Texto do confrade Rui:
É fato que o magistério infalível não se pronunciou a favor de nenhuma escola na Controvérsia dos Auxílios, que teve lugar entre a doutrina de Santo Tomás, tal como desenvolvida por Domingo Bañez, OP, e a doutrina do jesuíta Luís de Molina. As duas doutrinas diferem, basicamente, no papel dado à causalidade divina (que tem que ser universal) e à liberdade humana (entendida como autodeterminação em relação à Causa primária, pela escola molinista). Como os católicos não são livres para tacharem de censuras as escolas, mas são livres para defenderem seu ponto de vista, como fazem e fizeram muitos teólogos, como Marin-Sola, Billot, Garrigou-Lagrange, eu coloquei aqui as principais dificuldades filosóficas do molinismo, que o tornam incompatível com a filosofia.
O molinismo (e outros sistemas que não aceitam a premoção física, ou seja, o concurso divino anterior à vontade e predeterminante sobre ela) apoiam-na na ciência média, que seria a ciência que Deus teria dos atos dos quais não é ou não seria Causa primária, por conta da faculdade de autodeterminação humana.
A questão da ciência média enfrenta uma grave dificuldade filosófica: a essência de Deus é idêntica aos Seus atributos, porque em Deus não há absolutamente nenhuma composição. Isso significa que não há distinção real entre Deus e a ciência de Deus. Ora, se Deus é Causa de todas as coisas, e não efeito, é evidente que a ciência de Deus (independente da distinção que lhe faça, se ciência de visão, que é a ciência do ser contingente em ato; se ciência de simples inteligência, que é a ciência do possível; ou se ciência média, que conhece os atos futuríveis livremente determinados) é Causa de todas as coisas e nunca efeito.
E, como Causa que é esta ciência, não pode ter uma relação de subordinação com os efeitos que conhece, como se Deus conhecesse, na ordem lógica e não temporal, o que o homem irá decidir livremente, como ser determinado e não Determinante.
Aqui, a meu ver, não cabe a analogia com o fato que entende que a ciência que Deus possui do contingente é imutável e absoluta em si mesma, e contingente apenas nos seus aspectos terminativos, isto é, apenas no que diz respeito ao objeto conhecido.
Mesmo que considerássemos que a ação livre do homem é autodeterminada apenas em seu aspectos terminativos, e não no modo como Deus a conhece, omite-se uma relação que não pode ser outra senão uma relação de causalidade, relação esta que subordina o conhecimento de Deus e não o objeto no qual Ele termina. Já no primeiro exemplo, não temos essa dificuldade porque podemos dizer que, numa ordem superior, tais seres queridos livremente por Deus não são contingentes, enquanto são contingentes considerando o que têm de si mesmos, sem forçar nenhuma relação subordinativa com a ciência divina.
Deste modo, a maior dificuldade do molinismo (a que pese não seja um sistema herético, e nem reprovado pela Igreja) é com a boa filosofia. E eu, pessoalmente, acredito que sequer o magistério infalível pode contradizê-la.
Além disso, há outra questão filosófica que pode ser colocada: a vontade, assim como a inteligência, são faculdades da alma que se põem em ato, não só em relação aos fins, como também em relação aos meios. O que diz a filosofia? Nenhum ser que esteja em potência pode passar ao ato senão por intermédio de outro ser em ato. Desta forma, a vontade humana (e, por conseguinte, a alma humana) não pode simplesmente pôr-se em ato sozinha, ainda que, por sua natureza espiritual e racional, não caia sob o pleno domínio da criatura irracional, consistindo nisso a liberdade apregoada pelo tomismo. Daí ser necessário que Deus passe a vontade humana da potência ao ato.
Em vários anos de investigação, eu nunca encontrei uma resposta molinista satisfatória para essas questões filosóficas.
Considerando que o molinista responda que a ciência divina dos futuríveis livres possui apenas uma relação terminativa e não causal com tais futuríveis livres, cabe ainda perguntar: Não estaria aí separada, distinta, a vontade e a inteligência na essência de Deus? Uma vez que Deus é simples, é certo que Sua inteligência é idêntica à Sua vontade, e não há como Deus conhecer esses futuríveis livres sem os querer, e, por isso, os predeterminar.
3 respostas em “Tomismo, molinismo e a filosofia”
Rui, por que você não usou a palavra predestinação no texto?
Outra: a tese tomista é a mesma da predestinação incondicionada agostiniana (supondo que Sto Agostinho realmente a defendeu)? Se sim, por quê, como isso não é fatalismo, determinismo, etc.?
Obrigado.
No opúsculo “Se se deve rezar pela salvação do mundo” (“Do Papa herético e outros opúsculos”), o prof. Nougué diz que a íntima relação entre a predestinação e a graça é que aquela está para esta como a causa para o efeito. E chama à tese tomista agostinismo-tomismo, dizendo que, sim, Sto Tomás se baseou em Sto Agostinho neste assunto, como no tratado da Trindade.
Quanto a não ser determinista e, pois, contra o livre-arbítrio, é que o mesmo livre-arbítrio se referiria apenas ao naturalmente alcançado pela própria natureza humana, não ao sobrenatural.
Meu último comentário sobre o livre-arbítrio é interpretação minha de seu papel na tese tomista, não que Nougué diga isso no referido opúsculo.