Texto de Peter Kwasniewski traduzido por Cláudio e revisado por Thiago:
Um dos tópicos mais disputados no Sínodo sobre o Casamento e a Família, naqueles felizes anos de 2014 e 2015, foi a possibilidade de admissão à Sagrada Comunhão dos que vivem no que é eufemisticamente chamada de “situação matrimonial irregular” – ou seja, objetivamente, numa situação de adultério. Essa disputa tomou seu lugar ao lado do confronto longo entre os hierarcas da Igreja sobre se a lei canônica deveria realmente ser seguida quando afirma que os pecadores notoriamente públicos – por exemplo, os políticos que dizem ser católicos, mas aprovam o aborto, ou que uniões homoafetivas sejam chamadas de “casamento” – deveriam ter negada a Sagrada Comunhão.
Para mim, o mais impressionante é que nós estamos tendo uma conversa sobre matérias que foram decididas no início do cristianismo, como pode ser visto no Novo Testamento ou nos Padres da Igreja. Surge então a questão: estão simplesmente os católicos inconscientes dos ensinamentos do Evangelho, de São Paulo, e de outros livros das Escrituras no que concerne aos graves males da imoralidade sexual, incluindo a fornicação, o adultério e a sodomia? Estão os católicos inconscientes do solene ensinamento de São Paulo contra a indigna Comunhão Eucarística, que é um pecado mortal e que trará a condenação eterna se não houver o arrependimento? Nas pregações e liturgias, os católicos não são regularmente expostos à luminosidade do ensinamento das Escrituras sobre a bondade, santidade, permanência, fecundidade e hierarquia interna do casamento cristão?
Infelizmente, sente-se que, depois da reforma litúrgica de Paulo VI [N.T.: não apenas da Missa, mas de todos os Sacramentos], a resposta para essa questão é, na melhor das hipóteses, um sim fajuto – e, na pior, um retumbante não.
Alguém poderia razoavelmente supor que uma vez que os compiladores do novo Lecionário tinham decidido impor três anos para os ciclos dominicais e dois anos para os ciclos semanais, aumentando neles mesmos duas ou três vezes a quantidade de leituras na Missa, não deixariam de incluir todas as perícopes da Liturgia Romana Tradicional e que, em sua marcha através de vários livros da Bíblia, não omitiriam nenhuma passagem chave.
Ao invés disso, os reformadores litúrgicos tomaram uma decisão programática de evitar o que julgaram ser textos bíblicos “difíceis”, viessem tais dificuldades de questões crítico-exegéticas ou do mero fato dos textos serem “de difícil compreensão para os fiéis” [1]. Assim, no vasto novo Lecionário, os versículos 27 a 29 da Primeira Carta aos Coríntios, capítulo XI, nunca aparecem:
Portanto, todo aquele que comer o pão, ou beber o cálice do Senhor indignamente será culpável do Corpo e do Sangue do Senhor. Que cada um se examine a si mesmo e, assim, coma desse pão e beba dessa cálice. Aquele que o come e o bebe sem distinguir o Senhor, come e bebe a sua própria condenação. [2]
Esse aviso contra a recepção do Corpo e do Sangue do Senhor indignamente não tem sido lido no Novo Rito da Missa nos últimos cinquenta anos!
Em contraste, a Missa Tradicional – a Missa da qual se foi elegantemente dito que “tinha uma seleção de leituras muito restrita” – proclama esses versos salutares ao menos três vezes por ano: uma na Quinta-Feira Santa e duas em Corpus Christi (e se o fiel assistir à Missa votiva do Santíssimo Sacramento, ele ainda os encontrará mais uma vez). Os católicos que participam do usus antiquior são induzidos a não terem as palavras desse ensinamento fora de suas consciências.
Outro exemplo de omissão – ou para falar de modo mais preciso, de encorajamento de omissão – envolve a doutrina da subordinação das esposas aos seus maridos, que é ensinada repetidamente no Novo Testamento.
Na Festa da Sagrada Família, a segunda leitura do Novus Ordo é Col III, 12-21, mas os versos 18-21 (“esposas, sejam submissas aos seus maridos, porque assim convém no Senhor, etc.), foram excluídos da “forma breve” [3]. Como se por artimanha dos padres, essa forma é geralmente a escolhida. A passagem paralela de Efésios V, 21-32 é lida na terça-feira da 30ª Semana do Tempo Comum no Ano 2, e quando ela vem no 21º Domingo do Tempo Comum, Ano B, os versos sobre a submissão das esposas são, mais uma vez, excluídos da forma breve. Outro trecho paralelo em I Pedro III, 1-9 está enterrado em um conjunto de leituras opcionais [4]. Então, os católicos que assistem a Missa todos os dias ouviriam essa doutrina uma vez a cada dois anos, enquanto os católicos que vão à Missa apenas aos domingos talvez nunca a ouvissem.
