No mês de agosto deste ano, o confrade Joathas Bello publicou no Facebook uma série de postagens dando seu testemunho pessoal sobre como passou a enxergar e, depois, a lidar como chamado “problema Conciliar”. Considero que testemunhos pessoais, embora não substituam uma análise científica, são muitas vezes esclarecedores para o entendimento de um problema; assim, com autorização expressa do autor, compilei as referidas postagens no texto que segue abaixo.
Parte 1
Nunca pude duvidar da eficácia dos sacramentos da reforma litúrgica, porque, por exemplo, logo após minha Confirmação (1991), passei a viver de modo incomum o compromisso apostólico, a fidelidade aos mandamentos e a devoção espiritual, o que só poderia ser obra da Graça.
Anos se passaram, até que, em 2005, tomei conhecimento da controvérsia conciliar através da internet.
Como eu participava de uma nova comunidade conservadora, que se considerava “filha do Concílio”, e acentuava a vocação à santidade, o apostolado dos leigos, a piedade filial mariana, a Missa como Sacrifício do Calvário, e como essa comunidade fazia um apostolado frutuoso, eu não podia desconfiar dos problemas do CVII.
Eles não surgem à consciência num âmbito que vive a nova liturgia com decoro, que preza a oração, a coerência entre fé e vida, o apostolado, e que dá por suposta a “continuidade” [ignorando a crítica tradicionalista e o horizonte pré-conciliar].
Dito de outro modo: quando são “recepcionadas” as partes tradicionais do CVII ou quando ele é lido ingenuamente “à luz da Tradição” pelo senso sobrenatural da Fé, num ambiente tendente à ortodoxia, *o CVII não prejudica a Fé dos batizados*.
E nisto consiste fundamentalmente a *indefectibilidade real da Igreja* quanto ao tópico: num tal contexto de Fé, aquilo que é ambíguo, precário, novidade injustificada, mas que não é um erro frontal contra os artigos do Credo e os mandamentos, *não serve, por si mesmo, de pedra de tropeço* [sequer estas qualidades gramaticais ou lógicas negativas serão visualizadas]; será lido, em princípio, de modo católico [vide as primeiras impressões dos tradicionalistas D. Castro Mayer, Dietrich Von Hildebrand e Gustavo Corção], exceto por aqueles que de qualquer modo cairiam e aproveitaram ou tiveram a ocasião para manifestar o que já havia no coração.
Isto é um aspecto da questão.
Parte 2
Depois de cerca de 13 anos vivendo a Fé na nova comunidade conservadora, com um intenso compromisso apostólico, eu comecei a ter a experiência de não conseguir mais avançar.
Não era infidelidade… Não era tibieza nem acídia… Não era tampouco a experiência da “noite dos sentidos” [ausência das consolações que se tem no início da conversão e por certo tempo]: eu já havia passado por algumas situações de aridez, de muita tristeza, e perseverara.
Era um querer amar mais e não encontrar mais “recursos”, esbarrar em limitações de compreensão do horizonte da vida católica. Como se tivesse chegado a um ponto em que necessitava “algo mais” para seguir adiante, e não houvesse… O que eu sabia ser impossível, porque não tinha qualquer dúvida de que Jesus Cristo era o Salvador do mundo e sua Igreja o meio necessário da Salvação.
Alguns dos membros da comunidade repetiam o discurso algo decorado para pessoas que, segundo a mentalidade institucional, estavam “abandonando o barco” (sic). Para mim, não funcionava. Eu sabia bem em Quem me fiava.
Então eu visitei reuniões dos oblatos beneditinos… Missas na paróquia melquita… Percebi que, de certo modo, “era mais do mesmo”. Claro, acentos espirituais diferentes, mas, no fundo, um mesmo horizonte, que tinha uma limitação incômoda, que eu não sabia explicar, mas que eu sabia que era necessário superar para continuar vivendo a Fé.
Em suma: meu coração, que já havia passado por duras purificações [como a morte do meu pai quando eu tinha 19 anos, ou o término do noivado com aquela que depois voltou e se tornou minha querida esposa], desejava um alimento espiritual e uma iluminação que não conseguia encontrar na Igreja oficial. Experimentava uma “falta”, sem entender o que era. Oscilei por diversas vezes entre a tentação do orgulho e a da tristeza; ora desgostoso com todos e com tudo na Igreja, ora desconfiando de mim.
Antes, portanto, das questões dos tradicionalistas, o “problema do concílio” me apareceu como esse problema de um horizonte espiritual coartado.
Por essa época, João Paulo II havia morrido, e Bento XVI assumia. Pareceu-me pessoalmente simbólico: o primeiro fez todo o possível nesse horizonte conciliar (com seus erros), e sua morte parece que abriu, a duras penas, um caminho um pouco além, pelo qual o segundo seguiria. Esse é o ponto em que me encontro com a questão tradicionalista, mais a “reforma da reforma” e a “hermenêutica da continuidade”; e, mais importante que o demais, “Nossa transformação em Cristo” (Dietrich von Hildebrand). Continua…
PS: um pouco depois, ao morar na Espanha, eu participei de reuniões e de um retiro da Opus Dei, e constatei a mesma limitação.
Parte 3
No início de 2005 eu entrei no Orkut, e participei das comunidades principais de “Católicos” (do Marcelo e do Thiago), e conheci diversas realidades do Catolicismo, e a querela tradicionalista, mais os sites da Montfort e do Veritatis Splendor.
Esta ocasião serviu para manter desperta minha Fé.
Eu não atrelava a dificuldade de progresso espiritual ao horizonte conciliar enquanto tal; e é psicologicamente inexorável, ao católico crescido no âmbito do CVII, defendê-lo a princípio contra o tradicionalismo.
E a verdade é que muitas (a maioria das que eu via) das acusações tradicionalistas são mal feitas, teologicamente apressadas: assumem-se as aplicações progressistas como o sentido óbvio dos textos, muitas vezes acusam-se textos fora do contexto…
Participei ativamente como “moderador” da Católicos do Marcelo; no Veritatis Splendor comecei a escrever alguns textos em defesa do CVII (sem recorrer à teologia acadêmica, mas ao Magistério, a Santo Tomás e ao senso de Fé apenas; entretanto eram todos textos muito mais realistas que os textos continuístas atuais).
