Estudo do confrade Joathas Bello publicado originalmente no site Reino da Virgem Mãe de Deus em março de 2008 (foram feitas pequenas modificações, em geral na ortografia e na numeração dos documentos):
A liberdade religiosa a partir da Dignitatis Humanae e o Magistério pré-conciliar
Um dos textos do Concílio Vaticano II sobre o qual se criou mais polêmica é, sem dúvida, a Declaração Dignitatis Humanae sobre a “Liberdade religiosa” (DH). Na mente de certos setores tradicionalistas, a Declaração contradiz textos do Magistério pré-conciliar, que condenam veementemente a liberdade de consciência e a liberdade de cultos. O objetivo de nosso artigo é avaliar se a DH estaria efetivamente contradizendo o Magistério anterior, ou se ambos magistérios são, no fundo complementares, iluminando-se mutuamente.
1. O que é a “liberdade religiosa”
Em primeiro lugar, deve-se dizer que são duas coisas distintas a liberdade da Igreja, que a ela foi concedida por Deus de modo sobrenatural – que é um direito “da” Verdade –, como a DH reafirmou (cf. n. 13), em conformidade com a Tradição, e o direito à “liberdade religiosa”. Esta também não corresponde exatamente à liberdade de consciência dos fiéis católicos – que é o direito “à” Verdade religiosa –, mas é, segundo a DH, um “direito natural” da pessoa humana enquanto tal à imunidade de coação por parte do poder político, em matéria religiosa, nos devidos limites (cf. DH 2). De acordo com esse direito, o poder político, em matéria religiosa: a) a ninguém pode obrigar a viver contra a própria consciência; b) nem impedir que alguém viva em conformidade com a mesma, guardando-se a justa ordem pública. Essa segunda parte do direito compreende: b.1) que os católicos não podem ser impedidos pelo Estado de forma alguma, uma vez que injusto seria obstaculizar a Fé verdadeira, o que concorda com a liberdade de consciência dos mesmos; b.2) que os não-católicos não podem ser impedidos pelo Estado, mesmo católico, dentro de justos limites, a partir dos quais caberia uma intervenção da autoridade pública para proteger o bem comum dos abusos à liberdade religiosa.
Com a primeira parte, todos concordam, reconhecendo que sempre foi ensinada explicitamente (cf. Leão XIII, Immortale Dei, n. 47; Pio XII, Mystici Corporis, n. 101). Ninguém nega a primeira metade da segunda parte, obviamente. A segunda metade, de acordo com os tradicionalistas, entra em contradição com o Magistério anterior, para o qual o Estado teria sim um direito, em tese irrestrito, a impedir os cultos das religiões falsas, uma vez que, segundo a doutrina tradicional, o erro não tem direito à existência, nem à ação ou propaganda, e apenas se poderia tolerar as religiões falsas (cf. Pio XII, Discurso ao V Congresso Nacional da União de Juristas Católicos Italianos, de 06/12/53, n. 6; Leão XIII, Libertas Praestantissimum, n. 23). Antes de analisarmos a interpretação tradicionalista, de que o Estado tem, a priori, um direito irrestrito a impedir as religiões falsas, vejamos o conteúdo do direito proclamado pela DH, para ver se se trata de um “direito ao erro”.
Este direito à liberdade religiosa se funda, segundo a DH, “na própria dignidade da pessoa humana”, ou “na sua própria natureza” e não “na disposição subjetiva da pessoa” (DH 2), não se tratando, portanto, de um direito fundado na consciência psicológica, no resultado das opiniões subjetivas, nem mesmo nas opções concretas da consciência moral – há quem argumente a favor da liberdade religiosa, baseando-se na doutrina da consciência invencivelmente errônea (cf. S.Th. I-II, q9 a5), mas essa tese não responde à fundamentação da DH, que apresenta o direito fundado na natureza e não na consciência humana; mesmo porque a razão errônea exclui a culpa, mas não o erro, o que daria razão aos tradicionalistas, e faria a DH contradizer o Magistério anterior e a reta razão, que afirmam a inexistência do direito ao erro. Não é um direito à liberdade “de” consciência, como se essa fosse auto-referente e criasse a Verdade religiosa, mas um direito à liberdade “para” a consciência cumprir a obrigação moral de buscar e abraçar a Verdade religiosa objetiva (cf. DH 1 e 2), sem coação externa – nesse sentido, a DH fala de “liberdade psicológica” (cf. DH 2). É um direito anterior a qualquer opção religiosa, e que não se refere ao “conteúdo” religioso, esteja certo (Fé católica), ou errado (crenças das outras religiões); seu fundamento não é a consciência, mas a natureza humana, na qual se inscreve o dever de buscar a Deus, e seu objeto não é a crença religiosa, mas a imunidade de coação estatal (nos dois sentidos indicados). Com isso, já podemos antecipar que não se trata do que foi condenado como “liberdade de consciência”, nem, como nos diz o Catecismo da Igreja Católica (cf. n. 2108), de um suposto “direito ao erro” (cf. Pio XII, Discurso de 06/12/53), ou a permissão moral para aderir ao erro, adesão que é um defeito da liberdade (cf. Leão XIII, Libertas Praestantissimum, n. 5; Immortale Dei, n. 38). Por não se referir à concreta crença religiosa, é que não é um direito exclusivo dos católicos, não correspondendo exatamente à liberdade de consciência dos mesmos, mas é um direito que permanece mesmo nos que não satisfazem o dever de buscar e abraçar a religião verdadeira (cf. DH 2), e que se estende também aos grupos religiosos não católicos, em face da natureza social do ser humano (cf. DH 3, 4), desde que se guarde os já mencionados justos limites. Comparemos, agora, a liberdade religiosa postulada como direito natural pela DH, com as falsas liberdades e direitos condenados pelo Magistério pré-conciliar.
