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Contra o catolicismo burguês

Texto de Rafael Diehl, publicado originalmente no FB sob o título “Contra o catolicismo burguês e elitista” (a postagem conta com autorização expressa do autor e passou por revisão ortográfica e harmonização de estilo). Não concordo com tudo que foi escrito, a começar do título, já que entendo que ele fez uso de uma significação distorcida da palavra elite, contudo, existem ótimos pontos para reflexão. Leiam:

“Ai também de vós, doutores da Lei, que carregais os homens com pesos que não podem levar, mas vós mesmos nem sequer com um dedo vosso tocais os fardos” (Lucas XI, 46)

Como reação a alguns segmentos católicos de tendência marxista surgidos nas décadas de 1960 e 1970 na América Latina (e que seria errôneo taxar como “Teologia da Libertação”, já que a TL abarca desde teólogos de influência claramente marxista como um Leonardo Boff até teólogos extremamente críticos do socialismo como Oscar Romero) alguns setores do laicato e clero católico brasileiro começaram, lá por volta dos anos 2000, ainda nos tempos do Orkut, a flertarem com teses do liberalismo econômico e da Escola Austríaca de economia como se fossem essas linhas de pensamento compatíveis com a Doutrina Social da Igreja Católica (DSI).

Passados cerca de 20 anos, hoje vemos o fruto dessa funesta aventura intelectual: o surgimento de grupinhos elitistas católicos (insuflados pelo meio virtual, mas bem reais no mundo real, se me permitem o pleonasmo) que passam a imporem regras de modo de vida familiar e econômico aos casais católicos. Aliado a isso, uma série de redes de sociabilidade virtual de promoção alimentadas por ideias do marketing e das teses mais cruéis do mundo corporativo e empreendedor. Vende-se a ideia de que toda mãe católica pode ser empreendedora em casa para não ter de trabalhar fora e de que todo marido pode fazer muito dinheiro (é só deixar de lado descanso, lazer e outras “futilidades”). O catolicismo virou para esses grupos uma espécie de “produto”, que é necessário comprar todo um pacote ideológico. Vejamos alguns deles:

1) A mulher católica deve sempre buscar agradar o marido. Estar sempre arrumada dentro de casa mesmo fazendo os afazeres domésticos. Não deve reclamar do dia fatigado que teve quando o marido chega em casa, mas preocupar-se somente em agradá-lo;

2) O marido deve se impor sobre a casa e deve ser o provedor, buscar ganhar mais do que a esposa, pois se ganhar menos será desprezado e a esposa não se sentirá atraída e protegida por ele. A presença do marido em casa “atrapalha” a criação dos filhos pela esposa, então ele deve gastar todo seu tempo e energia e se virar para arrumar dinheiro através de criatividade e empreendedorismo;

3) O marido que não consegue ganhar bastante dinheiro é um “fraco” comodista que não busca colocar sua criatividade a serviço do empreendedorismo. Precisa ser intelectualmente bem formado, fisicamente forte e fornecer estabilidade financeira: uma mistura de professor universitário, crossfiteiro, empreendedor autônomo, encanador e eletricista;

4) A esposa tem que dar conta da casa, saber fazer cardápio variado, estar sempre maquiada e impecável (de preferência comprando de lojas católicas), conhecer métodos pedagógicos, brincadeiras divertidas: uma mistura de mastercheff, modelo e psicopedagoga;

5) Esperar para ter filhos por dificuldades econômicas é “preocupação inútil com pequenos desconfortos financeiros”, falta de desprendimento cristão e de disposição para o martírio;

6) O homeschooling é obrigatório, afinal “escola hoje em dia só serve para emburrecer e levar seu filho para o inferno” e deve ser dado com livros “sem ideologia” (o que deve ser entendido, sem influência de autores de esquerda, mas só de direita);

7) A esposa que trabalha fora está priorizando a carreira ao invés dos filhos, mesmo quando o marido sozinho com parco salário não dá conta das despesas;

8 ) Os filhos devem ficar longe das telas, inclusive das TVs, devem ler obras clássicas e adquirirem altos dotes intelectuais desde cedo;

9) Cesárea ou atendimento médico no parto, nem pensar. É fugir do martírio. Esperar para engravidar por causa de problemas no útero também. Deus proverá o necessário ao marido viúvo se assim for sua vontade;

10) Homem ou mulher para provarem seu valor profissional devem se oferecer para trabalharem horas de graça aos empregadores para assim conseguirem a vaga.

