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Arte

A inovação nas vestes da repetição

No entanto, se assim se pode dizer, a culpa deste “amalgamento” indiscriminado de dez séculos deve-se também um pouco à cultura medieval que, tendo escolhido ou tendo-se visto obrigada a escolher o latim como língua franca, o texto bíblico como livro fundamental e a tradição patrística como único testemunho da cultura clássica, se aplica a fazer o comentário de comentários e a citar fórmulas estabelecidas, com aparência de quem não diz nada de novo. Tal não é verdade, a cultura medieval tem o sentido da inovação, mas esforça-se por escondê-la sob as vestes da repetição (ao contrário da cultura moderna, que finge inovar mesmo quando repete).

– Umberto Eco (Arte e Beleza na Estética Medieval)

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Ética e moral Pastoral

Temperança e intemperança

questionPergunta feita pelo leitor Edgar:

O que é temperança?

Respondo a partir da lição de Frederico Tillman (A Moral Católica, Vozes, 1953).

A temperança é uma virtude moral que modera a atração para o prazer sensível, em particular para os prazeres do gosto e do tato, e conserva-os nos limites da honestidade.

Quando modera o paladar, a temperança chama-se sobriedade; compreende também o uso de bens voluptuários (fumo, álcool, etc.). Moderando o prazer anexo à propagação da espécie, chama-se virtude da castidade.

Os vícios contrários são a gula e a luxúria. Peca-se por gula quando o excesso de comida e bebida prejudica a saúde, ou perturba o domínio da razão sobre o instinto (inebriação completa).

Vamos desenvolver um pouco essas informações básicas:

a) O objeto da temperança é moderar todo prazer sensível, em particular os que se ligam às funções principais da vida orgânica: o comer e beber que conservam a vida do indivíduo, e os atos sexuais que visam a conservação do gênero humano. A temperança faz-nos usar desses prazeres para um fim honesto e sobrenatural. Por isso é que subordina o seu uso às prescrições da razão e da fé.

Como o prazer é atraente, e pode arrastar para além dos justos limites, a temperança nos leva à mortificação, até em coisas lícitas, a fim de nos assegurar o domínio da alma sobre a paixão.

b) A desordem da gula consiste em procurar o alimento por si mesmo, a exemplo daqueles que do ventre fazem um deus (Filipenses III, 19), ou em procurá-lo em excesso, sem respeitar as regras da sobriedade (por exemplo: comer fora das horas, com muito requinte, com demasia, com sofreguidão, etc.).

c) Sua malícia está em escravizar a alma ao corpo, embrutecer as faculdades intelectuais, abalar a saúde, desperdiçar os dons de Deus (defraudar os pobres sem pão). O excesso de comida não passa, geralmente, de culpa venial. O excesso de bebida é mortal se levar à plena inconsciência (inebriação completa). Como vício capital, a gula provoca as seguintes faltas e pecados: rixas e blasfêmias, impureza e volubilidade, dissolução e loquacidade.

É sempre bom lembrar que a medida da alimentação não pode ser a mesma para todos. Muitas pessoas precisam de alimentação mais abundante (por exemplo: trabalhadores manuais, pessoas anêmicas e propensas à tuberculose, etc.). Outras há que devem restringi-la, para combaterem o artitrismo, a esclerose, etc. Sigam-se, nesse ponto, os conselhos do médico. É natural que as pessoas mais novas, durante o crescimento, também precisem de uma alimentação mais forte e abundante.

É nosso dever moral acostumar-nos à temperança, por meio de mortificações voluntárias. Convém, portanto, submeter-nos de vez em quando a pequenas privações que fortifiquem a vontade ,sem nenhum dado para a saúde. Quem as omite habitualmente, vicia o estômago a superalimentar-se. A superalimentação, porém, abala a saúde e exacerba a sensualidade. A guerra contra a luxúria não pode vingar enquanto não for vencida a glutonaria. Assim, os pais devem habituar os filhos a um passadio frugal.

O mesmos princípios devem ser aplicados ao uso de entorpecentes medicamentosos (morfina, éter, etc.; no passado a cocaína e a maconha também eram usados com fins médicos, e se um dia voltarem a ser, deverão obedecer aos limites citados). Quando necessário, deve estar sob rigorosa vigilância (receita e assistência médica).

