quando a liturgia cresceu de uma semente de mostarda para uma grande árvore em cujos ramos as aves do céu, isto é, os santos anjos, se alojam (cf. Lc XIII,19).
Como Joseph Ratzinger costumava dizer, não somos os produtos acidentais do acaso, mas a prole deliberada da intenção divina; o Universo é criado com o Logos reinando sobre a matéria e o caos. O mesmo é verdade para a liturgia. Ela também não é um produto acidental de mudanças, mas o produto da Providência; seu caminho, que emerge em Israel, cruza o mundo grego-romano e depois o bárbaro, vem do Logos, reinando acima dos assuntos humanos. Essa é, em última instância, a razão dos tradicionalistas rejeitarem a “reforma litúrgica”: ela por si constitui uma rejeição da compreensão unânime de como a liturgia existe, foi recebida e é transmitida através dos tempos.