Essa semana, andando pelo centro do Recife, achei um livro com exortações e discursos de um grande arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife: Dom Miguel de Lima Valverde. Pretendo transcrever todos aqui neste blog, mas vou focar, pelo menos até a Semana Santa, nas exortações sobre a Quaresma.
Nascido em 1872, na Bahia, Dom Miguel foi nomeado Arcebispo de Olinda e Recife em 1922 pelo Papa Pio XI. Nessa arquidiocese criou várias paróquias em bairros com grande crescimento populacional para atender os fiéis com os sacramentos e demais necessidades espirituais. Deus o chamou para Si no dia 7 de maio de 1951.
Dom Miguel foi bispo em uma época (por mais que se possa estranhar, ela existiu meus amigos) em que os bispos se preocupavam mais com a salvação das almas do que com os cogumelos da Amazônia, a salvação do mico-leão-dourado, a preservação do macaco prego e em cultuar a pachamama em “comunhão” com o Papa.
Exortação para a Quaresma de 1929:
Saúde, paz e bênção em Nosso Senhor Jesus Cristo.
Entramos hoje no tempo quaresmal, instituído pela Igreja para expiação das culpas, purificação das consciências e preparação à grande solenidade da Páscoa.
A sagrada Liturgia, com a cerimônia empolgante e profundamente simbólica das cinzas, transporta-nos ao Éden, no momento precioso em que nossos primeiros pais, Adão e Eva, transgredindo o preceito do Senhor, ouvem a voz de Deus que lhes exprobra o crime e intima as merecidas penas. Para Adão, cabeça do gênero humano, a terra ser-lhe-á adversa, produzirá espinhos e abrolhos, dar-lhe-á o sustento a custo do trabalho, será como que amassado com o suor do seu rosto o pão que há de comer, até voltar ele à terra donde saiu, “quia pulvis es ei in pulverem reverteris”: porque é pó e em pó se há se tornar.
A manhã tão linda da criação cheia de delícias e de castos prazeres, quando o homem, rei incontestado, recebia as vassalagens solícitas de todas as coisas na ordem mais bela e perfeita que imaginar se possa, sucedeu a tarde sombria, em que o homem, tomado de cruéis apreensões, sentiu em derredor a natureza esquiva e dentro de si mesmo o pungir de um espinho que era, ao mesmo tempo, conhecimento da própria miséria, pesar, remorso.
Tinha entrado no mundo o pecado, e com ele a dor. Penas, sofrimentos, lágrimas, torturas, trabalhos, canseiras, lutas, reveses iriam suceder-se ao jornadear dos séculos, como partilha indeclinável do homem sobre a terra.
São tudo males e grandes males, contra os quais tantas vezes se revolta o homem, mal aconselhado pelo próprio orgulho. Sem razão, porém. Mal verdadeiro é só o “mal de culpa”, o pecado. E quem é o autor, o responsável pelo pecado, senão o mesmo homem? Deste são consequências necessárias todos os outros que chamamos males, e tem a razão de “mal de pena”. O pecado é desobediência e ofensa a Deus: e Deus não seria justiceiro como é, se o não punisse. Aqueles que, iluminados pela Fé, consideram a malícia quase infinita do pecado, compreendem logo que os males de pena correspondem às finalidades últimas da vida. Por não atenderem a essa relação, é que os maiores pensadores do século, atormentados pelos problemas inquietantes da dor, “deram-lhe as mais disparatadas e também as mais desesperadas soluções. Muitos acabaram negando a Deus ou imprecando a Providência” (Breve Apologia do Prof. J. Ballerini).
Nem é possível, sem as luzes da filosofia cristã, encontrar solução satisfatória para este problema, indisfarçável e irremovível se outra qualquer explicação se aventa. Com efeito, se o prazer fosse o último fim da nossa vida, como se explicaria a dor? Não teria razão de ser. Se, porém, outro e mais nobre é o fim da nossa vida? Se, como diz São Paulo, não “temos aqui habitação permanente, outra nos aguarda no futuro”; se por outra parte, considerarmos que para conseguirmos o verdadeiro fim da nossa vida, fim sobrenatural, a dor é o meio admiravelmente acomodado e eficaz, facilmente compreendemos porque Jesus Cristo, no sermão da montanha, proclamou “bem-aventurados o que choram”.
Para nós, irmãos diletíssimos que temos a graça de ser cristãos, todos esses males e sofrimentos entram na economia da Providência, como elementos de expiação e purificação. Somos todos pecadores, não nos podemos esquecer do padecimento desta vida. Felizes os que sabem sofrer com paciência e humildade, que para eles as penas se convertem em merecimentos. São provações que, bem suportadas, dão direito à “coroa de vida que Deus tem prometido aos que amam”. Ai daqueles a quem o sofrimento irrita e desconcerta! Sofrem ainda mais por isso mesmo que não querem sofrer e, longe de servirem à expiação de passadas culpas, tais sofrimentos lhes atraem novos deméritos: E porque não haveríamos de sofrer? Ouçamos o Apóstolo: “Se compatimur et conglorificamibur”: se não sofrermos com Cristo, não reinaremos com Cristo. Mais: “Tenho por certo que os padecimentos do tempo presente não se podem comparar com a glória que em nós há de ser revelada”.