Outro exemplo, não apenas de omissão, mas de exclusão, pode ser visto nas leituras da Missa Nupcial.
A Missa Nupcial do Rito Tradicional sempre apresenta duas leituras: Efésios V, 22-33 e Mateus XIX, 3-6. A passagem de Efésios traça que a união do marido e da mulher deve ter como modelo a eterna e indissolúvel união de Cristo e sua Imaculada Esposa (a Igreja), proclamando “o grande mistério” do amor esponsal à medida que ele se estabelece em cada casal cristão. A passagem de São Mateus declara Deus como autor do homem, da mulher e do pacto matrimonial, e o divórcio como contrário à sua Lei. O Gradual é o Salmo CXXVII, 3: “Tua mulher será em teu lar como uma vinha fecunda. Teus filhos em torno à sua mesa serão como brotos de oliveira”. As leituras apropriadamente selecionam os três bens, ou bênçãos, do casamento: descendência, fidelidade e sacramento.
O Lecionário revisado, por outro lado, oferece nove opções do Antigo Testamento para a primeira leitura, treze opções do Novo Testamento para a segunda leitura, sete opções para o salmo responsorial e dez opções para o Evangelho. Apesar das três leituras tradicionais terem sido incluídas nessa salada de 39 leituras, não podemos ficar surpresos se os jovens casais, possivelmente sobrecarregados pelo número de opções e sentimentos um pouco tímidos quando se vem a falar de crianças, indissolubilidade e subordinação, tendem a escolher leituras (ou as terem escolhidas por outros) que são mais sentimentais e otimistas, como I Cor XIII ou João XV. Vivendo como nós, perdidos no meio da cultura descartável do liberalismo e do igualitarismo maluco, já houve um tempo na história da Igreja em que a clara e sublime doutrina aos Efésios e Mateus fosse mais necessária? [5]
A rara leitura de Efésios V enfraquece duas coisas simultaneamente: primeiro, a eclesiologia do matrimônio, que é a pedra de toque para entender o que Cristo é e quem nós somos em relação a Ele; segundo, a antropologia teológica que defende a necessária heterossexualidade, procriatividade e indissolubilidade natural do vínculo matrimonial enraizado nesse mistério eclesial. Se a doutrina de Efésios V e Mateus XIX não é parte da nossa consciência coletiva e de nossa profissão de fé, será fácil ver a Igreja como uma instituição burocrática e humana que atende as reais e ilusórias “necessidades” dos seus membros individuais, e enxerga o matrimônio como relacionado primordialmente com o sentimento, a conveniência e a gratificação mútua.
Isso pode explicar, em parte, o motivo dos homossexuais acharem tão ofensivo lhes ser negado um casamento na Igreja. Se eles estão concebendo a Igreja como um notário religioso pronto a autenticar o certificado de dois batizados católicos, é ofensivo ter negado um ato tão simples de aprovação legal. É como se alguém dissesse que não é “bom o suficiente” para receber as congratulações e honras oficiais – como se fosse uma segunda classe de cidadão. É claro, em todo caso, que as partes ofendidas não têm a mínima concepção do sagrado mistério que dá sentido ao matrimônio cristão, fundado na diferença metafísica e complementar entre os sexos.
Deve-se dizer, com razão, que a autoconsciência da Igreja como Esposa de Cristo e Mãe dos Homens sofreu um enfraquecimento com as décadas de mudanças litúrgicas e experimentos, de modo que tal verdade não é mais comunicada com clareza e confiança, e nem os esposos veem a si mesmos como chamados a imitar esse amor nupcial.
Existem muitos outros fatores no mundo moderno e na Igreja moderna que militam contra a internalização nos casamentos dos ensinamentos de Efésios V. Ainda assim, seria difícil sustentar que a marginalização litúrgica dessa leitura não teve participação na gênese do problema [a]. O que está acontecendo com tais omissões ou marginalizações no Lecionário é bem simples: envergonhados pela doutrina divinamente revelada e a atitude espiritual a ela vinculada, certos membros da Igreja preferem não mencioná-la.