Examinemos algumas dessas teses e suas incompatibilidades com o Evangelho:

I – É verdade que a mulher deve buscar agradar o marido, mas isso também é dever do esposo. Devem estar juntos nos bons e maus momentos, beberem do mesmo cálice e carregarem a mesma cruz. Se a mulher não puder desabafar suas dificuldades àquele que formou diante de Deus e dos homens uma só carne com ela, a quem ela irá? Se o árduo trabalho doméstico e atenção aos filhos feito em maior parte pelas mulheres deve ser valorizado como esses segmentos pregam, como não deveria o marido apoiar essas tarefas e, mais ainda, receber as queixas e preocupações da esposa sobre essas matérias? Tanto o homem quanto a mulher devem, na medida do possível, buscarem cultivar uma aparência que seja agradável ao seu cônjuge, mas deve-se ter cuidado para isso não se degenerar em vaidade e esteticismo. Além do fato ensinado pelos apóstolos de que o maior adorno que podemos ter são as virtudes que praticamos (pergunto: a esposa admiraria mais um marido impecavelmente vestido ou um marido afetuoso e compreensivo?), há de se considerar que a indumentária possui, antes da finalidade estética e social, a finalidade prática. Nesse sentido trabalhar em casa com boas roupas pode até ser uma falta com a virtude da pobreza/austeridade, no sentido de que corre o risco de manchar ou danificar uma roupa mais cara que serve para outros momentos da vida social. No quesito maquiagem, há outro complicador: nem todos os homens apreciam mulheres maquiadas, assim como há mulheres que preferem homens com barba, sem barba, etc. Criar regras de preferência estética me parece uma loucura, ainda mais que não há nenhum embasamento teológico para isso.

II – Apesar das diversidades de distribuição de funções entre o casal conforme as profissões exercidas por ambos ou outras questões, é fato que em geral a mulher, especialmente quando tem uma prole maior, fica mais ligada ao cuidado dos filhos até por conta de imposições biológicas (como os períodos de gravidez e amamentação, em que a criança depende exclusivamente da mãe). Entretanto, isso não dispensa o marido de sua participação no cuidado, atenção e formação dos filhos. É verdade que muitas vezes ele terá de seu ausentar por longos períodos para poder prover o sustento da casa, mas há uma grande diferença entre se ausentar pela necessidade de trabalhar longe para ganhar um parco salário e se ausentar deliberadamente para ganhar mais que o necessário para o sustento da família. O contexto de desemprego do atual Brasil não é um campo fértil para empreendedorismo e não há nenhum mandamento da Lei Natural ou das Escrituras que obrigue os maridos e esposas a “inventarem” novas modalidades profissionais para se sustentarem.

III – A formação da infância e adolescência hoje nas sociedades urbanizadas e globalizadas é completamente distinta e mais complexa em relação àquela que meninos e meninas tinham 70 anos atrás, quando mais da metade da população brasileira vivia no meio rural. A complexidade da sociedade de hoje faz com que a formação de cada pessoa seja mais especializada e focada, deixando determinados aspectos de lado. Agora, façamos uma reflexão: ao escolher um marido ou uma esposa, o que vocês acham que seria mais fácil de aprender com o tempo: formar um bom caráter ou uma ou outra tarefa doméstica ou de conserto? Outra coisa: a Igreja não nos pede que sejamos profissionalmente ambiciosos. Podemos sê-lo, se julgarmos que nossos talentos profissionais em âmbitos mais altos possam ser mais úteis à sociedade. Entretanto não há, ou não deveria haver, nada de errado em alguém não ter ambição profissional e ter uma profissão simples (gari, camponês, operário, etc) e desejar ser remunerado justamente e suficientemente para sustentar com dignidade e qualidade de vida a si e seus familiares. Infelizmente, existe algo que os católicos aburguesados fingem ignorar: a maioria das pessoas no sistema capitalista (condenado pela Igreja, vide a encíclica Quadragesimo Anno de Pio XI) não recebe um salário suficiente para levar a vida com dignidade, sendo obrigada a recorrer a mais horas desgastantes de trabalho, endividamento, inadimplência, etc.