Entretanto, as questões da “liberdade religiosa” e da “reforma litúrgica”, quando são bem apresentadas pelos tradicionalistas, são realmente questões que se impõem à Fé já amadurecida, e que nunca foram realmente justificadas pela Igreja oficial (a não ser com base na autoridade política pré-infalível, o que não é justificar de direito).
A reforma litúrgica apareceu-me imediatamente como um grande equívoco. A Missa tridentina, quando conhecida, surge à consciência católica madura como muito superior objetivamente, quer no aspecto teológico, quer no aspecto estético (simbólico); a reforma feita soa realmente como um absurdo sem tamanho, um abuso da autoridade eclesiástica contra a Tradição católica, antes de quaisquer abusos celebrativos.
Na questão da “liberdade religiosa”, contudo, há um confronto entre o que aparece à razão pura (que aprova Dignitatis Humanae imediatamente) e o conhecimento da prática concreta da Igreja aprovada pelo magistério (a consciência na realidade sente a necessidade de justificar o *magistério anterior*).
Em 2005 tive que fazer uma opção profissional drástica: ao ser aprovado pela Universidad de Navarra para o doutorado e ao receber bolsa integral da CAPES, solicitei licença sem vencimentos ao TRF 2, mas a resposta foi negativa. Daí pedi exoneração e decidir ir para a Espanha.
No fim do ano, minha agora esposa e eu retomamos o noivado.
Viajo em janeiro, e na semana santa de 2006 volto ao Brasil para casar-me e levá-la.
Em 2006 a apologética teria que ceder lugar preferencial ao início do casamento e ao doutorado sobre o problema da religação em Xavier Zubiri.
Um amigo havia me dado de presente o livro “Nossa transformação em Cristo”, que eu levo para a Espanha.
Cheguei a perder o livro, cuja leitura iniciava, na primeira viagem a Valência, para o Encontro Mundial das Famílias com o papa Bento XVI (esqueci o livro no ônibus da volta)!
Liguei para a empresa de ônibus e consegui recuperá-lo! Continua…
Parte 4
Na vida de casado, pelas vicissitudes dessa condição (mais ainda quando se têm vários filhos), é muito difícil dar-se conta de questões eclesiais de fundo, que não são questões no dia-a-dia do secular (a não ser que se seja teólogo ou filósofo de profissão, ou se tenha uma peculiar índole mística, que une às angústias eclesiais).
Os anos de casamento *até os filhos estarem criados* correspondem espiritualmente [na consideração ideal média, por assim dizer] ao período pré-profissão de um(a) religioso(a) ou pré-ordenação de um sacerdote celibatário – excepcionalmente, o casamento pode ser uma circunstância mais favorável, numa grande crise como a atual, em que a formação institucional média tende a ser ruim.
É por isso também que o celibato é mais favorável à santificação: a ausência das preocupações temporais e a dedicação “profissional” à ascese e à oração.
Tirando os primeiros 3 anos no doutorado, antes do 1o filho, eu nunca mais tive o mesmo tempo para me dedicar às coisas diretamente divinas como antes; e nem a esposa mais compreensiva e bondosa suporta um “marido-monge” com as crianças chorando e com a fralda cagada.
Ao longo de 2006 segui fazendo apologética conciliar na Católicos e no Veritatis Splendor. Havia sinais de abertura à Missa Tradicional em Bento XVI, mas as explicações oficiais da liberdade religiosa me angustiavam.
Em fevereiro de 2007 publiquei um texto sobre DH no VS. Era na verdade uma boa harmonização; só depois eu li as explicações famosas do Pe. Harrison e do Pe. Valuet, e a verdade é que meu texto, sendo bem mais sucinto e menos pretensioso, é fundamentalmente melhor que as teses de ambos.
Isso me deu um grande alívio; ao mesmo tempo, eu terminava de ler “Nossa transformação em Cristo”. Continua…
Parte 5
Quando eu ia lendo “Nossa transformação em Cristo”, um novo mundo espiritual se abria para mim.
Antes, entretanto, eu já havia vislumbrado algo importante do problema do horizonte conciliar: um horizonte fechado sobre si mesmo, em que as novas comunidades, por exemplo, muitas vezes pregam a si mesmas, onde tudo que veio antes é filtrado pelo “pai fundador” (sic), e não se conhece o tesouro da Tradição à parte dos textos conciliares e dos lidos pelo fundador; onde os meios humanos, o planejamento obsessivo e uma ideia mundana de “eficácia” governa a atividade apostólica.
Eu havia tentado falar dessas coisas aos superiores, mas, obviamente, estava sempre “errado”, era “susceptível”, de temperamento “rebelde” e todos esses adjetivos que os homens da Igreja soberbos (e também os abusadores e bajuladores e passapanistas) sempre têm na manga para não admitir seus erros.
Tentava inserir o canto gregoriano mais simples na missa, mas tudo tinha que ser feito com muita parcimônia, porque “o povo tem de participar”. Insistia que eu tinha de tocar o violão arpejado e que certas canções, embora não fossem feias, eram ruidosas para a missa, mas respondiam “o nosso estilo”…
Alguns fundadores e comunidades caíram feio não à toa; porque esse “espírito” (que é o mesmo do Concílio, em sua versão conservadora/hipócrita) conduz ao esgotamento psíquico e à queda espiritual e moral: quando os recursos humanos chegam ao limite e o espírito se vê nu, sem a santidade e a “inspiração” imaginados, costuma vir a traição.
Apenas mais recentemente eu vi a similitude entre essa autorreferencialidade e pragmatismo ativista dos novos movimentos e o espírito objetivo do CVII, tal qual está manifesto na intenção formal e explícita de J23 e P6, antes de quaisquer abusos da ruptura própria do “espírito neomodernista”. Continua…
Parte 6
Havia me referido à autorreferencialidade e ao pragmatismo ativista como características de novas comunidades e também do espírito objetivo/manifesto do CVII.
A autorreferencialidade se consubstancializa no propósito das “novas fórmulas que mantêm o depósito da Fé” [este propósito é logicamente posterior ao pragmatismo, mas pedagogicamente acho melhor apresentá-lo primeiro].
A princípio se entende que é uma adaptação acidental, que mantém com evidência para os católicos o teor de sempre, apenas aproximando-o do entendimento do homem atual.