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Teologia

Grau de certeza e grau de censura

chatDebate recente no Orkut:

Eu: Ricardo, eu não vejo problema algum na relação sinal-graça no que se refere ao sacramento citado. A graça sacramental do Matrimônio se dirige ao bom desempenho dos esposos na sociedade conjugal (qualquer catecismo digno do nome diz isso de maneira simples e clara) e, desse modo, só tem uma relação indireta com a simbologia Cristo-Igreja (um sacramento pode ter mil e uma simbologias sem que isso implique em muita coisa sobre sua graça própria). O Matrimônio, portanto, é sacramento em sentido estrito. E não há controvérsia alguma sobre quem o ministro desse sacramento, se os ortodoxos afirmam algo diferente do que ensina a Igreja isso é erro, é heresia, não é controvérsia (controvérsia existe dentro da Igreja, como a que se refere à matéria da Penitência, ou a existência de uma coisa chamada “restrição mental”).

Rui: Thiago, nem toda doutrina apresentada como certa pelos teólogos ocidentais implica em heresia para seus contraditores.

Eu: Nada disso é algo apresentado como certo por teólogos ocidentais, mas pela Igreja e, portanto, contradizer que o Matrimônio é sacramento ou que os noivos é que são os ministros do mesmo é objetivamente uma heresia. Evidente que se tivéssemos um problema de definição lingüística, de modo que o que chamamos de “ministro” não fosse equivalente ao uso que os ortodoxos fazem dessa palavra, o problema seria só aparente; e falar em heresia objetiva não implica necessariamente em heresia subjetiva.

Rui: Certo, mas não basta uma doutrina ser proposta pela Igreja, pois ela pode ser proposta infalivelmente ou de um modo meramente autêntico. Nem toda doutrina das encíclicas é proposta com o máximo grau de autoridade como formal ou virtualmente revelada.

Eu: Você está falando em tese ou concretamente? Se for em tese, para casos hipotéticos, eu concordo, mas se for para o que acabei de explicar, sua colocação está equivocada.

Rui: No caso do matrimônio ser sacramento, é evidentemente uma verdade de fé divina e católica definida, mas sobre os ministros do matrimônio não, muito embora seja certa em teologia e doutrina católica, ensinada por Pio XII na “Mystici corporis”.

Eu: Não há margem de dúvida que o Matrimônio é sacramento e que os noivos são seus ministros (ou, de outro modo, seria o cúmulo da ilogicidade considerar como válidos e sacramentais os matrimônios realizados em locais onde não aparece um padre a décadas – como ocorre em certos lugares da China). Não faço idéia de como se chegou a isso ou de qual a classificação dada pelos teólogos (supondo que esse fosse um grande critério para se avaliar algo, dada a variedade de posicionamentos), mas a mera reflexão em torno dos problemas que surgiriam com a hipótese contrária já faz com que ela tenha de ser rejeitada sem nem precisar aprofundar muito.

Rui: Thiago, eu não expressei a mínima dúvida sobre a questão, e sim sobre a censura. É de fato uma doutrina infalível, decorrente da própria disciplina eclesiástica, que permite que o matrimônio se contraia sem a assistência de um sacerdote. O que eu falei não é sobre o grau de certeza da sentença, e sim do grau da censura.

Eu: Bem, então eu não entendo sobre o quê você está falando. Você pode explicar qual a diferença e implicação prática entre essas qualificações (grau de certeza e grau de censura)?

Rui: Pe. Ceriani, num ensaio sobre o sedevacantismo (Monsenhor Lefebvre e a Sé Romana) diz que nem todo que nega uma doutrina infalível (definida pela Igreja sem ser formalmente revelada) é herege, embora o é, na opinião de Santo Tomás, se a negação levar indiretamente à corrupção de um artigo de fé (IIaIIae, q.11, a.2).

Eu: Como ele chega a tal conclusão (suponto que fale de uma negação formal, isto é, sem dirimente subjetiva)?

Rui: Penso que tenha chegado a ela pela definição que se dá de herege no Código de Direito Canônico. Santo Tomás, por sua vez, não dá uma definição canônica, mas lógica, pois quem nega indiretamente alguma coisa, ainda assim, o nega.

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Crise Teologia

A liberdade religiosa a partir da Dignitatis Humanae

consciênciaEstudo do confrade Joathas Bello publicado originalmente no site Reino da Virgem Mãe de Deus em março de 2008 (foram feitas pequenas modificações, em geral na ortografia e na numeração dos documentos):

A liberdade religiosa a partir da Dignitatis Humanae e o Magistério pré-conciliar

Um dos textos do Concílio Vaticano II sobre o qual se criou mais polêmica é, sem dúvida, a Declaração Dignitatis Humanae sobre a “Liberdade religiosa” (DH). Na mente de certos setores tradicionalistas, a Declaração contradiz textos do Magistério pré-conciliar, que condenam veementemente a liberdade de consciência e a liberdade de cultos. O objetivo de nosso artigo é avaliar se a DH estaria efetivamente contradizendo o Magistério anterior, ou se ambos magistérios são, no fundo complementares, iluminando-se mutuamente.

