Tradução e adaptação de um artigo do Dr. Peter Kwasniewski:

A última semana e meia foi marcada pela agitação que a morte, sem dúvida revoltante, de George Floyd provocou. Essa agitação, compreensível em si mesma, infelizmente levou a muitos atos criminosos ou simplesmente ridículos, quase sempre guiados por aproveitadores ou marxistas culturais que se profissionalizaram na “arte” da depredação. Tudo ainda se tornou mais estranho quando a agitação extrapolou as fronteiras estadunidenses, levando, por exemplo, um bando de ingleses criados tomando todinho a vandalizarem uma estátua de Churchill (a geração todinho jamais terá o senso de sacrifício dele ao enfrentar os nazistas – e com isso não quero fazer de Churchill um santo!), ou a extrema-imprensa e a classe média a esquecerem o “fique em casa”. Em toda essa agitação, que é uma agitação nas almas, a Igreja parece não ter dado nenhuma luz; por que?
Tentando responder a isso, li a seguinte observação: “como os Estados Unidos nunca foram um país católico, historicamente lhe faltou os meios que as nações católicas tiveram para unir as diferentes raças”, e ela me fez pensar sobre os recursos litúrgicos para a unidade que a Igreja possuiu historicamente e que a hierarquia pós-conciliar disperdiçou graças a um movimento equivocado de modernização pelo menor denominador comum e pela inculturação caricata.
A antiga liturgia latina unia nações, clãs, tribos, raças. Todos tinham (mais ou menos) o mesmo tipo de liturgia. Com um estilo ímpar e dita em um idioma que não é mais o vernáculo de ninguém, ela era celebrada “sempre assim”, isto é, numa maneira distintamente própria, nascida ao longo de muitos séculos e no bojo de influências variadas. Em um artigo para o Southern Nebraska Register, o Pe. Justin Wylie escreveu:
Somente uma língua pertencente a ninguém em particular pertence a todos universalmente. Verdadeiramente, o latim tornou nossa fé católica (ou seja, universal) no tempo e no espaço. A maldição de segmentação linguística de Babel foi remediada pelo milagre de Pentecostes de uma Igreja que evangeliza todas as nações em uma única língua, com paridade de entendimento. Os pagãos da Grécia antiga e Roma, as tribos bárbaras da Europa e os povos díspares do Novo Mundo foram evangelizados pelo denominador comum de nossa liturgia latina.
Mesmo nos dias atuais, vemos pessoas de grupos bem variados indo em conjunto as missas no rito romano tradicional e se engajando, a depender de suas habilidades e necessidades, das atividades da congregação: patrões e empregados, ricos e pobres, trabalhadores de escritório e trabalhadores braçais, intelectuais e analfabetos, devotos de Missa diária e católicos domingueiros. Mesmo quando encontramos uma igreja ligada a alguma herança étnica, há um sentimento profundo de pertença a uma única Igreja Católica, que equaliza e nivela tudo.

Em Phoenix from the Ashes, o historiador Henry Sire faz alguns comentários mordazes sobre os resultados sociológicos da reforma dos anos sessenta:
Ao cortar a vida da Igreja de uma tradição atemporal, os modernistas a imergiram no ambiente social contemporâneo. O ponto fraco é especialmente visível na Alemanha, onde o radicalismo dos reformadores produziu uma Missa paroquial de estilo comicamente burguês; mas esse é o tom da liturgia moderna em todos os países ocidentais. Numa missa comum de hoje, o sentido que se tem não é a oferta de um sacrifício eterno, mas uma palestra conduzida pelo padre e duas ou três mulheres com formação em secretariado ou biblioteconomia, às quais as leituras e outros deveres eclesiásticos são atribuídos. A verbosidade é, em si mesma, uma característica da classe média com a qual muitos paroquianos comuns sentem pouca harmonia; e a alienação de fiéis da classe trabalhadora, de uma maneira que nunca aconteceu com a antiga Missa em paróquias pobres, tornou-se uma característica peculiar da reforma litúrgica.
Essa crítica foi confirmada empiricamente pelo estudo The Two Catholic Churches, de Anthony Archer (1984), resumido por Joseph Shaw em dois artigos: A sociologist in the Latin Mass e The Old Mass and the Works [1]. Em resumo: a reforma litúrgica homogeneizou e estreitou o alcance da liturgia católica, cortando em particular todas as pessoas (e elas são, e sempre serão, muito numerosas) para quem a compreensão verbal e racional imediata do discurso vernacular com respostas obrigatórias não é um modo atraente de engajamento, ou pior, é um impedimento ao engajamento em oração.
A imposição do vernáculo e a falta de disciplina acabou nos separando em pequenos enclaves. Temos a Missa da classe média urbana, a Missa afro, a Missa gaúcha, a Missa do vaqueiro, etc, etc. Como a Igreja pode unir “diferentes raças” se ela sequer nos consegue unir num culto que reconheçamos como distintamente católico?
O Pe. Wylie, já mencionado, que cresceu na África do Sul, nota com pesar:
O apartheid fez menos para dividir os católicos das várias raças na África do Sul que a introdução do vernáculo na liturgia, pois se antes eles adoravam facilmente juntos em latim, passaram a ficar profundamente divididos nas celebrações diocesanas.

