Continuando a séride postagens sobre o Rosário e os Mistérios Luminosos, apresento agora uma tradução de um texto do famoso articulista católico Christopher A. Ferrara publicado no site do jornal The Remnant no dia 23 de junho de 2010:
O “Novo” Rosário: já é tempo de dizer adeus
“Os fiéis vão concluir que o Papa mudou o Rosário, e o efeito psicológico será um desastre. Qualquer mudança nele não fará outra coisa que diminuir a confiança dos simples e dos pobres.” (Paulo VI)
Na edição de 15 de maio do The Remnant notei uma propaganda dos Cônegos Regulares de São João Câncio promovendo o “Rosário Tradicional” e recomendando que rezemos o “Saltério de Nossa Senhora – 150 Ave Marias”. A referência ao Saltério chama a atenção, pois o Rosário é modelado no antigo Saltério de Davi: são 150 canções para Maria (50 Ave Marias para cada um dos três mistérios – Gozosos, Dolorosos e Gloriosos -, uma oração trina à Mãe de Deus).
A referência ao Saltério chama a atenção por outra razão: indiretamente perfaz um comentário negativo sobre o “novo” Rosário de João Paulo II, que adicionou cinco “Mistérios Luminosos”, ou seja, mais 50 Ave Marias, à forma tradicional dessa devoção. Isso faz um total de 200 Ave Marias, o que destrói completamente a correspondência com os 150 Salmos; o Rosário não é mais o “Saltério de Maria”. Então, obviamente, ele também não é mais trino, já que se dividiria em quatro partes (Mistérios Gozosos, Luminosos, Dolorosos e Gloriosos).
Que esse “novo” Rosário é uma inovação benfazeja o prova o comentário positivo publicado no New York Times, inimigo implacável do catolicismo tradicional: “Mais uma vez”, escreveu Frank Bruni, “o Papa João Paulo II tem corajosamente ido onde outros papas não tinham: uma sinagoga, uma pista de esqui, países distantes com pequena população. Na quarta-feira, ele aparentemente cruzará outra fronteira, fazendo uma mudança significativa no Rosário, um método distintivo de oração dos católicos com muitos séculos de existência”. O artigo cita um “alto funcionário do Vaticano” para afirmar que essa mudança está em harmonia com a “coragem e criatividade do Papa” (“Pope is Adding New Mysteries to the Rosary,” Frank Bruni, The New York Times, 14 de outrubro de 2002).
A tradição eclesiástica exclui a “criatividade”, já que a própria noção de tradição – traditio – envolve entregar o que se recebeu. Tampouco foi “corajoso” que o Papa mudasse o Rosário, já que a coragem é “o estado ou a qualidade da mente ou do espírito que permite enfrentar o perigo, o medo, ou as vicissitudes com segurança, confiança e resolução; bravura”. João Paulo II não enfrentava nenhum perigo, medo ou vicissitude que o obrigasse a mudar o Rosário. Por outro lado, se o perigo ou o medo surge da própria mudança, precisamente porque o Rosário tem sido “um método distintivo de oração dos católicos com muitos séculos de existência”, então não estamos lidando com um ato imprudente em vez de corajoso?
Os neoconservadores ao conhecerem a novidade, os mesmos que engoliram as acólitas de João Paulo II sem protesto e insistiam que a Missa em latim tinha sido “banida” por quarenta anos, vão dizer que esse é mais um exemplo de implicância tradicionalista: “150 ou 200 Ave Marias, três ou quatro partes – qual a diferença?” Vou deixar alguém que sabia alguma coisa sobre o Rosário responder por mim. Ele escreveu:
O Rosário (Terço-Coroa) da bem-aventurada Virgem Maria, segundo a tradição que foi acolhida e autorizadamente proposta pelo nosso predecessor São Pio V, consta de vários elementos, dispostos de modo orgânico:
a) a contemplação, em comunhão com Maria, de uma série de mistérios da Salvação, sapientemente distribuídos em três ciclos que exprimem: o gozo dos tempos messiânicos; a dor “salvífica” de Cristo; e a glória do divino Ressuscitado que inunda a Igreja. Uma tal contemplação, pela sua natureza, conduz à reflexão prática e suscita estimulantes normas de vida.
(…)
c) (…) A série continuada das Ave-Marias é uma característica peculiar do Rosário, e o seu número, na forma típica e plenária de cento e cinqüenta, apresenta uma tal ou qual analogia com o Saltério e é um dado que remonta à própria origem do piedoso exercício. Mas esse mesmo número, de acordo com um costume comprovado, dividido em dezenas coligadas a cada um dos mistérios, distribui-se nos três ciclos acima mencionados, dando lugar ao conhecido Terço, de cinqüenta Ave-Marias, o qual entrou em uso qual medida normal do mesmo exercício e, como tal, foi adotado pela piedade popular e sancionado pela Autoridade pontifícia, que o enriqueceu com numerosas indulgências.