1. O que é a “liberdade religiosa”

Em primeiro lugar, deve-se dizer que são duas coisas distintas a liberdade da Igreja, que a ela foi concedida por Deus de modo sobrenatural – que é um direito “da” Verdade –, como a DH reafirmou (cf. n. 13), em conformidade com a Tradição, e o direito à “liberdade religiosa”. Esta também não corresponde exatamente à liberdade de consciência dos fiéis católicos – que é o direito “à” Verdade religiosa –, mas é, segundo a DH, um “direito natural” da pessoa humana enquanto tal à imunidade de coação por parte do poder político, em matéria religiosa, nos devidos limites (cf. DH 2). De acordo com esse direito, o poder político, em matéria religiosa: a) a ninguém pode obrigar a viver contra a própria consciência; b) nem impedir que alguém viva em conformidade com a mesma, guardando-se a justa ordem pública. Essa segunda parte do direito compreende: b.1) que os católicos não podem ser impedidos pelo Estado de forma alguma, uma vez que injusto seria obstaculizar a Fé verdadeira, o que concorda com a liberdade de consciência dos mesmos; b.2) que os não-católicos não podem ser impedidos pelo Estado, mesmo católico, dentro de justos limites, a partir dos quais caberia uma intervenção da autoridade pública para proteger o bem comum dos abusos à liberdade religiosa.

Com a primeira parte, todos concordam, reconhecendo que sempre foi ensinada explicitamente (cf. Leão XIII, Immortale Dei, n. 47; Pio XII, Mystici Corporis, n. 101). Ninguém nega a primeira metade da segunda parte, obviamente. A segunda metade, de acordo com os tradicionalistas, entra em contradição com o Magistério anterior, para o qual o Estado teria sim um direito, em tese irrestrito, a impedir os cultos das religiões falsas, uma vez que, segundo a doutrina tradicional, o erro não tem direito à existência, nem à ação ou propaganda, e apenas se poderia tolerar as religiões falsas (cf. Pio XII, Discurso ao V Congresso Nacional da União de Juristas Católicos Italianos, de 06/12/53, n. 6; Leão XIII, Libertas Praestantissimum, n. 23). Antes de analisarmos a interpretação tradicionalista, de que o Estado tem, a priori, um direito irrestrito a impedir as religiões falsas, vejamos o conteúdo do direito proclamado pela DH, para ver se se trata de um “direito ao erro”.

Este direito à liberdade religiosa se funda, segundo a DH, “na própria dignidade da pessoa humana”, ou “na sua própria natureza” e não “na disposição subjetiva da pessoa” (DH 2), não se tratando, portanto, de um direito fundado na consciência psicológica, no resultado das opiniões subjetivas, nem mesmo nas opções concretas da consciência moral – há quem argumente a favor da liberdade religiosa, baseando-se na doutrina da consciência invencivelmente errônea (cf. S.Th. I-II, q9 a5), mas essa tese não responde à fundamentação da DH, que apresenta o direito fundado na natureza e não na consciência humana; mesmo porque a razão errônea exclui a culpa, mas não o erro, o que daria razão aos tradicionalistas, e faria a DH contradizer o Magistério anterior e a reta razão, que afirmam a inexistência do direito ao erro. Não é um direito à liberdade “de” consciência, como se essa fosse auto-referente e criasse a Verdade religiosa, mas um direito à liberdade “para” a consciência cumprir a obrigação moral de buscar e abraçar a Verdade religiosa objetiva (cf. DH 1 e 2), sem coação externa – nesse sentido, a DH fala de “liberdade psicológica” (cf. DH 2). É um direito anterior a qualquer opção religiosa, e que não se refere ao “conteúdo” religioso, esteja certo (Fé católica), ou errado (crenças das outras religiões); seu fundamento não é a consciência, mas a natureza humana, na qual se inscreve o dever de buscar a Deus, e seu objeto não é a crença religiosa, mas a imunidade de coação estatal (nos dois sentidos indicados). Com isso, já podemos antecipar que não se trata do que foi condenado como “liberdade de consciência”, nem, como nos diz o Catecismo da Igreja Católica (cf. n. 2108), de um suposto “direito ao erro” (cf. Pio XII, Discurso de 06/12/53), ou a permissão moral para aderir ao erro, adesão que é um defeito da liberdade (cf. Leão XIII, Libertas Praestantissimum, n. 5; Immortale Dei, n. 38). Por não se referir à concreta crença religiosa, é que não é um direito exclusivo dos católicos, não correspondendo exatamente à liberdade de consciência dos mesmos, mas é um direito que permanece mesmo nos que não satisfazem o dever de buscar e abraçar a religião verdadeira (cf. DH 2), e que se estende também aos grupos religiosos não católicos, em face da natureza social do ser humano (cf. DH 3, 4), desde que se guarde os já mencionados justos limites. Comparemos, agora, a liberdade religiosa postulada como direito natural pela DH, com as falsas liberdades e direitos condenados pelo Magistério pré-conciliar.

