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O deus das surpresas vs. a Tradição no Lava Pés

Texto original: Athanasius Contra Mundum

Publicação: Pela Fé Católica

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Hoje mesmo, a Congregação para o Culto Divino, devido à ordem do Papa Francisco, decretou que as mulheres podem ser incluídas no Mandatum, que é a cerimônia do lava pés que ocorre na Quinta-feira Santa, para observância neste ano. Assim, o deus das surpresas veio visitar-nos apenas a tempo para Septuagésima e o início da Quaresma.

Há muitas coisas a se dizer, mas a mais importante é tratar isto de forma desapaixonada e em união com a Tradição. O Papa Francisco disse que os que resistem a mudanças estão fechados à ação do Espírito, aqueles que se agarram à forma como as coisas sempre foram feitas estão fechados para a mensagem do Evangelho. Apesar da distorção do sentido da Escritura neste particular (meu fundamento para tanto é o [discurso] original italiano das palavras de Francisco, não uma reportagem da mídia), deixemo-la de lado por enquanto. Ele postula uma dicotomia entre aqueles que só querem fazer as coisas da forma como as coisas eram, e aqueles que querem coisas novas. Então nós não recebemos um ensino e uma práxis condicionada pela tradição de sinais e símbolos que nos levam a Cristo, ao ensinamento do Evangelho e da própria pessoa de Cristo, mas sim aos caprichos deste ou daquele momento [histórico]. O que é novo, na moda e inclusivo em nossa época será ultrapassado na próxima.

Além disso, a oposição não é feita por aqueles que dizem que devemos fazer tudo como sempre foi feito, mas, na verdade, pelos que dizem haver uma razão pela qual as coisas são feitas desta forma. Assim, a responsabilidade recai sobre o Papa em explicar por que algo nos sinais e símbolos tradicionais de alguma forma é insuficiente para expressar a realidade do Evangelho. O problema é que ele prescinde disto e simplesmente descreve o oposto como antiquado. Seria diferente se ele mostrasse como os sinais e símbolos tradicionais são insuficientes por algum motivo; isto é possível e a Igreja está, de fato, sempre necessitando de renovação. Mas ele pode mostrar por que a participação apenas de homens, de algum modo, se opõe à expressão plena do Evangelho?

A prática do lava pés de homens expressa a relação de Cristo com seus Apóstolos, e não simplesmente com a comunidade cristã. Ainda assim, por tudo isso, há um amplo testemunho dos Padres que pode ser aplicado também para a comunidade dos fiéis, incluindo exemplos em que os pés de mulheres foram lavados por um Bispo, mas não durante a liturgia Quinta-feira Santa. Mas novamente pode ser excessivo fazer as coisas como sempre foram feitas. O ensinamento dos Padres sobre a questão está bem resumido por Cornélio a Lapide, em seu comentário sobre a passagem em questão do Evangelho (João 12,6-10), o que será suficiente para os nossos propósitos aqui [NdA: A tradução abaixo é minha. Há uma versão muito boa disponível do Loretto, mas eu não a possuo]:

“São Bernardo entende isto como se fosse um sacramento, um símbolo, um tipo, uma figura, um significado místico como ele explica um pouco depois, que vamos dizer mais em breve.

Simbolicamente, Origines e São Jerônimo [epist. ad Damasus, de prima visione Isaiæ] consideram que Cristo lavou os pés dos Apóstolos, a fim de que Ele pudesse prepará-los para pregar o Evangelho, de acordo com o que é dito: ‘Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia e prega a paz; do que anuncia o bem’ [Is 52,7; Rm 10,15].

Em segundo lugar, S. Ambrósio [de iis qui initiateur mysteriis, cap. vi] ensina que Cristo no batismo lava os pecados atuais pela ablução da cabeça, mas aqui pela ablução dos pés, Ele lavou o remanescente do pecado original, isto é, o movimento da concupiscência, para que, lavando seus pés, fossem efetivamente fortificados para que resistissem à concupiscência.

Em terceiro lugar, Santo Agostinho e São Bernardo [de Cœna Domini] dizem: ‘Pelos pés pisamos sobre a terra, significando o amor ao mundo, a sujeira e os defeitos que, enquanto neste século, isto é, enquanto vivemos nos afazeres terrenos, a poeira e a lama em nossos pés convém-nos lavar por lágrimas e penitência, especialmente antes da sagrada comunhão’.

Em quarto lugar, São Cipriano [de Cœna Domini] e São Gregório [lib. epist ix. 39]: ‘Dos pés, que são a parte mais baixa e a última do homem, a purificação significa não apenas que nós devemos examinar nossas obras exteriores, mas que devemos descer até mesmo para os mais profundos e íntimos recantos de nossa consciência e purgá-la de toda mancha secreta e intenção perversa mediante a contrição, lágrimas e gemidos’.

