Trecho de entrevista (“História sem luminosidade”) com o filósofo Roberto Romano, da UNICAMP, publicada no Jornal do Commercio (Recife) em 23 de agosto do corrente ano, e que mostra como estamos caminhando rapidamente para o “reino da superficialidade e do imediatismo” na vida cultural :
Em tempos de escritas rápidas e de leituras idem o livro se transforma em objeto ignorado mesmo entre pessoas habitualmente consideradas intelectuais. O livro supõe um tempo lento de escrita, impressão, difusão, leitura. Mesmo com os avanços técnicos trazidos pelo computador, lançar um livro é menos ágil do que ler e redigir algo nas redes sociais. O jargão dos usuários daqueles serviços é demais eloquente: um escrito com mais de 3 mil caracteres é “textão” enfadonho. Não é de hoje o problema, nem é exclusivamente da internet.
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Hans Robert Jauss e outros que elaboraram uma estética da recepção indicam: livros de longo fôlego não carreiam o entusiasmo do leitor domesticado pela cronologia da TV, rádio, etc. Poemas e compêndios que reúnem muitas páginas são mencionados mas pouco lidos. O Paraíso Perdido de Milton, Os Lusíadas, a Divina Comédia, integram a lista. A quantidade cansa. Em cada linha é preciso recolher informações que só a ordem erudita fornece. Se no caso de livros clássicos tal óbice existe, imaginemos a cultura dos instantâneo que rege o mundo digital. Nela, alguém escreve algo em Pequim e na pequena São Bento do Sapucaí chega de imediato a mensagem enviada. O livro exige tempo, paciência e memória. Nas ciências ele supõe saberes multifacetados, das matemáticas à geografia, da física às biologias. Não se lê um volume teórico ou menos um romance com a rapidez que marca o WhatsApp.
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A cultura atual, indica Paul Virilio, é regida pela instantaneidade. Mas o livro supõe escalas sincrônicas e diacrônicas diversas às da rapidez. Manter a produção de livros desafia o tempo e o espaço. Não por acaso na França, onde o livro é signo de saber, livrarias e editoras importantes faliram. No lugar das Presses Universitaires de France hoje existe uma loja de roupas. Em toda grande mudança tecnológica planetária (a partir de Gutenberg no caso do livro) existe um intervalo entre o avanço dos instrumentos e seu uso. Com a prensa vem a figura do pedante: ele compra o maior número de livros, mas nada aproveita por falta de sólidos saberes. O pedante consome mas não digere o conteúdo dos livros.
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A cultura democrática moderna foi edificada a partir dos livros. Não por coincidência, o neoliberalismo imposto por Margaret Thatcher a Cambridge e Oxford, trouxe consigo a tese da “produtividade” acadêmica, o que reduziu consideravelmente o tempo dos pesquisadores e docentes em seu labor diário. Como o correto é publicar o mais possível no menor prazo, o rigor lógico, empírico, ético diminuiu no campo acadêmico. Aumentaram os plágios e as subtrações de trabalhos alheios. A ordem de publicar ou perecer não permite “perder tempo” com maiores consultas às fontes, revisões de trabalhos, alongamentos analíticos. Boa parte da avaliação do esforço universitário descarta o erro, direito básico de toda ciência digna do nome. É bom que se recorde o significado do latino error: trata-se da pessoa que comete um desvio de caminho e sentido. A ciência não é nutrida apenas ou principalmente de acertos, mas de tentativas, falhas, buscas, incertezas. Sob o neoliberalismo acadêmico não é permitido errar, caso contrário programas científicos, técnicos, humanísticos são sancionados negativamente com perda de recursos e prestígio.