No entanto, pode se ver sem dificuldades nas 2 “atualizações” mais drásticas, que não foi isso que aconteceu: nem a doutrina da “liberdade religiosa” nem o novus ordo são uma continuidade clara e uma adaptação meramente acidental; nem a primeira se ajusta com clareza e rigor à práxis e ensino pré-ponciliares, nem o segundo é uma simplificação ou adaptação da Missa dos tempos, mas uma nova construção ritual para nosso tempo.
A “humilde” pastoralidade sem definições e anátemas na prática se mostra como um novo começo [pelo menos a respeito de certos tópicos], e os papas jamais terminaram de justificar teologicamente nem uma coisa nem outra (apesar dos esforços de Ratzinger), assumindo sem mais a “continuidade” e a impondo a partir de um nível de autoridade *mais baixo* do que o do magistério e rito proscritos na prática!, e diante de um ostensivo prejuízo pastoral da nova doutrina moral-política e da ação litúrgica a partir do novo missal.
É o que Ratzinger chamou de “superconcílio”; ele se refere à recepção dos progressistas (rupturistas), mas o fato é que essa possibilidade de absolutização se depreende da própria realização conciliar, e não apenas da mentalidade progressista estrita.
Quanto ao pragmatismo ativista, ele se consubstancializa no propósito de tornar o depósito da fé mais “eficaz”: o “trabalho” de atualização para responder às “exigências” do nosso tempo denotam o pragmatismo ativista ou ativismo pragmático que mencionei.
Ele fica mais claro com a aplicação concreta: muito do que “vai acontecendo”, como comunhão na mão, instrumentos eletrônicos ruidosos ou de percussão, coroinhas meninas, vai sendo integrado oficialmente à práxis litúrgica eclesial, sem nenhum motivo realmente teológico que o justifique, para além do fato de que “se faz” e que o sujeito magisterial aceita.
Quando o pragmatismo se converte num critério eclesial para a disciplina [para o âmbito litúrgico que é regulamentável], para que ele chegue à moral, basta que haja um sujeito magisterial de índole progressista e aproveite arbitrariamente o âmbito do magistério meramente autêntico da indefinição, para transtornar tudo sem mudar nada oficialmente.
E é que o pragmatismo favorece o autoritarismo também, ou uma sorte de “gnose” da autoridade, que “tem o Espírito” (sic) e “sabe o que é certo” mesmo fazendo algo irrazoável que ninguém consegue entender – é o “mistério” (sic) – e que todo o mundo sabe, na verdade, que é errado.
Também o horizonte ativista transtorna o horizonte contemplativo da Fé, aprisiona as almas num horizonte de ascese principiante interminável, mas sobre isto, que já é um problema pré-conciliar da devotio moderna, falarei no próximo relato.
Parte 7
A leitura de “Nossa transformação em Cristo” (Dietrich von Hildebrand) elevou meu entendimento da Fé católica.
DvH fala da vida interior em geral e da “contemplação” como alguém que realmente a vive profundamente (como os místicos autênticos), mas que tem a vantagem de saber descrever essa experiência interior (por causa do dom da fenomenologia), e assim pode ajudar a nela se introduzir melhor que os manualistas e os grandes místicos – eu já havia lido “O amor entre o homem e a mulher” de Hildebrand, que me encantou a respeito da vocação matrimonial, pois também é um testemunho evidente de alguém que realmente vivia santamente o casamento.
Descobri ali o “além” do ponto a que havia chegado, e os primeiros recursos para vencer o horizonte que me constrangia. Antes, porém, de falar da minha experiência espiritual, antecipo a grande conclusão teológica, que foi fruto dessa experiência.
Eu já ouvira sobre a “vocação universal à santidade” do CVII desde muito tempo, conhecendo, na nova comunidade, o ideal da santidade como o da “conformação a Cristo”, não simplesmente imitar exteriormente a Cristo, mas ter sua “forma” (sic). Despojar-se do homem velho e revestir-se do homem novo. O dom do batismo. O exame de consciência e a confissão frequente. A participação na missa, a comunhão e a adoração eucarística frequentes. Ser soldado de Cristo a partir da Confirmação. Viver o estado de Cristo como filho de Maria, amando-a piedosamente. O apostolado como colaboração com a missão da Virgem, de fazer nascer o Cristo nos corações. Uma espiritualidade da vida cotidiana e da ação, que busca realizar o “plano de Deus” (sic).
Na realidade, desde os 6 anos de idade eu lia o Evangelho e o Antigo Testamento, e desde antes via o Crucifixo e as muitas imagens de santos na casa da minha vó, aprendendo desde cedo a amar o exemplo de Cristo e dos seus amigos.
Mas ninguém nunca me ensinara a arte da contemplação interior da Cruz.
Eu já havia assistido a uma Missa tridentina [e a algumas missas orientais, sendo uma ortodoxa], que obviamente me impressionou mais do que a missa paulina celebrada com o maior decoro possível [como as missas solenes do Mosteiro de São Bento do Rio e da Catedral de Pamplona, com órgão e gregoriano, ou da Universidad de Navarra, nas quais inclusive tive a graça de cantar no excelente coro da instituição], mas não havia continuidade e não houve quem me ajudasse a penetrar naquele mistério de amor na ocasião.
O capítulo sobre a vocação à santidade de Lumen Gentium é belo; é simples, não é um escrito “místico”, mas lembra algumas exortações de São Paulo, singelas e profundas; menciona expressamente o martírio.
Entretanto, a nova liturgia simplesmente não manifesta mais ritualmente aquela caridade e aquele martírio como deveria; não a expressa bem para o sacerdote, e nem para o povo, não “enforma” a personalidade católica para o sacrifício até o derramamento de sangue, se preciso.
Evidentemente que todos os ajustes teológicos externos ao rito [instruções e encíclicas] garantem sua validade e a indefectibilidade quanto à salvação dos fiéis que dele participam com retidão, mas nada resolvem a respeito de sua [do rito, não do sacramento] potência para a contemplação espiritual [tampouco é algo que seja realmente solucionado pela formação intelectual e o voluntarismo dos sacerdotes e fiéis].