Com a aparente contradição a distribuição que se supõe desigual, dos males e padecimentos entre os indivíduos, muitos se escandalizam. Vêem afortunados e venturosos homens ímpios, pecadores contumazes, ao passo que pessoas virtuosas, tementes a Deus, passam vidas apertadas, são infelizes em seus negócios e frequentemente visitadas pelo infortúnio. Já o profeta Davi punha em relevo este contraste doloroso da vida, ele mesmo que deixou escrito num dos seus salmos imortais “Junior fui, eternin senui: et non vidi justum derelictum, nec semen ejus quaerens panem”: Fui jovem, agora estou velho, e nunca vi o justo abandonado e nem seus filhos a mendigar pão.
A injustiça arguida é só aparente. Gozam os pecadores? Mas, pecador não há que não tenha feito alguma boa obra, a qual, não sendo digna de prêmio eterno, Deus remunera nesta vida com prêmios temporais. Sofrem os justos? Mas, não há justo, exceção feita de Cristo Senhor Nosso e de sua Mãe Santíssima, que não tenha cometido alguma falta que não deva ser punida com pena temporal.
Ademais, se a vida terrena é de provações, nem sempre os sofrimentos tem razão de pena e castigo. Representam o trabalho do Lapidário divino no facetar as gemas preciosas, que são as almas dos seus eleitos. Os padecimentos dos santos evidentemente entram no plano da redenção do mundo.
Não devemos temer aqui, na terra, sofrimentos. Temer devemos não expiar suficientemente as nossas culpas. Aceitar os males que Deus nos manda e suportá-los em espírito de penitência, é meio ordinário e necessário de expiação. Não basta, porém. Devemos fazer penitência voluntária, advertindo-nos Santos Agostinho que ninguém deve sair deste mundo sem ter feito penitência pelos seus pecados.
Para isto é o santo tempo da Quaresma, no qual a Igreja, mãe amorosa e solícita, nos convida ao arrependimento dos nossos pecados, que é parte essencial da verdadeira penitência, indispensável para o perdão da culpa, e a mortificação corporal, sobretudo pela abstinência e pelo jejum, com que se refreiam a rebeldia da carne, as tendências desordenadas do coração e o orgulho do espírito, e nos tornemos mais dóceis às inspirações da graça divina. São obras de penitência, “meios capazes de aplacar a ira de Deus, abrandar sua justiça e mover seu coração a derramar sobre os homens as torrentes de suas graças e misericórdias”.
Infelizmente, Irmãos diletíssimos, para muitos dos nossos filhos em Cristo o jejum é considerado uma prática obsoleta. E se vão agarrando a mil pretextos fúteis para se esquivarem à observância da penitência quaresmal.
Com as mitigações que a Igreja tem introduzido na Lei do Jejum, sobretudo para nós que gozamos de Indulto Decenal, salvo os legítimos dispensados, nenhum católico, digno deste nome, poderá escusar-se do cumprimento deste preceito eclesiástico. É lei salutaríssima, cujas vantagens não se cansaram de exaltar os Santos Padres da Igreja. O jejum, diz São Leão Magno, nos torna mais fortes contra os pecados, vence a concupiscência, expele tentações, quebra nossa soberba, abranda a ira e alimenta todos os bons afetos de nossa vontade, até que alcancemos virtudes sólidas.
São Jerônimo, na sua apologia salutar à prática do jejum, encontra nas Sagradas Escrituras os mais belos exemplos: assim, jejue quem quiser alcançar de Deus favor para guardar a sua lei que Moisés, jejuando, recebeu no monte Sinai: jejue quem quiser lograr a doce conversação com Deus, como Elias; jejue, se quiser saber os seus segredos, como Daniel; jejue para alcançar de Deus que o livre dos seus inimigos, como Josafat; jejue para vencer as chamas da concupiscência, como os três meninos da fornalha da Babilônia; jejue para alcançar o perdão de todos os seus pecados, como os Ninivitas; jejue para cortar a cabeça do vício que o arrasta, como Judite a Holofernes; jejue para entrar a falar com Deus, rei e esposo seu, como Ester a Assuero; jejue para ser bem sucedido em suas empresas, como os Apóstolos. Com o que fica dito nos contentamos, deixando em silêncio o quanto poderíamos dizer sobre as vantagens higiênicas do jejum. O que presentemente nos move é o prazer de vermos esta lei disciplinar da Igreja conhecida e observada por todos os nossos amados diocesanos. Filhos da Igreja, devemos obediência às suas leis. Mãe amantíssima, não nos lança sobre os ombros carga que não possamos suportar. Por isso mesmo é que no Código do Direito Canônico a lei do jejum e da abstinência perdeu muito da sua antiga severidade, e ainda mais branda se tornou para os fiéis da América Latina, enquanto durar o indulto apostólico que lhes foi concedido. Na vigência desse indulto, já não estamos obrigados a jejuar os 40 dias com os quais a Igreja comemora o jejum de N. S. Jesus Cristo, durante quarenta dias e quarenta noites no deserto. A bem pouco estamos obrigados. Na presente quaresma [de 1929] são dias de jejum e abstinência de carne: Quarta-feira de Cinzas, sextas-feiras da Quaresma. São dias de jejum sem abstinência: quartas-feiras da quaresma e quinta-feira santa.
Importa muito conhecer a doutrina da Igreja sobre a abstinência e o jejum, para que se evitem dois extremos condenáveis: o laxismo e o rigorismo.