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O Credo do Povo de Deus e o Vaticano II

Uma interessante reflexão de Joathas Bello sobre a relação do Credo do Povo de Deus, do Papa Paulo VI, como norte interpretativo do Vaticano II:

Outro texto muito importante para entender o “magistério conciliar” é o “Credo do Povo de Deus” [antes ele tinha comentado sobre a Dominus Iesus], Credo solene de Paulo VI, professado em 1968, que poderia ser dito a “Confissão de Fé do CVII”.

Nele, se vê com bastante clareza o que o CVII declarou como de fé – por participação no magistério infalível (solene ou ordinário universal) -, e o que declarou como seu peculiar ou sui generis “magistério pastoral”, parenético (ad intra) e dialógico (ad extra).

Por exemplo, lá se diz “Cremos na Trindade” (ato de fé), e “rendemos graças à Bondade divina pelos que dão testemunho da unidade divina, embora não reconheçam a Trindade”. Vê-se, pois, com clareza, que a afirmação do teor para o diálogo inter-religioso não faz parte da confissão de fé, mas é uma conclusão filosófica e teológico-pastoral que promove tal diálogo a partir do “comum” (reconhecimento racional da Divindade una).

Diz-se ainda que “Cremos na Igreja una, santa, católica e apostólica, edificada por Cristo sobre Pedro”, e que “cremos na infalibilidade papal ex cathedra e na infalibilidade eclesial”.

Mais adiante se diz “Cremos na Igreja, una na fé, no culto e comunhão hierárquica” (ato de fé), e “reconhecemos fora da sua estrutura muitos elementos de santificação e verdade, que como dons da própria Igreja, impelem à unidade católica”. Vê-se, pois, que a afirmação do teor para o diálogo ecumênico não faz parte da confissão de fé, mas é uma conclusão teológico-pastoral que promove tal diálogo a partir do “comum” (reconhecimento teológico da origem comum da Hierarquia, dos Sacramentos e da Sagrada Escritura, e de que o fim dessas realidades é a unidade católica).

Em seguida, se diz “Cremos que a Igreja é necessária para a salvação” e emenda com a doutrina clássica da possibilidade da salvação em ignorância invencível.

Diz-se que “Cremos na Missa como Sacrifício do Calvário” e que “Cremos na Transubstanciação eucarística”. O CVII não implementou nenhuma nova concepção doutrinal a respeito da Fé eucarística.

Depois, diz-se que “Confessamos que o Reino de Deus começa aqui na terra na Igreja e não é deste mundo, que seu crescimento não pode ser confundido com o progresso da cultura humana e da ciência, mas em conhecer as riquezas insondáveis de Cristo, esperar os bens eternos, responder ardentemente ao amor de Deus, difundir cada vez mais a graça e santidade entre os homens”. E simplesmente afirma que o “mesmo amor impele a Igreja a interessar-se pelo bem temporal dos homens, em promover a justiça, a paz e a união fraterna, e a ajudar especialmente os pobres”, e diz que “esta solicitude não pode ser interpretada como se a Igreja se acomodasse às coisas do mundo”. Vê-se, pois, que a afirmação do teor para o diálogo com a humanidade não faz parte da confissão de fé, mas é uma conclusão teológico-pastoral que promove tal diálogo a partir do “comum” (a promoção da justiça, da paz, da concórdia).

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Percebe-se que a “colegialidade” e a “liberdade religiosa” nem sequer são mencionadas, ou seja, não foram apresentadas com status de “verdades de fé”. Podemos presumi-las como conclusões teológicas para fomentar o “diálogo” hierárquico no interior da Igreja (os sínodos dos bispos foram a aplicação concreta da “colegialidade”), e para a implementação do “diálogo” ad extra.

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Por que estas considerações são importantes? Porque elas demonstram que os problemas conciliares se situam “em torno das questões de fé” [algo análogo se passa com a “reforma litúrgica”], não as atingindo diretamente (mantendo incólume a “substância do depósito da fé”). Isto não minimiza a crise vivenciada, apenas indica com maior rigor a sua natureza. A distorção dessas conclusões teológicas [que não são de fé] oficiais ou pastoralmente programáticas é o mais grave que pode ocorrer na vida da Igreja, mas não é uma defecção oficial da fé [o magistério tem uma estrutura ou umas formalidades que funcionam como efetiva barreira para uma “apostasia oficial”]. A rigor, é mais um problema moral, relacionado ao testemunho do que se confessa, do que doutrinal, relacionado à confissão mesma.