Não se trata aqui de repetir as comparações teológicas de todos já sabidas, mas simplesmente de indicar o que é um fato: o Rito tradicional nos coloca realmente diante da miséria do pecado e da sublimidade da Cruz; diante da distância infinita que foi percorrida pelo Logos Encarnado e da proximidade inefável a que a Redenção nos conduziu; diante da distinção real entre a União Hipostática do Filho e Servo que adentra o Santuário [representado pelo sacerdote ministerial], e a santificação dos filhos da adoção, cujo sacrifício espiritual segue o de Cristo; diante da Presença divina velada e de sua Santidade temível; diante de um quadro no qual as melodias gregorianas dos salmos realmente arrebatam o coração; enfim, ele permite que “tenhamos em nós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2, 5ss).
Parte 8
Quem nasceu para a Fé durante o pontificado de Bento XVI já herdou uma situação bem diferente daquela entre 69-2005.
Os grandes equívocos de JPII, como Assis e a excomunhão de Lefebvre [no fundo, a inconsciência do problema litúrgico ou a exageração do valor do CVII], causam mágoa aos tradicionalistas, mas não deveriam ser um obstáculo para reconhecer que Wojtyla teve méritos e deixou a Igreja melhor do que a recebeu de Paulo VI.
Se em Montini o humanismo e o amor à Igreja competiam [o que pelo menos serviu para decisões ortodoxas fundamentais em ordem à indefectibilidade eclesial], no papa polonês o amor a Cristo e a Nossa Senhora superavam a tensão humanista do horizonte conciliar e de sua própria formação. Se tal horizonte nunca foi superado de direito, JPII realizou feitos dignos de um bom papa “pré-conciliar” (sic): a defesa intransigente da Lei natural diante das potestades e dos moralistas heréticos, o protagonismo na queda do comunismo soviético e europeu, um testemunho apostólico carismático junto à juventude, o combate à teologia da libertação. Se as encíclicas, discursos e homilias iniciais eram confusos e acenavam à “salvação universal” da nouvelle théologie, a doutrina da Fé se torna mais clara e ortodoxa com a chegada de Ratzinger prefeito da CDF: Reconciliatio et paenitentia e o novo Catecismo afirmam o inferno e a certeza de que há réprobos, e, já no final do pontificado, há um aceno a uma possível restauração litúrgica (Ecclesia de Eucharistia, Redemptionis Sacramentum) e à correção das ambiguidades conciliares (Dominus Iesus); e sua morte foi a de um digno servidor do Senhor, de alguém que, dentro deste horizonte conciliar, abraçou a Cruz e amou a Cristo como nenhum outro fiel aderido ao CVII.
Bento XVI é disparado o melhor dos “neoteólogos”. Bem, o único que é realmente bom. Ele mesmo considera que não, que De Lubac e Von Balthasar são geniais e originais, etc. Talvez sejam, mas o que importa aqui é a ortodoxia: Ratzinger tem uma concepção existencial da Revelação e uma resistência pessoal às provas metafísicas da existência de Deus, mas jamais acenou ao erro filo-panenteísta da “salvação universal” nem à correlata confusão entre natural e sobrenatural; e se ele é filo-liberal em política prática, e acha que certos trechos do Syllabus eram ensinos contingentes, ao menos faz um esforço sincero para coadunar os princípios tradicionais e a liberdade religiosa e a “sã laicidade” (sic).
O fato é que ele sempre foi muito mais realista sobre o CVII que seus amigos teólogos e que JPII: suas críticas eram diplomáticas, como homem da Igreja, mas eram relativamente corajosas. Especialmente as críticas ao otimismo infundado de Gaudium et Spes (o pior documento disparado já escrito na Igreja antes de Francisco) e à construção litúrgica do novo missal.
O horizonte da “reforma da reforma” e a liberação do Missal tradicional mudam inteiramente a situação do “horizonte conciliar”: abrem-no *efetivamente* à Tradição “viva” de sempre. Já não está na mesma situação o fiel que tem no horizonte eclesial a Missa tridentina como “lex orandi” reconhecida oficialmente; ele penará muito menos do que eu…
A proposta da “hermenêutica da continuidade” oferece também a oportunidade de verificar de fato, como propôs Mons. Gherardini, se e onde há continuidade, e o que deve ser melhorado, corrigido ou abandonado. Ela não resolve tudo, porque depende da índole do hermeneuta, mas ninguém supunha que se pudesse ultrapassar o nível da ambiguidade em direção à interpretação neomodernista…
Parte 9
Em 2006 eu interrompi a leitura de “Nossa transformação em Cristo”, e só a retomei em 2007; à medida em que ia lendo, minha vida espiritual ia adquirindo uma nova tonalidade: a oração afetiva (contentamento), que já havia vivenciado nos melhores momentos dos anos anteriores, tornou-se basilar.
Pela grande caminhada de constante oração de meditação, e também por ter uma disposição filosófica e viver de pensar, eu não suportava mais, na oração, a discursividade, as minhas próprias considerações, mas queria estar com a mente despida diante da Palavra, com o coração esquecido das criaturas, e a própria vontade calada.
No início da Quaresma, veio um período de grande intimidade com Deus, de permanente atitude contemplativa. E eu conheci uma pessoa com graças místicas.
No dia da Santíssima Trindade deste ano de 2007, estávamos numa excursão paroquial e, depois de visitar o Monasterio de Fitero, fomos a uma igreja numa localidade próxima, da Ordem de Calatrava, que estava em obras, com um tapume no presbitério; então eu vi uma pessoa, ferida pelo amor divino, chorando, a bater no tapume e a suplicar: “liberem a Eucaristia!”
Fiquei cerca de 5 anos com o ânimo deprimido, com uma ligeira melhora em 2008, que me permitiu terminar a tese doutoral com alguma dignidade em abril de 2009.
O amor da esposa, dos pais, a própria paternidade (o mais velho nasceu em 2009 e o segundo em 2012), a necessidade imperiosa de trabalhar, a companhia dos amigos e a Graça divina me ajudaram a não me abandonar ao desânimo, e me ergueram em meados de 2012. Eu estava dando aulas desde o segundo semestre de 2009, de modo burocrático, mas retomei o gosto pela investigação, a perspicácia, a alegria de viver. Entretanto, as dores físicas (hérnia lombar, ciático) aumentaram consideravelmente.
Quanto à vida da Igreja, parecia-me que a liberação da Missa tradicional nos termos do Summorum Pontificum iria lentamente trazer a renovação espiritual necessária e as correções dos rumos conciliares ambíguos. Eu estava feliz em contribuir para a formação de seminaristas, religiosos e leigos comprometidos em instituições católicas de ensino superior.