2. A “liberdade religiosa” e o Magistério pré-conciliar

A DH, por um lado, reafirmou o dever de abraçar a Fé verdadeira, católica, e por outro, afirmou a liberdade religiosa como um direito à imunidade de coação, e não como um direito que diz respeito ao conteúdo da crença religiosa. Uma e outra afirmação excluem radicalmente da liberdade religiosa o fundamento do “indiferentismo”, que diz que “qualquer religião pode salvar”, ou que “é indiferente ter ou não religião”, e que foi condenado por Gregório XVI na Mirari vos (n. 9), por Pio IX na Quanta cura (n. 3), e por Leão XIII na Immortale Dei (11, 37, 42). Pela mesma razão, a liberdade religiosa também não diz respeito à falsa “liberdade de consciência”, segundo a qual “cada um forja, subjetivamente, a verdade”, tese que corresponde ao indiferentismo e necessariamente vem acompanhada de uma falsa “liberdade de opinião”, segundo a qual “cada um pode exprimir o que quiser”; tudo isso também condenado na Mirari vos (n. 10), na Immortale Dei (32, 38, 42), e outra vez por Leão XIII, na Libertas Praestantissimum (18-21).

Na mesma linha de raciocínio, se pode dizer que a liberdade religiosa também não corresponde à “liberdade de cultos”, nos termos em que foi conceituada e condenada pelo Magistério anterior. O Beato Pio IX na Quanta cura, referiu-se a essa equivocada liberdade de cultos pela primeira vez, apresentando-a em conexão explícita com a falsa liberdade de consciência condenada por Gregório XVI:

não duvidam em consagrar aquela opinião errônea, perniciosa ao extremo para a Igreja católica e para a saúde das almas, chamada por Gregório XVI, Nosso Predecessor de feliz memória, loucura, isto é, que “a liberdade de consciências e de cultos é um direito próprio de cada homem, que todo Estado bem constituído deve proclamar e garantir como lei fundamental, e que os cidadãos têm direito à plena liberdade de manifestar suas idéias com a máxima publicidade – seja de palavra, seja por escrito, seja de qualquer outro modo –, sem que autoridade civil nem eclesiástica alguma possam reprimi-la de alguma forma” (n.3).

O trecho entre aspas não corresponde ao texto de Gregório XVI, que não menciona expressamente o termo “liberdade de cultos”, mas refere-se à “opinião errônea” mencionada, correlata à “loucura [da falsa] liberdade de consciência”, que é exatamente o afirmado por Gregório XVI. Essa liberdade de cultos condenada se trata, então, de uma “liberdade” que negaria a existência de um culto objetivamente verdadeiro, independente da opinião de cada um; e uma “liberdade” que não poderia conhecer limites – seria um direito do tipo “cada um é livre para cultuar a Deus do jeito que quiser”, e não “cada um é livre da coação do Estado em matéria religiosa, nos justos limites”. Nem a afirmação da inexistência do culto verdadeiro, nem uma liberdade de caráter absoluto, correspondem ao direito proclamado pela DH. Quanto ao “não poder ser reprimido pela autoridade eclesiástica” que integra a falsa liberdade de cultos, isso é solicitado pelos liberais para os fiéis católicos, evidentemente, sobre os quais a Igreja tem autoridade direta. O católico, ao aderir à Fé, adere, conseqüentemente, à necessidade de submissão à autoridade eclesiástica, que em certos casos inclui o dever de submeter-se a medidas repressivas, e isso não é negado pela DH, que só afirma o não poder ser impedido por uma autoridade humana.

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Apologética

Tradição e caridade abalam o ateísmo

Vida dos redentoristas tradicionalistas da Escócia emociona ateu.