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Os direitos da tradição e os limites do positivismo papal

Tradução do texto de uma palestra dada pelo Dr. Peter Kwasniewski na conferência Paix Liturgique, Roma, em 28 de outubro de 2022 e que foi mais tarde publicada pela Catholic Family News. Esta palestra representa basicamente aquilo que penso sobre o tema da obediência no atual contexto de crise da Igreja, me afastando de neoconservadores e sedevacantistas, embora que sem aderir a todas as consequências práticas defendidas e tomadas pelo autor.

Sempre que os tradicionalistas se opõem ou rejeitam uma determinação papal específica sobre a liturgia — seja a criação de novos livros litúrgicos ou a limitação severa do uso de ritos costumeiros — nossos oponentes neoconservadores [e também os sedevacantistas] estão prontos para nos atacar com uma bateria de textos extraídos de papas como São Pio X ou Pio XII, ou do Vaticano II, ou de manuais neoescolásticos, no sentido de que “o papa tem o direito de mudar a liturgia, instituir este ou aquele rito como quiser” etc., porque, como o Vaticano I ensina, ele tem jurisdição suprema, universal e imediata sobre a Igreja. Obviamente, há alguma verdade em tal afirmação, mas ela não prova tanto quanto aqueles que a dizem pensam que prova.

Primeiro, qualquer declaração como essa é governada por certas normas implícitas. Por exemplo, que o Papa pode instituir ou alterar ritos nunca foi tomado como significando que ele pode abolir um rito completamente, por exemplo, um dos ritos orientais da Igreja sobre o qual ele é tecnicamente o chefe supremo com autoridade jurídica universal e imediata. E se ele fizesse isso, os católicos bizantinos estariam totalmente dentro de seus direitos de ignorar sua ação completamente e continuar como se nada tivesse mudado. Há abusos ou usos indevidos de autoridade que cancelam sua ação, e somos capazes de formular critérios para tais casos.

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Amoris Laetitia e a indissolubilidade

Por que Amoris Laetitia nega indiretamente o dogma da indissolubilidade do matrimônio (ainda que não o negue frontalmente em parte alguma)?

Simplesmente porque AL permite que uma situação de “recasamento”, em que a nulidade do casamento sacramental não foi verificada, sem sequer pressupor uma certeza moral de tal nulidade (não é esse o argumento oficial, mas o motivo natural de não ferir o cuidado dos filhos da nova relação), seja aceita na prática como “justificada” ou “agraciada”.

Não importam as desculpas oficiais do texto sobre a “inimputabilidade” e os “condicionamentos”.

Não existe, de fato, uma situação real de pessoas incursas habitualmente na falta de liberdade para viver na Lei do Espírito que estejam na Graça da Caridade.

Não existe, de fato, uma inimputabilidade concedida “a priori”, ou uma espécie de “direito de pecar de modo objetivo e sem culpa simultaneamente a sabendas”.

As pessoas exteriormente – “objetivamente” (sic) – “recasadas” que estão efetivamente – interiormente, espiritualmente, i.é, objetivamente mesmo! – na Graça de Deus (na Graça da Caridade) são pessoas que – Deus o sabe – não tiveram seu casamento sacramental válido – ele é nulo por motivos de Deus conhecidos – e têm sua situação atual válida – aos olhos de Deus, que supre ocultamente tanto a sentença do tribunal quanto a necessidade do casamento sacramental ostensivo, impedindo a fornicação.

O “mistério” da Graça é esse!

Não existe, de fato, uma situação de Graça que contradiz… a situação interior e real de Graça!

Os teólogos moralistas atuais fazem da situação da Graça uma situação “subjetiva” enquanto “subjetivista”, “segundo a consciência subjetiva”, i.é., imaginativa, fantasiosa, segundo os meandros do psiquismo imerso nas impressões e afetos sensíveis.

Se alguém está na Graça e comete um pecado objetivo “inimputável” por não sei quais condicionamentos, fragilidades, ignorância… não agiu segundo a Graça neste ato, não viveu a liberdade dos filhos de Deus neste ato, muito embora tal ato não expulsasse a Graça da Caridade de seu coração.

Todo discernimento “de cima” ou “de fora” sobre uma tal situação é um discernimento em que se conclui – o confessor, o diretor espiritual ou a própria pessoa num momento agraciado de lucidez e liberdade – que a pessoa deve alcançar a força, o conhecimento e a liberdade interior para não repetir tais atos, os quais permanecem, em todo caso, como “confessáveis”.