No domingo da Ascensão de 2015, recebi uma grande graça. Daí até o final de 2017 foram os melhores anos da minha vida.
Com Amoris Laetitia em 2016 meu coração havia se afligido, mas eu fiz a apologética possível até a resposta à carta dos bispos argentinos em 2017.
Por causa dos meus posicionamentos, fui demitido de duas instituições eclesiásticas, no fim de 2017 e no fim de 2018.
Com o sínodo da Pachamama em outubro de 2019, passei a viver atribulado, mas não deprimido.
Então já era mais do que claro para mim que a hermenêutica da continuidade tem uma deficiência incontornável: ela depende da ortodoxia do intérprete oficial. Embora possa ser útil, em vistas da indefectibilidade da Igreja, mostrar que os textos conciliares difíceis ou ambíguos podem ter um sentido católico, ou que há textos positivos que alentaram a vida católica em algum nível, a própria “pastoralidade” conciliar é uma precariedade que precisa ser sanada com uma palavra infalível do magistério.
Em fevereiro de 2020 gravei um curso para a Casa da Crítica, começando a desenvolver esse tema. Continua…
Parte 10
Criticar a “pastoralidade” pareceu-me ser o modo correto de preservar a possibilidade de interpretação ortodoxa do CVII e uma justa intenção eclesial em princípio, que se mostrou inadequada na prática.
Desde sempre (desde 2005) eu havia entendido que o “pastoral” do CVII não deveria ser entendido simplesmente no sentido clássico das “atividades pastorais”, e que a crítica tradicionalista [v.g., da Montfort] ao “concílio pastoral” era teologicamente errada. O CVII tem uma “doutrina pastoral”, isto é, ela modulou a doutrina da Fé a partir das finalidades “dialógicas”, e a partir de uma “nova consciência” eclesial a respeito da relação da Igreja com os de fora e da práxis católica no mundo; diálogo e consciência que trariam uma “atualização”. O que é verdade é que o CVII tem uma “forma” diferente de todos os demais concílios ecumênicos doutrinais, que realizavam atos extraordinários canonizando a doutrina e anatematizando os erros; por essa razão é que sua autoridade está longe de ser a dos “concílios dogmáticos” (sic).
Outra crítica tradicionalista [v.g., do IBP], que vê – corretamente – nas novidades conciliares um “magistério meramente autêntico”, também não me parece totalmente consequente: diante desse grau de magistério, que não requer a Fé teologal ou eclesiástica, mas requer o assentimento religioso, deve ser feito, em princípio, todo esforço teológico para ler o texto no sentido católico possível. O que é certo é que se pode criticar a própria recepção oficial, na medida em que ela mesma, muitas vezes, não favorece esse sentido católico, mas algum sentido neoteológico injustificado e que conduz ao erro sobre a Fé; ou a própria qualidade ruim dos textos: ambiguidades, termos que contradizem o magistério anterior, novidades não definidas ou em matéria reformável com argumentação precária ou que favorece o erro…
Também a ideia do “magistério liberal” não me pareceu adequada, seja porque os papas conciliares realizaram efetivamente atos definitivos sobre o magistério ordinário universal [ainda que não atos definitórios], seja porque não é evidente que a concepção de “magistério” do CVII submeta a autoridade magisterial ao senso de Fé [trata-se de mais uma ambiguidade, que deve ser solucionada no sentido católico].
O sedevacantismo é uma autocontradição: defende que o papa é sempre infalível e que teria cometido uma heresia em âmbito infalível! Isso é fisicamente impossível, e implica que o fiel pode julgar o papa [ou, na autopercepção sedevacante, ver a posteriori que já não era papa]. Obviamente, a única chance do “papa herético” é de que haja um magistério pontifício ordinário meramente autêntico não-infalível e defectível; do contrário ele sempre acerta ou falha somente como teólogo privado.
Nenhuma dessas críticas tradicionalistas me convenceu. Aquela sobre o problema litúrgico, sim, e desde o primeiro momento em que eu tive contato com a questão, eu lhe dei razão: a Liturgia é uma ação, não uma teoria, e se é possível justificar em abstrato uma doutrina ambígua, isto deve ser feito, mas uma práxis litúrgica que é desastrosa ao longo de décadas não pode ser justificada apelando ao “missal em si” (sic) – que já é ruim e ambíguo, e cuja celebração mais decorosa ainda assim não conforma espiritualmente, por ela mesma, à Cruz, como já disse -, nem à autoridade disciplinar, como se a criança objetivamente feia se tornasse bonita porque o pai é forte…
Os tradicionalistas não têm um “problema conciliar” no sentido de que eles não estão inseridos no horizonte conciliar. Eles escrevem geralmente para justificar a sua condição e criticar desde “fora”, já assumindo a “heresia conciliar” (sic), sem uma “dialética” de tipo socrático-platônica que permita a um “conservador” honesto despertar desde o ponto em que se encontra. A crítica ao CVII deve ser tal que seja capaz de atingir a inteligência e o coração desse conservador; muitas vezes, ao viver profundamente a Fé no horizonte conciliar e especialmente ao se deparar com a tragédia do pontificado atual, ele já intui que os tradicionalistas estão certos no “atacado”, mas têm a mente repleta de preconceitos teológicos sobre a “indefectibilidade da Igreja”, a “infalibilidade dos concílios”, a “obediência”…
Já é mais difícil o convencimento dos conversos do protestantismo ou de outras religiões [o “diálogo”], ou dos católicos progressistas em política social, mesmo quando são bem formados e bondosos, ou até se vislumbram os problemas do CVII e os erros de Francisco…
A crítica mais óbvia à pastoralidade – feita pelo Pe. Paulo Ricardo, por exemplo – é a de que, ao afastar as condenações, ela deixa a Igreja desarmada diante do mundo e dos hereges em seu interior. Isto é verdade, mas não é toda a verdade nem a principal. A falta da “forma” conciliar tradicional ou a ausência da assistência infalível certa do Espírito Santo é o que permitiu o ingresso das ambiguidades dos neoteólogos “conservadores”: ambiguidades que puderam passar aos olhos dos bispos tradicionais [cujo esforço inseriu fórmulas clássicas ao lado] e que puderam servir posteriormente aos propósitos dos progressistas. O problema da “hermenêutica da continuidade” e de um “espírito do concílio” que seria extrínseco ao texto retroage ao problema da relação pastoralidade x teor dos textos. Continua…
Parte 11
A aceitação religiosa do CVII nos próprios termos do CVII é a atitude realmente “dócil”. Ela consiste, a meu juízo, em entender e aceitar que o único ponto de partida que se impõe objetivamente a todos e que pode solucionar teologicamente a crise respeitando os parâmetros do magistério e do CVII em especial é o do livro de Mons. Gherardini: “CVII, um debate a ser feito”. O tradicionalismo já está instalado na recusa, e o continuísmo, na petição de princípio da infalibilidade conciliar.