Católicos que assistem à tradicional Missa Nupcial sempre serão desafiados pelos ensinamentos de Efésios V, do Salmo CXXVII e de Mateus XIX. Católicos que atendem ao rito antigo da Missa da Quinta-Feira Santa ou de Corpus Christi sempre ouvirão aqueles versos iniciais de I Coríntios XI. Não podemos deixar de nos perguntar se a resposta da Igreja para o, assim chamado, “casamento gay” ou a comunhão para os que vivem em adultério seria diferente se, ao longo do último meio século, ela tivesse lido constantemente passagens das Escrituras sobre a relação correta entre os sexos, a indissolubilidade do matrimônio, os graves males dos pecados contra a castidade e o perigo das comunhões indignas.
O Lecionário Romano secular pode ser caracterizado pela seriedade com que repete as lições fundamentais, ano após ano, visando não tanto a exposição de uma ampla faixa de porções bíblicas, mas o reforço de mandamentos, a inculcação de princípios de vida e da Fé. O Novo Lecionário, com sua omissão de passagens “difíceis”, opções numerosas e enorme número de leituras, diluiu com sucesso a transmissão da mensagem da Escritura e distraiu os fieis dos ensinamentos fundamentais que eles precisam ouvir constantemente.
Por fim, da próxima vez que alguém lhe disser: “Ok, eu entendi: a Missa tradicional em latim tem muitas virtudes, mas você tem que admitir eu o novo Lecionário foi uma grande melhora!”, você pode responder: “Tem um minuto? Não é tão simples assim…”.
Notas do Autor
[1] General Introduction to the Lectionary, 76. Anthony Cekada, Work of Human Hands: A theological Critique of the Mass of Paul VI (West Chester, OH: Philothea Press, 2010), 265-72. Citando o Pe. Cekada, eu admiro sua cuidadosa pesquisa, mas não compartilho sua conclusão sobre a validade da Missa Paulina.
[2] Na Quinta-Feira Santa, no rito antigo, a Epístola é Coríntios XI, 20-32, que é a mais completa passagem se olharmos o contexto original da carta; na Missa Nova, é I Coríntios XI, 23-26, simplesmente a narração da instituição da Eucaristia. Dado que a Instrução Geral do Lecionário diz que a a nova seleção de leituras incorpora a ideia de que as leituras deverão formar uma única ação com e para a Eucaristia, a omissão de I Coríntios XI, 27-29 pode ser classificado como uma inconsistência própria dos reformadores no que tange ao propósito das Escrituras na Missa. Por outro lado, talvez tenham pensado que falar em algum castigo na festa do Amor da Eucaristia seria “difícil para os fiéis entenderem.”
[3] Uma observação interessante: não há forma curta indicada para Efésios V, 21-32 ou Colossenses III, 12-21 no Ordo Lectionum Missae (cf. p 13, 68). De acordo com padre Felix Just, S.J., as formas curtas foram adicionadas como opções na segunda edição em 1998 do Lecionário Norte Americano (vejam aqui). Parece, portanto, que os bispos americanos (bem como os ingleses e galeses) em algum momento pediram a Roma permissão para inserir essas formas curtas em seus lecionários como “adaptação” depois de pressão das feministas. Em 1980 o comitê consultivo da ICEL publicou uma declaração sobre “o problema da linguagem exclusiva com respeito às mulheres”, no qual se lê: “Alguns textos litúrgicos implicam na inferioridade da mulher e na sua natural submissão aos homens. Esses textos geralmente são bíblicos ou biblicamente inspirados e refletem a cultura na qual foram compostos ou uma argumentação teológica culturalmente condicionada. Um exemplo seria a sujeição das esposas aos maridos indicada em Efésios V e em Colossenses III. O problema que surge desses textos pode, em muitos casos, ser evitado por uma tradução mais cuidadosa. Em outros casos, versos particulares ou partes inteiras devem ser tirados do uso litúrgico, e há uma ampla precedência para tal seletividade” (Eucharistic Prayers: For study and Consultation by the Bishops of the Member and Assiciate Member Countries of ICEL, Green Book [October 1980], p. 67).
[4] Leitura 740.14.
[5] O Catecismo da Igreja Católica evita ensinar a subordinação das mulheres aos maridos, substituindo-o por uma nova doutrina de mútua subordinação (veja n. 1642, mas também os números 369-72, 1616, e 1659, eloquentes em suas omissões). Em contraste, o Catecismo Romano de forma direta transmite o ensinamento das Escrituras nesse ponto: veja o Catecismo Romano de Trento para Párocos, nº 339, 346, 352. Esse é o tipo de defeito, associada à manipulação papal, que causa a seguinte pergunta: Quão bom é o novo catecismo?
Nota do revisor
a. A frase original teve de ser substituída por uma que correspondesse à ideia do parágrafo. Certamente o autor se confundiu ao redigi-la.