No caso de um “recasado” – cujo casamento sacramental foi válido ou não pode ser pressuposto como nulo -, cada uma de suas relações sexuais feita sob tais condicionamentos é um peso moral a ser resolvido; para ser um “avanço” legítimo em relação a Familiaris Consortio, AL teria que dizer apenas que os casais que buscam sinceramente viver como irmãos, porém caem frequentemente pela proximidade, o desejo etc., devem ser vistos com compaixão no confessionário etc. Este seria o modo de atenuar o fardo de tais pessoas recasadas que buscam sinceramente viver no amor de Deus.

A solução dos Bispos de La Plata aceita oficialmente pelo papa falecido, ainda que não tenha querido ferir a indissolubilidade, fere-a realmente, porque estabelece paradoxalmente como que uma norma que relativiza o dogma do matrimônio. É uma solução antipastoral.

Não importa a intenção lógica subjetiva do agente magisterial, porque o correlato real da gramática e da lógica de quaisquer textos, inclusive dos eclesiásticos, deve ser algo real possível e não algo real ficcional. O sujeito magisterial não tem força para “criar realidades”, ele não é Deus.

Joathas Bello

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Francisco rompeu com a Tradição?

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Da obediência à injustiça

Um cristão deve acatar obedientemente todas as disposições particulares injustas na Igreja (desde que não sejam imorais, que não mandem o pecado ou abusem da dignidade humana e batismal, evidentemente).

Assim, um fiel terá que aceitar a perseguição de seu superior: um bispo, deve aceitar uma renúncia injusta imposta por um mau Papa; um teólogo ortodoxo, aceitar ser removido de sua cátedra por um bispo herético; um monge, aceitar um trabalho humilhante do abade invejoso; um leigo, aceitar ser retirado do seu trabalho fecundo numa pastoral por um pároco arrogante, etc.

Todas esses reveses devem ser acatados como cruzes, e esta aceitação humilde é fonte de santidade para o fiel perseguido e a Igreja. O superior peca e não se santifica com estas ordens deliberadamente imprudentes, mas a obediência é para a santificação dos subordinados.

Mas se o superior ordena algo que afeta o bem comum da Igreja, então não faz o menor sentido a obediência, que, em tais casos, é reduzida a obediência servil, não fiducial.

Por isso, o rechaço da conduta abusiva de superiores que são predadores sexuais não é de modo algum um ato de “desobediência”, mas de virtude!

Por isso, também, a “desobediência” dos tradicionalistas na questão da Missa é um ato heroico de Fé teologal e de santa obediência à Lei Divina.

Quando um Papa age contrariamente ao bem comum da Igreja, por exemplo, proibindo uma Tradição apostólica ou ensinando um erro heretizante no magistério ordinário meramente autêntico – tais atos têm de poder ser discerníveis ao menos pelos fiéis mais doutos e virtuosos, pois do contrário a Fé seria uma agnose fideísta e uma gnose papólatra -, então ele não atua em consonância com seu ofício, ele não exerce um verdadeiro ato magisterial ou disciplinar, isto é, não age como pontífice, e não se encontra, portanto, nestes atos, sob a proteção do adágio (que é uma norma canônica – que supõe o ato ou conduta justos – e não um dogma) “ninguém julga a Santa Sé”.

Joathas Bello

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É necessário discernir a autoridade

Os continuístas e sedevacantistas têm certa razão quando dizem que não se pode ficar escolhendo o magistério a aceitar.

A perspectiva tradicionalista que se apoia na falibilidade do magistério ordinário meramente autêntico é realmente inusitada, porque seriam 60 anos de muita fraude, e assim os outros 1962 anos da Igreja teriam tido muita sorte de papas ortodoxos.

O magistério papal em sentido estrito não é ortodoxo porque os papas são ortodoxos, o magistério papal é ortodoxo porque sua (reta) função é indispensável.

Entretanto, o (que parece ser) magistério tem ensinado ambiguamente (o que já é incompatível com a função) e tem inclusive errado. Isto é um fato inapelável. O continuísmo puro e simples é errado com total evidência.

E a tese do sedevacantismo é uma hipótese que envolve uma combinação de probabilidade teológica e decisão prática que só pode ser assumida pelo indivíduo, jamais pode se impor à inteligência católica universal.

A solução do Pe. Calderón afastando a magisterialidade das novidades conciliares por causa da intenção liberal é mais razoável que ambas soluções.