2. A “liberdade religiosa” e o Magistério pré-conciliar
A DH, por um lado, reafirmou o dever de abraçar a Fé verdadeira, católica, e por outro, afirmou a liberdade religiosa como um direito à imunidade de coação, e não como um direito que diz respeito ao conteúdo da crença religiosa. Uma e outra afirmação excluem radicalmente da liberdade religiosa o fundamento do “indiferentismo”, que diz que “qualquer religião pode salvar”, ou que “é indiferente ter ou não religião”, e que foi condenado por Gregório XVI na Mirari vos (n. 9), por Pio IX na Quanta cura (n. 3), e por Leão XIII na Immortale Dei (11, 37, 42). Pela mesma razão, a liberdade religiosa também não diz respeito à falsa “liberdade de consciência”, segundo a qual “cada um forja, subjetivamente, a verdade”, tese que corresponde ao indiferentismo e necessariamente vem acompanhada de uma falsa “liberdade de opinião”, segundo a qual “cada um pode exprimir o que quiser”; tudo isso também condenado na Mirari vos (n. 10), na Immortale Dei (32, 38, 42), e outra vez por Leão XIII, na Libertas Praestantissimum (18-21).
Na mesma linha de raciocínio, se pode dizer que a liberdade religiosa também não corresponde à “liberdade de cultos”, nos termos em que foi conceituada e condenada pelo Magistério anterior. O Beato Pio IX na Quanta cura, referiu-se a essa equivocada liberdade de cultos pela primeira vez, apresentando-a em conexão explícita com a falsa liberdade de consciência condenada por Gregório XVI:
não duvidam em consagrar aquela opinião errônea, perniciosa ao extremo para a Igreja católica e para a saúde das almas, chamada por Gregório XVI, Nosso Predecessor de feliz memória, loucura, isto é, que “a liberdade de consciências e de cultos é um direito próprio de cada homem, que todo Estado bem constituído deve proclamar e garantir como lei fundamental, e que os cidadãos têm direito à plena liberdade de manifestar suas idéias com a máxima publicidade – seja de palavra, seja por escrito, seja de qualquer outro modo –, sem que autoridade civil nem eclesiástica alguma possam reprimi-la de alguma forma” (n.3).
O trecho entre aspas não corresponde ao texto de Gregório XVI, que não menciona expressamente o termo “liberdade de cultos”, mas refere-se à “opinião errônea” mencionada, correlata à “loucura [da falsa] liberdade de consciência”, que é exatamente o afirmado por Gregório XVI. Essa liberdade de cultos condenada se trata, então, de uma “liberdade” que negaria a existência de um culto objetivamente verdadeiro, independente da opinião de cada um; e uma “liberdade” que não poderia conhecer limites – seria um direito do tipo “cada um é livre para cultuar a Deus do jeito que quiser”, e não “cada um é livre da coação do Estado em matéria religiosa, nos justos limites”. Nem a afirmação da inexistência do culto verdadeiro, nem uma liberdade de caráter absoluto, correspondem ao direito proclamado pela DH. Quanto ao “não poder ser reprimido pela autoridade eclesiástica” que integra a falsa liberdade de cultos, isso é solicitado pelos liberais para os fiéis católicos, evidentemente, sobre os quais a Igreja tem autoridade direta. O católico, ao aderir à Fé, adere, conseqüentemente, à necessidade de submissão à autoridade eclesiástica, que em certos casos inclui o dever de submeter-se a medidas repressivas, e isso não é negado pela DH, que só afirma o não poder ser impedido por uma autoridade humana.