Sem dúvida, minha citação desta fonte suscitará a nova objeção neoconservadora de que os tradicionalistas, mais uma vez, estão apresentando um comentário que demonstra que se consideram “mais católicos do que o Papa”. No entanto, há um problema: a citação acima é de um Papa. Além disso, o Papa não é outro senão Paulo VI, escrevendo em Marialis Cultus (1974) – uns 28 anos antes de João Paulo II ter proposto seu “novo” Rosário em lugar do tradicional.
Os tradicionalistas concordam certamente com Paulo VI que o Rosário tradicional é “sapientemente distribuído em três ciclos”, que ele tem uma “analogia com o Saltério”, “um elemento que remonta à própria origem do exercício da piedade”, e que estes elementos tradicionais – que seriam negados pela introdução de quatro partes envolvendo 200 Ave Marias – “estão de acordo com a tradição aceita por… São Pio V e autoritativamente ensinados por ele”.
E, de fato, nós, tradicionalistas, concordamos também com a observação do Papa Paulo na Marialis Cultus de “que a tríplice divisão dos mistérios do Rosário, não só coincide de maneira perfeita com a ordem cronológica dos fatos, mas sobretudo reflete também o esquema do primitivo anúncio da fé e evoca o mistério de Cristo, daquele mesmo modo como ele é visto por São Paulo, no célebre ‘hino’ da Epístola aos Filipenses: despojamento, morte e exaltação (cf. 2,6-11)”.
Dois anos antes de promulgar a Marialis Cultus, Paulo VI rejeitou a infame proposta de Annibale Bugnini de “reformar” o Rosário para que o Pai Nosso fosse recitado apenas uma vez no início, a Ave Maria editada para incluir apenas “a parte bíblica da oração”, e a “Santa Maria, Mãe de Deus…” fosse dita apenas “no final de cada dezena”.
O Papa Paulo VI respondeu a esta ridícula ideia através do Secretário de Estado do Vaticano: “Os fiéis concluirão que ‘o Papa mudou o Rosário’ e o efeito psicológico seria desastroso …. Qualquer mudança nele não fará mais que diminuir a confiança dos simples e dos pobres “. No mesmo ano em que a Marialis Cultus foi emitida, Bugnini foi demitido e enviado para o Irã, depois que Paulo VI leu um dossiê que documentava sua afiliação maçônica – Bugnini admitiu esse dossiê em sua autobiografia.
Assim, o Rosário foi poupado do destino da Missa. Que tragédia é que o Papa Paulo VI tenha encontrado a coragem de assumir a posição da tradição apenas no Rosário, tendo já entregue o próprio coração do culto católico às depredações dos inovadores (ele só percebeu tarde demais). O Rosário pode ter sido poupado, mas Bugnini já tinha destruído o alvo principal. Missão cumprida.
Pelas próprias razões expostas por Paulo VI, é que João Paulo II não tinha o direito de substituir o Rosário tradicional por algo novo que ninguém havia pedido. E é por essas mesmas razões que João Paulo não o fez, mas deixou claro na Rosarium Virginis Mariae que seus “novos” mistérios são apenas “uma adição proposta ao padrão tradicional” para ser “deixada à liberdade dos indivíduos e comunidades “. Em outras palavras, o “novo” Rosário é mais uma opção pós-conciliar que os neoconservadores e assemelhados considerarão, de modo previsível, como de fato obrigatória.
No entanto, quase oito anos depois, muito poucos católicos podem nomear os “Mistérios Luminosos”. Para a maioria dos católicos, os mistérios luminosos são mistérios nebulosos. Deveríamos deixá-los assim. Quanto menos se falar sobre eles, melhor. Deixemo-los desaparecer da memória, assim como a Missa de Bugnini vai desaparecer da memória no tempo de Deus.
O Rosário tradicional, no entanto, vai durar, assim como a Missa tradicional vai durar, não importa quão poucos católicos permanecem dedicados a ele no momento. Como todas as outras novidades que tentaram enraizar-se na camada fina e árida da “renovação do Vaticano II”, o “novo” Rosário será varrido pelos ventos da mudança – os ventos que vêm da mesma Fonte eterna que restaurará a Igreja, apesar dos planos daqueles que pensam que a “renovação” ainda tem um futuro.
4 respostas em “O Rosário e os Mistérios Luminosos (2): já é tempo de dizer adeus”
Thiago, conhece a crítica do Pe. Peter Scott, FSSPX? É das melhores que li sobre o assunto.
Conheço. Ela tem pontos interessantes, mas, na minha visão, também tem certas “viagens” e alguns princípios que são inaceitáveis (como dizer que certos mistérios luminosos são problemáticos em si mesmos – rejeitei isso no primeiro texto sobre este tema).
Oi, Thiago! Quais são os dias para se contemplar cada conjunto de mistérios do Rosário tradicional?
Mistérios Gloriosos: domingo, quarta e sábado;
Mistérios Gozosos: segunda e quinta;
Mistérios Dolorosos: terça e sexta.