O problema é que essa intenção é uma possibilidade interpretativa do CVII! Não se impõe com evidência como a única nem como a mais provável, porque onde o magistério é tratado formalmente, a definição é correta…

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Questionando o sedevacantismo

Hoje numa live do CDB, o Prof. Alessandro Lima, questionou, no intuito de refutar, os fundamentos do sedevacantismo:

Não vou comentar sobre o conteúdo neste momento, pois me falta tempo e paciência para esse assunto, mas considero que o vídeo serve para o amadurecimento dos leitores em torno da questão, seja no sentido das intenções do CDB, seja contra ela.

Aqui o contraponto:

A tréplica:

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Juízo tradicionalista sobre os papas

Texto de Joathas Bello:

O juízo dos tradicionalistas sobre os papas conciliares é parcial.

Como já disse em algum momento, o “sim, sim, não, não” é sim a todo sim e não a todo não.

1) João XXIII é uma incógnita (tanto é que há sedevacantistas que o têm como Papa e bom Papa!): até o CVII parece um Papa normal, mas permitiu que a minoria progressista de bispos assumisse o controle da metodologia conciliar e escreveu Pacem in Terris no decorrer do CVII, fundamentalmente correta, mas com sabor humanista que antecipa Gaudium et Spes (e Populorum Progressio e Fratelli Tutti, esta última já inteiramente inaceitável de um ponto de vista católico).

2) Paulo VI é profundamente ambíguo e foi objetivamente negligente. Teve atuações importantes como Papa: Humanae Vitae, intervenções pontuais que resguardam as possibilidades ortodoxas da “colegialidade” e da “liberdade religiosa”, o Credo do Povo de Deus que manifesta o que é de Fé e o que é contingente (o diálogo) no CVII, Mysterium Fidei e a correção da definição do Missal sobre a Missa, que dão o contexto para a reta intenção da Igreja na celebração do novus ordo. Em outras palavras, o carisma papal ali funcionava, num modo parcial (suficiente para a indefectibilidade eclesial, insuficientíssimo para o bem requerido). Mas fez discursos de índole maçônica (humanista e filognóstica) na ONU e no encerramento do CVII, fez a péssima reforma litúrgica, e proibiu aparentemente o rito tradicional. Via os males mas não assumia sua culpa e se autojustificava. Se a canonização é infalível, a balança de Deus o favoreceu, ainda que objetivamente ele não seja modelo de santidade papal e sua canonização tenha sido um ato fundamentalmente político.

3) João Paulo II teve formação neoteológica e seus primeiros documentos e discursos favorecem o erro teológico da gratificação. universal. Sua visão sobre a reforma litúrgica e a Missa tradicional era obtusa, pode-se questionar a excomunhão dos bispos tradicionalistas, mas com o Ecclesia Dei ele objetivamente melhorou a situação deixada por Paulo VI. O Encontro de Assis foi um horror injustificável. Mas seu ensinamento moral – por causa da formação fenomenológica, ao contrário da interpretação tradicionalista – é muito bom; e seu testemunho em favor da lei natural atrasou os horrores mais recentes. Sua luta contra a TL e o comunismo foram determinantes. Seu amor a Nossa Senhora e seu ardor apostólico eram sem fingimento. Sua aceitação do sofrimento, exemplar. Era um homem reto e piedoso; só a antipatia visceral o impede de ver.

4) Bento XVI levou adiante o bem parcial de João Paulo II. Responsável, no pontificado anterior, por Dominus Iesus, que deu a interpretação cristológica e eclesiológica ortodoxa definitiva do CVII. Esboçou críticas graves (ainda que com o comedimento de homem da Igreja) a Gaudium et Spes (ao otimismo conciliar) e à reforma litúrgica. Corrigiu em parte sua injustiça com Summorum Pontificum, responsável (na esteira da resistência tradicionalista) pelo conhecimento e expansão universal (embora comedida) da liturgia romana de sempre. Acalentava o ideal da “reforma da reforma” e da “hermenêutica da continuidade”, soluções pastorais intelectualistas e insuficientes – tendo-se em conta a devastação progressista do pontificado atual – para os problemas conciliares (que não chegou a reconhecer na raiz, pela mentalidade neoteológica da qual nunca adquiriu a distância necessária). Sua teologia tem traços de sabedoria (que o tradicionalismo não consegue reconhecer).

5) Francisco é tudo o que dizem. E ainda pior. Infelizmente.