Do lava pés feito por Cristo, do costume de Milão, e de várias outras igrejas, surgiram que o Bispo lavavasse aqueles que estavam na iminência de serem batizados e, posteriormente, os sacerdotes e clérigos na fonte, que ficou posta para este propósito fora da Igreja; depois o Bispo beijava os pés daqueles que ele lavou e eles colocavam a parte externa do pé sobre a cabeça do Bispo. Santo. Ambrósio relata e defende este costume [lib. III de Sacram. cap. 1] e diz que foi iniciado por São Pedro e por Cristo, por isso admirava-se que este não fosse mantido na Igreja Romana. Demais, o Concílio de Toledo [XVII, cap. iii] ratifica que os Bispos e sacerdotes devem lavar os pés dos fiéis na Ceia do Senhor segundo o exemplo de Cristo, e ordena o uso que tinha sido deixado, por um tempo, seja observado.

Santo Ambrósio fala acerca da natureza mística do lava pés [lib. De initiandis, cap. VI] dizendo: ‘Pedro estava limpo, mas teve de ter lavada a sola [do pé]: porque tinha o pecado do primeiro homem por sucessão, quando a serpente suplantou-o e convenceu ao erro; portanto a sola de seu pé é lavada para que o pecado herdado fosse abolido’. Ele alude a essas palavras de Deus para a serpente relativas ao homem: ‘Tu lhe morderás o calcanhar’ [Gn 3,15]. O mesmo Ambrósio [lib. III de Sacram., Cap. 1] diz: ‘Porque Adão foi vencido pelo diabo, o veneno corre nele e sobre seus pés, por isso se lavam os pés, de forma nesta parte, sobre a qual a serpente está à espreita, venha uma maior santificação; para que assim depois ela não possa vencer. Portanto, devemos lavar os pés, de modo a limpar o veneno da serpente. Ainda, é um exemplo de humildade, para que não nos envergonhemos do mistério, que não desdenhemos da obediência’.

Outra razão era mais literal, porque antes os catecúmenos aproximavam-se [do Batismo] com os pés descalços, pois deveriam se conduzir com humildade. Por essa razão, este nudez dos pés é chamada de humildade por Santo Agostinho [lib. de symbolo Catech., cap. 1]; porque eles vão lavar a sujeira que foi contraída pelos pés. Este costume começou a se espalhar da Igreja de Milão para as outras, como atesta Santo Agostinho”.

Agora, nós poderíamos ir além com muitos outros testemunhos sobre o mesmo assunto. O que podemos ver é que as objeções de alguns, de que o padre vai beijar pé de uma mulher no mandatum, não foi um problema para Santo Ambrósio e para os Padres de outras Igrejas para onde este costume se espalhou. De novo a cultura não era tão sexualizada como é hoje, onde se tem fetiche pelos pés e outras coisas imoderadas. Eu não sei se esse pensamento ocorreria à maioria dos padres, mas poderia em certos leigos. Então, se Francisco queria derrubar o costume que prevalece em todas as Igrejas de que apenas os homens tenham os pés lavados, ele poderia apelar para o exemplo nos Padres, de que tais lavagens foram feitas a partir do exemplo do Senhor para a comunidade, homens e mulheres que estavam para ser batizados; e então ele pode ter algum terreno para se sustentar em termos de unir este símbolo na liturgia com o exemplo da antiguidade. Mas sua noção de misericórdia, tão alardeada no último sínodo, no tocante aos adúlteros públicos, poderá ser exposta a ataques do mesmo exemplo. Mais uma vez, Cornélio a Lapide, em João 13,10:

“Note-se, aqui Cristo faz alusão a quem se lava em um banho, sai dele tendo todo seu corpo limpo, mas porque tem de pisar na terra com seus pés descalços, portanto é possível dizer que os pés, por essa razão, são lavados depois. Note-se, em segundo lugar, Cristo fala anagogicamente [isto é, em relação ao estado final do homem] que por Seu costume ascendem de uma lavagem corporal a uma espiritual, em outras palavras, aquele que é lavado, o é espiritualmente pelo Batismo, no qual Eu vos lavei, ó Apóstolos, ou aquele que é lavado através da contrição e da penitência, aqui inteiramente limpo na alma, mas ainda precisa ter os pés lavados, isto é, os afetos da alma, mais uma vez por causa dos apegos terrenos, em que vivem, e são manchados por contágio e contato com a sujeira que devem ser frequentemente purgados através da contrição, do castigo corporal e das outras virtudes (das quais esta Minha purificação é um símbolo), e especialmente antes da Sagrada Liturgia e recepção da Eucaristia.

Assim Santo Agostinho, Beda e especialmente São Bernardo [serm. In Cœna Domini] dizem: ‘Aquele que é lavado, não precisa de nada, a não ser lavar os pés. É lavado aquele que não tem pecados graves, cujas cabeça (a intenção) e mãos (as obras e a boa conduta) estão limpas; mas os pés, que são os afetos da alma, enquanto caminha na poeira do mundo, não pode ser inteiramente do mundo, mas em algum momento pisa na vaidade, luxúria ou curiosidade, isto deve dizer tão mais respeito à alma que a faz sucumbir mesmo hoje. Nós todos ofendemos em muitas coisas. Mas nenhum homem debocha ou despreza. Porque é impossível ser salvo por aqueles, é impossível que eu lave, exceto por meio de Cristo Jesus, e por Cristo”.

