Texto do professor Flávio Brayner (Jornal do Commercio, Recife, 15 de fevereiro de 2017):
Há 75 anos, fevereiro de 1942, o escritor austríaco Stefan Zweig e sua 2ª esposa, Lotte, davam fim às suas vidas em Petrópolis, quando souberam dos horrores que os nazistas estavam praticando na Europa. A última novela de Zweig foi escrita no Brasil – O Jogador de Xadrez. O personagem principal, um campeão mundial de xadrez, Czentovic, dá seu lugar de protagonista a um outro, um obscuro passageiro que se encontra no navio (onde se passa a história) que faz a viagem de Nova Iorque para Buenos Aires. Czentovic, um arrogante enxadrista aceita, para passar o tempo, jogar uma partida contra vários adversários e, no meio deles, encontra-se alguém que – embora não jogue há mais de 20 anos – sopra jogadas que forçarão o campeão a declarar um desmoralizante “empate”.
O narrador descobre, numa longa conversa de convés com esse estranho, tratar-se de um advogado austríaco que conseguira esconder dos nazistas os bens de instituições religiosas e que, denunciado, é preso pela Gestapo em condições aterradoras: um quarto sem janelas, apenas com uma cama e a proibição de que qualquer pessoa lhe dirija a palavra. Meses de silêncio e isolamento, a perda das noções de tempo e espaço, morto em vida, um homem diante do nada, até que… é chamado para o primeiro interrogatório. Na espera, que dura várias horas antes de ser interrogado, descobre no casaco de um oficial, posto a secar, um livro! Rouba-o e descobre mais tarde, já em sua cela, tratar-se de um manual de xadrez repertoriando as mais importantes partidas dos dez maiores enxadristas mundiais. Em seu absoluto isolamento, refaz na imaginação cada partida, coloca-se no lugar dos adversários, joga contra si mesmo, imagina “simultâneas”, compreende as estratégias, as armadilhas, prevê lances futuros, tudo isso sem uma peça sequer de um tabuleiro real! Próximo à loucura é libertado e… encontra-se, agora, a caminho da Argentina.
Zweig, autor de O Mundo de Ontem – uma elegia sobre a derrocada dos valores morais e intelectuais que forjaram a Europa até a 1ª Guerra – retoma nesta novela a crença que lhe foi cara (e para tantos intelectuais daquela Europa): a de que poderíamos ser salvos pelos livros e pelos padrões elevados de cultura. Há, hoje, algum “livro” que poderia nos salvar da barbárie já a caminho? Pessoas religiosas diriam que sim, mas, numa sociedade tão secularizada como a nossa, que destruiu o Inferno e não crê nas vantagens do Céu, penso que perdemos a noção da importância dos valores transcendentes que a cultura proporciona.