IV – A maioria das esposas e mães de família do Brasil precisam recorrer ao modelo de ensino escolar (especialmente o público, fornecido pelo Estado, que, quando carece de qualidade em um ou outro aspecto, não o é por culpa dessas mães), podem comprar apenas o limitado número de alimentos mais baratos, não possuem tempo para tentarem novas receitas ou de adquirirem formação pedagógica complementar. Demonizar a escola e desconsiderar o princípio de subsidiariedade na relação família-escola pode gerar escrúpulos em mães que não possuem condições de darem uma formação complementar em casa aos filhos ou que não conseguem se manter arrumadas e impecáveis depois de um dia de jornada dupla de trabalho e afazeres domésticos. Mesmo os defensores sensatos do homeschooling, ao qual apoio, reconhecem que esse é um modelo educacional possível a um número muito reduzido de pessoas, dada as suas exigências. Ciente dessas necessidades, a Igreja ao longo dos séculos, através de inúmeros carismas e congregações, criou escolas e outras instituições de ensino voltadas à formação das crianças e jovens mais pobres. Infelizmente hoje a grande parte da rede de ensino católico virou particular e muito cara (ok, a espoliação de bens eclesiásticos resultante da separação entre Igreja e Estado com o advento dos regimes liberais no mundo ocidental contribuiu bastante para isso, mas nós católicos também temos parcela de culpa na medida em que não nos debruçamos o suficiente para pensar em redes de solidariedade e atuação comunitária alternativas que suprissem esse problema).

V – Considerando o custo das cidades brasileiras e que mais de 50% da população tem renda familiar inferior a 4 mil reais chamar de “desconfortos financeiros” gastar mais do que se ganha para manter o mínimo (aluguel, condomínio, luz, água, internet, alimentação, saúde) é uma piada de muito mal gosto!!! “Ah, mas dá pra viver bem com pouco!!” Sério? Então vem aqui e faz minha contabilidade! E sem cobrar, hein?! Caridade cristã! Outro elemento é aquilo que Paulo VI fala na Humanae Vitae: os casos de saúde física ou psicológica e elementos externos (só aqui cabe um bando de motivos variáveis conforme o contexto de cada família). Mas não!!! Há agora um “patrulhamento ideológico” para fazer algumas famílias se sentirem “egoístas” quando possuem motivos justos para espaçarem os filhos.

VI – Que a escola hoje tem problemas (de disciplina, de falta de investimento ordenado de recursos, pela jornada exaustiva dos professores e sua baixa remuneração, por questões ideológicas – que existem, mas em grau menor do que se propaga em tons apocalípticos) ninguém duvida. Agora, porque ao invés de demonizar a escola não nos engajamos por uma melhoria na educação. Criticar os problemas da educação brasileira é fácil, mas o que propomos para muda-la? Estigmatizar os professores pondo-lhes a pecha de “ideólogos que querem tomar nossos filhos”? Acusar o professor de “vagabundo” quando pleiteia melhor salário (como já vi ser dito por um católico famosinho que ganha 1500 reais por hora)? Por fim: distorções ideológicas existem na esquerda e na direita. Sem confrontar análises e visões diferentes criaremos filhos que saberão pensar apenas mediante slogans, clichês e cacoetes mentais, mas não de forma racional. É o tipo de pessoa que se converte com a mesma facilidade que apostata, pois lhe falta substância.