Contradizendo, pois, diretamente que Cristo disse que aquele que repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério (Mt 19), que pode ser dito para iluminar esta matéria? Não é um pecado grave?

No entanto, pegando no próximo parágrafo de Cornélio a Lapide, vemos a relação de Cristo com os Apóstolos:

“Portanto, Cristo, lavando os pés de Pedro e dos Apóstolos purifica os pecados, especialmente os veniais, porque através desse ato e só através do Seu perdão incita Ele suas mentes, e adverte-os pela purificação interna através de contrição em suas almas, pela qual os pecados veniais são expiados.

Por esta razão, os sacerdotes no Antigo testamento lavavam os pés e as mãos antes do sacrifício, como já ficou dito. Da mesma forma, muitos pagãos fizeram a mesma coisa, como lembra Brissonius [libi I De Fórmulas Roman, p. 4]. Anteriormente os judeus faziam a mesma coisa, como fica claro em Marcos 7,4; e eles ainda fazem a mesma coisa hoje.

Em seguida, Santo Agostinho [epist. 108 ad Seleucianum ] de “qui lotus est“, conjectura que Pedro e os Apóstolos foram batizados antes da Eucaristia, isso porque nenhum homem é capaz de receber a Eucaristia, a menos que tenha sido batizado, pois depois de Sua morte não batizou nenhum homem, é certo que todos eles foram imediatamente ou mediatamente batizados por Cristo. Por isso, o “lava pés” provavelmente tenha sido feito no Batismo”.

Assim, a relação expressa no lava pés dos Apóstolos com Cristo não é apenas uma relação hierárquica, apesar de isto ser certamente um aspecto, mas uma das mais íntimas comunhões que Seus Apóstolos, como sacerdotes conformes à própria pessoa de Cristo, partilham com Ele, apesar de serem simples homens. Eles são lavados como preparação para o sacerdócio da Nova e Eterna Aliança, na qual o Batismo é necessário, que é o início da morte para o mundo, e um novo nascer em Cristo Jesus. O mandatum, como preservado e transmitido na sagrada liturgia da Quinta-feira Santa, destina-se a preservar esta identificação dos Bispos e sacerdotes como outros Cristos, sendo purificado do pecado e agindo como Ele, ao passo que a Igreja primitiva (como visto em Santo Ambrósio, Santo Agostinho e nos Bispos de outras Igrejas, como menciona Cornélio a Lapide) também procurou incorporar o símbolo do Bispo conformados com Cristo, o servo sofredor que é, no entanto, Deus, no rito do batismo.

Como uma observação, os católicos devem tomar ciência de que a prática de se benzer com água benta quando se entra na Igreja deriva desta antiga prática, motivo pelo qual o costume atual em muitas igrejas modernas de retirar a água benta durante a Quaresma, substituindo-a por areia, é tanto mais inexplicável.

Agora, como observei, o Papa Francisco poderia derrubar essa tradição particular no mandatum sob o desejo de imitar o Batismo dos fiéis, mas se fosse esse o caso, ele deveria dar razões muito claras a respeito do porquê de o antigo símbolo ser ineficaz para isso, ou o motivo por que a expressão do sacerdócio como perfeitamente conformados a Cristo como servos não mais satisfaz e deveria ser expressivo sobre quem somos hoje. De fato, o propósito dos símbolos litúrgicos é lembrar os homens da mudança dos hábitos que os símbolos representam e chamá-los de volta para o Evangelho – ambos, clérigos e leigos –, e não para corresponderem às mudanças [do tempo]. O que o Papa Francisco tem feito é destruir um símbolo sem qualquer fundamentação ou finalidade específica, para torná-lo no que hoje é tido como inclusivo. E é aí que reside o verdadeiro problema. Um amigo protestante muito adequadamente fechou o raciocínio falho desta iniciativa na seguinte sátira:

“Eu, por meio disto, tenho a honra de propor que um equivalente moderno razoavelmente preciso de Jesus lavando os pés dos discípulos seria Ele lavar os pratos deles. No entanto, isso seria mais difícil de encaixar-se no culto da Quinta-feira Santa.”

Será que o Papa Francisco é o único a fazer as coisas como elas sempre foram feitas — desde 1965?

TRADUÇÃO: José Napoleão Godoy

REVISÃO: Thiago Santos de Moraes

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Uma resposta em “O deus das surpresas vs. a Tradição no Lava Pés”

Caros Karlos e Thiago, não gosto dos “ventos” que estão soprando dentro e sobre a Igreja. Depois do Vaticano II parece que houve uma tempestade que varreu a Igreja de tal modo que entronizaram a NOVIDADE como algo sagrado. Reconheço alguma sabedoria no texto conciliar, mas a Missa Nova foi uma tragédia. Os tempos são difíceis para a Igreja e vão ficar piores.

Parabéns pelo belo texto, tradução e revisão. Que Deus os abençoe! Nos abençoe também!

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