Indo já adiante do ponto a que Mons. Gherardini leva a questão, a “docilidade” real ao CVII e à Verdade católica implica em:
i) aceitar o próprio do CVII como magistério meramente autêntico, tal como explicado oficialmente no pós-concílio, como digno de assentimento em princípio, mas passível de erro ou não-indefectível em matéria reformável (superando assim a teologia ultramontana e a papolatria);
ii) reconhecer a “pastoralidade” sui generis, sem definições e condenações, dirigido ad extra em certos trechos e em GS, por vezes meramente descritiva, por vezes existencial… (com as consequências para o teor teológico e o valor jurídico dos textos);
iii) entender que um magistério meramente autêntico de caráter “colegial” – um magistério conciliar que não termina em decretos infalíveis – tem ainda a dificuldade de os textos serem o resultado, não da assistência infalível do Espírito Santo, mas do saber e da virtude ou vício dos atores eclesiásticos, da porção do Espírito que cabia a uns e da astúcia maliciosa que havia em outros, com o consenso democrático daí resultante segundo o jogo de forças espirituais que havia entre os padres conciliares, e o desígnio da Providência divina, que governa todos os acontecimentos.
Estes são princípios de interpretação que eu considero indispensáveis e explico na primeira parte do meu livro “O enigma do Concílio Vaticano II “, escrito a pedido do amigo Alessandro Lima. Já tinha várias coisas escritas a respeito do CVII, e durante a pandemia, de agosto a dezembro de 2020, terminei as 770 páginas.
Eu me resistia a “comercializar” um conteúdo que considero essencial comunicar a todos os católicos, mas o amigo me convenceu de que, de outra forma, sem uma publicação editorial, este conteúdo não seria comunicado de modo relevante. Continua…
Parte 12
O católico imagina que a infalibilidade dos concílios anteriores se baseava no “evento” concílio, e não na intenção de definir a verdade e afastar o erro através de atos extraordinários e jurídicos, nos decretos e cânones. Daí que ele projete no CVII a mesma “infalibilidade”.
E acha que a proteção ordinária do Espírito Santo à Igreja ou a graça de estado dos padres conciliares é o bastante para garantir que um evento conciliar sem definições e anátemas, com tantas cabeças e correntes teológicas diferentes, tenha documentos tão bem formalizados como aqueles decretos assistidos de modo extraordinário e infalível. É essa assistência, obtida pela intenção de definir a verdade e afastar o erro, que determina os rumos dos debates dos concílios tradicionais, na medida em que eles são realizados para terminar em atos infalíveis. O mesmo não ocorre, não pôde ocorrer no CVII. Se é irreverente rechaçá-lo a priori por não ser infalível, ou pensar que o Espírito Santo não esteve presente ali através dos bons padres conciliares e de intervenções pontuais do papa que permitem a leitura ortodoxa de textos confusos, é leviano considerar que suas finalidades e metodologia não estão na base dos seus problemas, ou que qualquer desejo dos papas é necessariamente inspiração divina – contra a prova dos fatos… -, e somos nós que “não entendemos o mistério” (sic) – da iniquidade, talvez – , e outras superficialidades assim.
Eu cheguei a entender que a verdadeira compreensão do CVII não pode ser simplesmente a da apologética que busca o sentido ortodoxo; porque a realidade é que a pastoralidade é ela mesma causa ocasional da crise, seja por não definir e condenar, isto é, por veicular uma doutrina que não é firme nem clara, que não afasta o sentido errado, e permite a ambiguidade, seja porque o ponto de partida que inspira realmente essa intenção pastoral já são concepções neoteológicas com um fundo errôneo, especialmente:
i) a eclesiologia do Pe. De Lubac, fundada numa noção errada de união de Cristo à humanidade pela Encarnação e de “desejo do sobrenatural” (que implica uma relação transcendental da essência humana a Deus e, no fundo, a salvação universal);
ii) o humanismo integral de Jacques Maritain, fundado num otimismo injustificado sobre a ação da Graça além dos limites da Igreja (inclusive no ateu sistemático!, o que implica uma aliança sem discernimento com os poderes do mundo).
Há outras influências, mas estas duas confluem no essencial e me parecem as mais marcantes. Mesmo que os elementos das teologias privadas, ao serem admitidas nos documentos eclesiais, deixem de ser obra particular e devam ser integradas de modo orgânico ao depósito da Fé, a verdade é que não foi feita realmente a depuração que possibilitasse uma verdadeira harmonização. Os próprios textos conciliares, que pelo seu caráter pastoral não são judicatórios ou dirimentes, realizaram uma admissão factual de uma teologia que não foi real ou juridicamente avaliada na instância adequada. De Lubac e Maritain eram pessoas que pareciam bem-intencionadas e academicamente competentes, mas isto não significa que estivessem isentas de erros graves. Erros menos terríveis do que os dos progressistas no pós-concílio, mas que já implicam uma certa relativização da missão e do justo enfrentamento ao mundo. A eclesiologia de um e a teologia política de outro *são as principais ambiguidades conciliares*, que abriram espaço: ao inclusivismo herético rahneriano, ao secularismo herético de Schillebeeckx, ao imanentismo herético teilhardiano e à herética teologia da libertação. Continua…
Parte 13
A crise eclesial conciliar só faz “sentido” se for entendida desde os critérios do próprio Concílio – o caráter sui generis da teologia pastoral – e a abertura que possibilitou.
A mesma história dos bastidores, com a recusa dos documentos preparatórios, etc., teria resultado em outro Concílio, seguramente ortodoxo, com as definições extraordinárias e anátemas.
A mesma suposta “infiltração maçônica” teria resultado em outro Concílio, idem.
A mesma presença “neomodernista” idem.
A suposta “heresia oculta” de J23 e P6 idem.