VII – Acusar de despriorizar os filhos a esposa que se ausenta de casa para trabalhar e complementar a exígua renda do marido é de uma impiedade tremenda!!! É muito fácil falar isso quando não se vive na pele. Acaso poderá a mãe de família inculcar na mente dos filhos sublimes verdades metafísicas quando seus ventres roncam de fome?

VIII – Sei que existem estudos sobre o risco de exposição muito contínua de crianças às telas e a um elevado nível de informação. Entretanto, nenhuma criança terá seu desenvolvimento cognitivo atrofiado por assistir desenhos ou coisas lúdicas por alguns minutos por dia. Fora que se abolimos por completo a TV ou a internet, tendemos a colocar na mente de nossas crianças uma mentalidade maniqueísta, dualista, que demoniza os meios de comunicação ao invés de formar critérios de filtrar, rejeitando o conteúdo ruim veiculado e aproveitando e potencializando as coisas boas que podem ser difundidas através dessas ferramentas.

IX – Se por um lado devemos ficar atentos com a violência obstetrícia no Brasil e com alertas da OMS sobre um número de partos cesarianos em território nacional excepcionalmente elevado em comparação com outros países, não podemos demonizar a medicina e ignorar que existem casos obstétricos em que a intervenção cirúrgica é necessária. Toda cirurgia é um processo invasivo, mas há casos em que é necessário sob risco de se permitir um mal maior, ou seja, o agravamento do estado de saúde da paciente. O segundo erro é abusar da Providência Divina que, tal como a Graça, conta com o concurso e cooperação da ação e inteligência humana. Essa concepção tende a uma interpretação herética e quietista da Providência. Deus raramente age direto sobre a Criação (exceto pelo que os teólogos chamam de “contato criador” que mantém a existência do Universo), mas deixa que as causas segundas sigam seu curso e que o ser humano use a inteligência e capacidades recebidas para resolver com prudência os seus problemas.

X – Este último ponto é o mais néscio e ímpio de todos, já que os católicos se esqueceram que o catecismo ensina que – tal como o aborto e outros homicídios de inocentes – a exploração dos pobres e vulneráveis e o não pagamento do justo salário ao trabalhador são igualmente pecados que bradam aos Céus pela vingança divina (isto é, são de uma injustiça tal que gritam a Deus para que puna aqueles que o cometem). Os católicos deveriam lutar por melhores salários, para maior valorização das profissões exercidas pelos mais pobres, por maior amparo às famílias vulneráveis e, principalmente, para demolir as “estruturas de pecado” que existem em nossa sociedade e que entravam a implantação de mecanismos mais humanos, justos e solidários nas relações de trabalho.

Se o catolicismo de esquerda teve dificuldades de inserção nas classes pobres a partir dos anos 70 por conta do excessivo foco em questões políticas oriundas de discussões acadêmicas alheias à linguagem comum, esse novo catolicismo de direita diminuirá ainda mais o contato da Igreja com os mais pobres, por propor um ideal de vida burguês totalmente deslocado da realidade da maioria dos brasileiros que tentam sobreviver com cerca de um salário mínimo menor que 2 mil reais. E os católicos de classe média e pobre que embarcarem nessas ideias terão, infelizmente, muitas sequelas psicológicas, econômicas e espirituais ao tentarem viver essa caricatura de cristianismo. Faço um apelo aos nossos bispos, que tem um histórico de preocupação com os setores mais pobres e marginalizados da sociedade, para que se pronunciem firmemente contra essas novas heresias, algumas das quais pregadas por personalidades já bem conhecidas dos meios católicos virtuais, antes que seja tarde.

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4 respostas em “Contra o catolicismo burguês”

“Mas não!!! Há agora um “patrulhamento ideológico” para fazer algumas famílias se sentirem “egoístas” quando possuem motivos justos para espaçarem os filhos.” — Como uma família católica pode espaçar os filhos sem usar métodos contraceptivos?

Um casal católico pode usar os métodos naturais, Gustavo. O uso deles em condições justificadas não é pecado.

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