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Democracia e Tirania

– Vamos lá! De que maneira, meu caro companheiro, se origina a tirania? Pois é quase evidente que provém de uma alteração da democracia.

– É evidente.

– Acaso não é mais ou menos do mesmo modo que a democracia se forma a partir da oligarquia, que a tirania surge da democracia?

– Como?

– O bem que propunham, e pelo qual se estabelecia a oligarquia, era a riqueza. Ou não?

– Era.

– Ora foi a cobiça da riqueza e a negligência do resto, para conseguir dinheiro, que a deitou a perder.

– É verdade.

– Porventura não é a ambição daquilo que a democracia assinala como o bem supremo a causa da sua dissolução?

– Quem bem é esse que dizes?

– A liberdade. É o que ouvirás proclamar num Estado democrático como sendo a coisa mais bela que possui, e que, por isso, quem é livre de nascimento só nesse deve morar.

– Realmente ouve-se muito amiúde essa palavra.

– Ora pois, como eu ia dizendo há pouco, a ambição desse bem e a negligência do resto é que faz mudar esta forma de governo e abre caminho à tirania.

– Como?

– Quando um Estado democrático, sedento de liberdade, passa a ser dominado por maus chefes, que fazem com que ele se embriague com esse vinho puro para além de toda a decência, então, se os seus magistrados não se mostram inteiramente dóceis e não lhe concedem um alto grau de liberdade, ele castiga-os, acusando-os de serem criminosos e oligarcas.

– É isso que fazem, realmente.

– E ridiculariza os que obedecem aos magistrados e trata-os de homens servis e sem valor. Por outro lado, louva e honra, em particular e em público, os governantes que parecem ser governados e os governados que parecem ser governantes. Não é inevitável que, num Estado assim, o espírito de liberdade se estenda a tudo?

– Como não havia de sê-lo?

– E que se infiltre, meu amigo, nas casas particulares e que a anarquia acabe por grassar até entre os animais?

– Como havemos de dizer tal?

– É que o pai habitua-se a ser tanto como o filho e a temer os filhos, e o filho a ser tanto como o pai, e a não ter respeito nem receio dos pais, a fim de ser livre; o meteco equipara-se ao cidadão, e o cidadão ao meteco, e do mesmo modo o estrangeiro.

– É assim que acontece.

– Ainda há estes pequenos inconvenientes: num Estado assim, o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e ações; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários.

– Exatamente.

– Mas o extremo excesso de liberdade, meu amigo, que aparece num Estado desses, é quando homens e mulheres comprados não são em nada menos livres do que os compradores. Mas por pouco me esquecia de dizer até que ponto vai a igualdade e liberdade nas relações das mulheres com os homens e destes com aquelas.

– Então vamos, como Ésquilo, “dizer o que nos acudiu agora mesmo aos lábios”?

– Está certo, e é isso o que faço. Até que ponto os animais domesticados pelos homens são aqui mais livres do que em outra parte é coisa que custa a acreditar quando se não a viu. Na verdade, como diz o provérbio, as cadelas comportam-se aí como as donas; os cavalos e os burros, habituados a uma marcha livre e altiva, atropelam todos os que encontram no caminho, quando estes não lhes cedem a vez. E o mesmo sucede com o resto: tudo transborda de liberdade.

– É o meu sonho que estás a contar. Pois é isso mesmo o que eu experimento com frequência, quando vou a caminho do campo. O resultado de todos estes males acumulados, bem compreendes como dá em tornar a alma dos cidadãos tão melindrosa que, se alguém lhes impõe um mínimo de submissão, se agastam e não o suportam; acabam por não se importar nada com leis escritas ou não-escritas, como sabes, a fim de que de modo algum tenham quem seja senhor deles.

– Sei, e muito bem.

– Ora aqui está, portanto, amigo, o belo e soberbo começo de onde nasce a tirania, tal como me parece.

Platão in República, século IV a.C

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