Porque, do contrário, nós fazemos da infalibilidade da Igreja uma questão de “sorte”: até agora teríamos tido papas ortodoxos e concílios com maioria de ortodoxos, mas as decisões teriam variado se os atores fossem heterodoxos ou se fossem em maioria heterodoxos…
Não. Não pode ser assim. Não creríamos de verdade na infalibilidade da Igreja e do papado, mas numa feliz e miraculosa coincidência durante 1965 anos.
Se alguém quer propor uma tese audaciosa, que seja essa: “o conhecimento finalmente claro dos limites da infalibilidade da Igreja no Vaticano I possibilitou a idealização de um concílio ou de um tipo de magistério ‘pastoral’ que poderia induzir ao erro sem que os protagonistas fossem fulminados pela ira divina, e sem que os fiéis pudessem reagir em nome da obediência”.
Parte 14
A própria “pastoralidade” é a “prisão” que constitui o horizonte conciliar. Como horizonte, é transparente aos que nele se encontram.
O “diálogo” tríplice (ecumênico, inter-religioso e com a humanidade) atenua o horizonte missionário: o diálogo sobre “o comum” não é mais simplesmente um “preâmbulo” do apostolado (preâmbulo amoroso e desinteressado, isto é, sem ânsia de “domínio”, mas de sintonizar com o coração de outrem a fim de partilhar a Verdade que ele não tem e da qual necessita), mas se torna uma via própria da evangelização ao lado da missão, que geralmente agora é vista como destinada preferentemente a católicos não-praticantes ou a pessoas irreligiosas. A Igreja passa a dizer aos crentes de outras religiões: “Cristo é o único Salvador, mas você poderia se salvar na sua religião por meios que só Deus conhece e que a teologia deve elaborar todavia” (não estou ironizando, isto pode ser encontrado tal qual nos documentos do magistério recente). Ou seja, não é realmente o anúncio do kerigma com a exigência da conversão, mas é uma “informação” teórica inclusivista, que “se envergonha do Evangelho” e não o apresenta como “poder de Deus para salvação”.
Quase sempre esse diálogo é uma diplomacia política estéril e às vezes escandalosa: congratulações vergonhosas pelas festividades das outras religiões, documentos conjuntos de conteúdo teológico irrelevante, orações inter-religiosas indiferentistas na prática… É impossível imaginar um Apóstolo realizando esse tipo de coisa, e a quem diga “são os sinais dos tempos” (sic) ou “o papa é que tem o Espírito Santo para saber” (sic) eu só tenho a dirigir o meu desprezo como resposta.
Se o testemunho apostólico está freado por esse dialoguismo, então o próprio horizonte do martírio está comprometido. E aí a vocação à santidade se comprime no horizonte da “santificação do trabalho”, do “compromisso com o mundo”, na “classe média da santidade” (sic); os meios ascéticos seculares se transformam, num passe de mágica, em contemplação, numa atualização da pseudo-mística eckhartiana que antepõe Marta a Maria.
O horizonte conciliar fica permanentemente no diálogo pastoral do Areópago sobre o “Deus desconhecido”, receia chegar ao anúncio de Cristo Crucificado; e a Liturgia conciliar prefere dialogar com judeus, humanistas e protestantes, acentuando o banquete convival em vez do escândalo da Cruz e seu caráter expiatório; seu rito não imprime a forma espiritual característica do católico, não favorece a compenetração com os sentimentos da Vítima Divina.
E assim chegamos ao início. Aquilo que eu intuía confusamente por volta de 2004 pôde ser finalmente entendido à luz desse percurso e dessas razões profundas. Continua…
Parte 15
À medida em que eu ia lendo os neoteólogos para entender a “nova consciência eclesial”, pude entender o fundamento da nova maneira de entender a relação Igreja x mundo.
Tradicionalmente, o mundo é visto como um âmbito sob o domínio de Satanás, mas que, a partir da Redenção, tornou-se um campo de missão, em que a Igreja vai resgatando homens e povos, e em que certas porções da humanidade optam por permanecer sob o jugo do Maligno, ou voltam ao vômito depois, com o qual vão se constituindo como inimigas do Evangelho. Em nenhuma parte do Novo Testamento há uma promessa de conversão universal; o que há é o envio a uma missão universal, e a promessa de que homens de todos os povos seriam feitos católicos.
Os neoteólogos, impressionados com os sucessivos revezes da Igreja (cisma do Oriente, reforma protestante, revolução francesa), com a grandeza dos feitos do mundo moderno (humanismo renascentista, ciência tecnológica, democracia americana), e com as “grandes religiões”, inventaram teses especulativas sem base na Revelação ou interpretando mal a Tradição, esforçando-se para não repetir os erros do modernismo condenado, mas favorecendo a salvação do mundo sem necessidade da ação evangelizadora da Igreja: primeiro o “meio divino” (Teilhard de Chardin), depois, para ficar apenas nos dois mais relevantes, o “desejo natural do sobrenatural” de Henri de Lubac, e o “cristianismo anônimo” (com a “revelação transcendental” e o “existencial sobrenatural”) de Karl Rahner.
São ideias que mantêm Cristo como redentor e a Igreja como meio da salvação, mas que descaracterizam em menor ou maior grau a missão.
Para o neoteólogo “conservador” (o paradigma é Lubac, que é a inspiração mais importante da perspectiva conciliar), o homem é [não tem] uma aspiração ao sobrenatural, de modo que o “diálogo” seria suficiente para fazer tomar consciência de uma vocação que já estaria inscrita no ser [os primeiros escritos de JPII vão nessa linha, mas mudam de perspectiva com a chegada de Ratzinger na CDF]. As realizações do espírito humano, como as religiões ou a recente valorização da dignidade humana, seriam tenteios desse sobrenatural buscado, e visariam, com suas insuficiências e deficiências, à plenitude de Cristo. Pela redenção objetiva (Encarnação, Paixão e Ressurreição) ou o “mistério pascal”, Cristo estaria próximo de todo homem, e a Igreja seria o signo visível (pleno e necessário) de uma realidade de salvação muito mais abarcante.
Para o neoteólogo “progressista” (o paradigma é Rahner e seu pensamento constitui em boa parte o “espírito do concílio” e pôde perfeitamente parasitar as ambiguidades da nova teologia conservadora), o sobrenatural é algo já doado, Deus está sempre revelado, antes da Revelação histórica. O “diálogo” não comunica a direção cristã ou o destino eclesial das aspirações humanas, mas reconhece que elas já são realizações do Cristianismo, revela a graça em que já se está.
