Tradução e adaptação de artigo de Joseph Shaw:
Entre as frases familiares do debate sobre a liturgia estão as que envolvem a obediência à Igreja. “A Igreja nos pede…”, “devemos obedecer à Igreja…” e afins, geralmente empregadas pelos partidários da reforma litúrgica. Não está imediatamente claro o que elas significam. O que essas pessoas estão dizendo quando se referem à “Igreja”?
Quando os teólogos querem discernir o “ensinamento da Igreja”, eles podem escolher algum ato “extraordinário” do magistério, como uma definição ex cathedra do Papa, mas muitas vezes não há nenhuma disponível. Sendo assim, eles vão para a Escritura e a Tradição, já que nelas está o Depósito da Fé: elas nos dirão o que a Igreja ensina. Os Padres e os Doutores são testemunhas da Tradição e também extraem suas implicações. Este é o magistério “ordinário” da Igreja e o modo ordinário pelo qual a Igreja transmite o ensinamento que lhe foi confiado por nosso Senhor.
É assim que, normalmente, Deus escolheu se revelar a nós; é assim que, ordinariamente, o Espírito Santo fala à Igreja: através do que foi transmitido. Quando as pessoas são levadas a derrubar a Tradição estabelecida em favor de uma nova leitura radical das Escrituras, talvez inspirada por uma revelação privada, podemos esperar ouvir alguma heresia.
Espero que isso não seja controverso, mas quando se trata da liturgia, uma atitude muito diferente costuma prevalecer. Os progressistas litúrgicos nos dizem que o Espírito os chamou, ou está chamando toda a Igreja, a adotar alguma inovação litúrgica: para dar apenas um exemplo, considere a assistência de mulheres no altar (coroinhas). Isso derruba a tradição de apenas homens e meninos servindo na Missa até onde os registros, que é o final do século 4 (veja o cânon 44 da Coleção de Laodicéia).
A unanimidade da tradição litúrgica aqui é impressionante, mas é posta de lado por duas razões. Uma é que não é uma questão dogmática, mas disciplinar; a outra é que em certo ponto o aparato legal da Igreja nos permitiu não seguir a tradição (pelo menos, na versão “reformada” da liturgia da Igreja Ocidental).
Esses dois argumentos são irrelevantes, entretanto, se aceitarmos que o Espírito Santo nos fala habitualmente através da Tradição da Igreja. Se o Espírito nos fala sobre a doutrina que Deus revelou através da Tradição com “T” maiúsculo, parece muito estranho dizer que devemos ignorar uma tradição litúrgica, quando ela nos fala sobre como Deus deseja que o adoremos. Claro que a liturgia não é doutrina; no entanto, há um paralelo óbvio com o magistério ordinário. Deus revelou um pouco sobre como devemos adorar nas Escrituras, e seria estranho se isso não fosse complementado pelos escritos litúrgicos dos Padres e Doutores e pela prática da Igreja.
O papel das tradições litúrgicas em nos comunicar a vontade de Deus sobre como devemos adorar é sustentado pela ideia de que a liturgia é uma “fonte teológica”, e também diretamente pelo magistério. Lemos na encíclica Mediator Dei (n. 56) de Pio XII, de 1947, que o desenvolvimento da liturgia ao longo dos séculos foi guiado pela Providência:
Como, em verdade, nenhum católico fiel pode rejeitar as fórmulas da doutrina cristã compostas e decretadas com grande vantagem em época mais recente da Igreja, inspirada e dirigida pelo Espírito Santo, para voltar às antigas fórmulas dos primeiros concílios, ou repudiar as leis vigentes para voltar às prescrições das antigas fontes do direito canônico; assim, quando se trata da sagrada liturgia, não estaria animado de zelo reto e inteligente aquele que quisesse voltar aos antigos ritos e usos, recusando as recentes normas introduzidas por disposição da divina Providência e por mudança de circunstâncias.
Essa ideia é repetida pelo Memoriale Domini, a instrução de 1969 que proíbe (com as inevitáveis exceções) a recepção da Sagrada Comunhão na mão. Esses dois documentos defendiam o desenvolvimento da liturgia contra aqueles que queriam fazer uso do que afirmavam ser um costume mais antigo. Quando se trata de uma questão em que não houve desenvolvimento que possamos ver, quando a prática da Igreja foi contínua e imutável desde os primeiros registros que existem até a década de 1990, mas, em oposição a isso, os padres foram autorizados a usar servidores do sexo feminino para “razões locais específicas” (Notitiae 30 (1994) 333-335), o caso é muito mais grave. Deus certamente está nos dizendo, por meio dessa tradição, que o serviço do altar por homens e meninos é algo que Ele deseja. Como essa mensagem poderia ser deixada de lado?
Uma abordagem alternativa seria dizer isso: a liturgia é criatura da Igreja, continuamente sujeita a mudanças por decreto legislativo, mas também é uma fonte teológica, e nos transmite a vontade de Deus, ou seja, o que a liturgia nos diz não é mais nem menos do que o que nossos superiores, aqueles que têm autoridade sobre a liturgia, querem nos dizer, e Deus está falando através deles (deve-se notar que não estamos falando necessariamente do Papa: até Trento os bispos e as ordens religiosas tinham ampla autoridade sobre sua liturgia; as Igrejas Orientais têm um alto grau de autonomia; e assim por diante).
Esta é uma concepção positivista da tradição litúrgica: a tradição litúrgica é apenas o que um legislador com a autoridade legal apropriada nos diz que é. No entanto, uma coisa é aceitar que várias pessoas tiveram ou têm autoridade legal sobre a liturgia; outra é sugerir que isso equivale a um novo órgão do Magistério. O sentido de dizer que a liturgia é uma fonte teológica, um testemunho da Tradição ao lado, embora subordinado, da Escritura e dos Padres, é que ela é o produto de um desenvolvimento orgânico, sob a Providência Divina, e tem em certo sentido a aprovação de séculos de uso na Igreja. Se, em vez disso, for o produto dos caprichos arbitrários de determinados titulares de cargos, então a ideia de que é uma fonte teológica torna-se impossível de manter. Esses titulares de cargos podem ter autoridade magisterial e, se assim for, podem exercê-la da maneira normal; contudo, ao se atribuir um significado especial à liturgia, estamos considerando-a uma fonte diferente de autoridade, não simplesmente outra versão da autoridade mantida por bispos e papas.
Quando falamos do que nos diz a tradição litúrgica como fonte teológica, as liturgias reformadas dos anos 60 têm menos peso do que as tradições litúrgicas milenares, não porque estas tenham sido instituídas por legisladores com maior autoridade, mas porque foram usadas e aprovadas pela Igreja durante vastos períodos de tempo. O que “a Igreja” está nos dizendo para fazer, liturgicamente, não é uma questão de olhar para a legislação mais recente, mas para o que a Providência imprimiu em inúmeras gerações de católicos.
A Igreja nos conta as coisas de várias maneiras, e essas coisas podem até estar em tensão umas com as outras. A tradição litúrgica, no entanto, tem autoridade especial para nos dizer como adorar: essa, certamente, é sua competência central. Se aceitarmos que “a Igreja” tem algo mais do que meros regulamentos humanos para guiar o culto católico, então devemos olhar para a tradição ampla e profunda, mesmo quando isso causa desconforto.