Ambos os autores ainda falam de “condenação” e “inferno”, ou da possibilidade de rechaçar a graça, embora isto soe como elementos estranhos aos sistemas (concessões à ortodoxia); essas teses funcionam como uma interpretação fundamentalista de 2Tm 2, 4. Rahner seria mais consequente e defenderia a salvação universal no pós-concílio. Von Balthasar, mais comedido falará de “esperança do inferno vazio”. Mas nada disso tem qualquer respaldo na Revelação.
A doutrina tradicional de que estas teses se aproximam é a de Cristo Cabeça da Humanidade (por exemplo, na Suma Teológica, citada em Lumen Gentium): todos os homens são membros potenciais da Igreja. A doutrina de LG das relações da Igreja com os não-católicos expressa os diversos níveis da ordenação dos homens à Igreja (tentando harmonizar Santo Tomás e o espírito da nova teologia): demais cristãos com elementos de santificação e verdade, demais religiosos com sementes do Verbo, homens de “boa vontade”. Na doutrina tradicional, a necessidade da missão é imperiosa, e é certo que muitos membros potenciais nunca serão atuais e que muitos atuais morrerão afastados de Cristo.
A pseudo-mística (pseudo-união com Cristo) dessas teses está na base, a meu ver, da deficiência mística do horizonte conciliar, que foi o ponto de partida da minha inquietude.
O humanismo integral de Maritain, que não tem essa sofisticação teológica, mas crê numa Cristandade não confessional e pluralista pela caridade na política, serve às duas vertentes no âmbito da teologia política: tanto ao conservadorismo da luta pela lei natural, quanto ao progressismo da luta pela justiça social.
Enfim, o real entendimento do CVII fica prejudicado tanto se é associado ao modernismo sem mais, sem a compreensão da nouvelle théologie, quanto se se projeta nele uma visão clássica que não fundou os textos. Continua…
Parte 16
O pontificado de Francisco me fez perceber que a “hermenêutica da continuidade” não pode ser a última palavra sobre o CVII.
Não que não se deva procurar o sentido católico dos textos escritos a partir de uma nova teologia conservadora que já não é perfeitamente ortodoxa, e que abre espaço à nova teologia progressista formalmente herética.
Mas é que, ao não ter definições formais, ao não ter limites que bloqueiem a interpretação heterodoxa, e ao contar com o reforço de uma interpretação teológica papólatra da infalibilidade papal, o horizonte conciliar permite que possa haver uma permanente evolução, chamada “desenvolvimento doutrinal” (sic), bastando para isso que um progressista se sente na cátedra petrina.
Em resumo: todo esforço teológico para dar um sentido ortodoxo ao CVII esbarra no próprio horizonte da indefinição; no horizonte de um magistério meramente autêntico reformável que é sempre reformado na direção decidida pelo sujeito magisterial. E isto pode ser feito sem mudança direta dos dogmas, com permanentes mudanças “pastorais” que comprometem a ortodoxia de modo oblíquo, sem atacar diretamente o dogma, mas indo muito além da ambiguidade, abraçando o erro e solapando a fé.
Como bem viu o superior da FSSPX, se em toda parte há uma “certa comunhão” (sic) com ou uma “ordenação” à Igreja, então qualquer experiência que possa ser dita “amorosa” em algum nível, está nesta “certa comunhão”; daí a autorização para a comunhão dos recasados em pecado grave objetivo, sequer com certeza moral da nulidade. Afinal, se a consciência não pode ser impedida no âmbito da matéria religiosa, ela também pode ser o critério em outras matérias.
A dignidade humana ontológica do pecador é absolutizada de tal modo, sem referência ao dinamismo da dignidade moral – que na criatura livre é mais importante e determinante -, que já não se vê como é possível ainda acreditar no inferno.
A probabilidade da inviabilidade do nascimento autoriza a histerectomia (esterilização), abrindo passo à desvalorização da pessoa não-nascida e à contracepção.
Das “sementes do Verbo” se passa à “pluralidade de religiões queridas por Deus”.
Uma verdade mariana certa mas não dogmatizada e incômoda ao diálogo ecumênico é uma “tontería”.
A lex orandi vira algo determinado por decreto.
Os apóstatas e blasfemadores (!!!) participam da comunhão dos santos…
Dia e noite os católicos coerentes são acusados diante de Deus e os mundanos são adulados.
A heterodoxia de Francisco e sua ação objetivamente destruidora (independentemente da sua intenção) são o limite do mal no interior da Igreja, ou o limite do avanço das portas do inferno. Ou ele se converte, ou vem um papa restaurador, ou Deus porá um ponto final na história.
Termina aqui.
Apêndice
Tendo vivido no âmbito “conservador” durante tempos, eu não renego esta experiência, como se não tivesse sido católica. Não creio que os católicos conservadores sejam “heréticos”, “liberais” ou o que seja.
Há, repito, uma limitação no horizonte conciliar, como havia um outro tipo de limitação no horizonte pré-conciliar. Ambos são horizontes modernos do “homem exterior”, do legalismo (juridicismo), mas o anterior tinha a vantagem de não ser historicista (de não imaginar que “a Tradição ‘viva’ é o que decidimos hoje”), e de ter uma Missa que comunica a sacralidade atemporal em seu rito, independentemente das disposições subjetivas do padre (apesar de haver abusos também, como músicas operísticas etc.).
Já era difícil “vencer o mundo”, mas mais por uma conformidade cultural ou aburguesamento inconsciente, pelas perseguições políticas nos países católicos que limitaram o âmbito da ação eclesial, e não por um propósito deliberado de associação imprudente ao mundo. O horizonte do martírio, do heroísmo da missão ou da vida contemplativa… ainda eram bem visualizados em seu sentido originário.
Hoje o catolicismo muitas vezes se reduz a política, de esquerda ou de direita. O Reino de Cristo não é deste mundo. Para o Senhor reinar nas sociedades, ele precisa reinar nas mentes e corações de seus representantes, em primeiro lugar. Para que os Pastores voltem a dar a vida por suas ovelhas. E então a besta, que reina desde as revoluções americana e francesa, seja derrotada pelo testemunho do amor que traz o fogo do Espírito Santo à terra e renova todas as coisas.