Minha experiência com comunidades onde a liturgia ocorre segundo o rito gregoriano em todo o mundo tem sido dramaticamente diferente. Em quase todos os lugares que vou, mas especialmente nas paróquias urbanas, vejo diferentes raças e etnias lado a lado nos bancos: asiáticos, afro-americanos, africanos, brancos de todas as origens europeias [2]. A comunhão na adoração e sua profunda reverência nos unem a todos. A liturgia latina tradicional cantada pelo ministro e coro é uma e comum a todos, unindo-nos de maneira fixa, estável e confiável com uma “cadeia de ouro”. É o centro de gravidade que atrai todos em direção a Cristo – e, portanto, um ao outro. A oração acontece dentro e entre o antigo latim cantado em voz alta, o vernáculo moderno silenciosamente disponível e a oração do coração do adorador, que transcende todas as diferenças linguísticas [3].
Na sua obra monumental Democracia na América, publicada entre 1835 e 1840, Alexis de Tocqueville descreveu uma Igreja Católica que parece não mais existir:
Em pontos doutrinários, a fé católica coloca todas as capacidades humanas no mesmo nível; sujeita o sábio e o ignorante, o homem de gênio e a multidão vulgar, aos detalhes do mesmo credo; impõe as mesmas observâncias aos ricos e aos necessitados, inflige as mesmas austeridades aos fortes e aos fracos; não faz concessões ao homem mortal, mas, reduzindo toda a raça humana ao mesmo padrão, confunde todas as distinções da sociedade aos pés do mesmo altar, assim como são confundidas aos olhos de Deus. Se o catolicismo predispõe os fiéis à obediência, certamente não os prepara para a desigualdade; mas o contrário pode ser dito do protestantismo, que geralmente tende a tornar os homens independentes mais do que torná-los iguais. O catolicismo é como uma monarquia absoluta; se o soberano for removido, todas as outras classes da sociedade são mais iguais do que nas repúblicas.
Depois do Concílio as autoridades eclesiásticas abandonaram tolamente esse poder notável de um único credo, reconhecido e ensinado como tal; uma única observância com ascetismo real; e, acima de tudo, o corpo comum da liturgia latina para reunir pessoas de diferentes raças, etnias, línguas, classes, origens e vocações. Podemos dizer realmente que a prática da liturgia tradicional tem sido e é capaz de se tornar mais uma vez a “arma secreta” da Igreja Católica para a unidade entre os fiéis de um rito latino espalhado por todo o orbe da Terra. A Coleta da Quinta-Feira de Páscoa capta lindamente essa aspiração, refletida nos aspectos externos do rito romano tradicional:
Ó Deus, que reunistes a diversidade dos povos na confissão do vosso nome, fazei que, renascidos nas águas do batismo, uma só piedade os alimente e uma só fé os conduza.
O mundo precisa de sinais e fontes de unidade genuínos mais do que nunca, não de farsas como os brancos que afirmam “renunciar à sua brancura” (ou, nesse caso, os católicos que renunciam à sua grande tradição). Precisamos encontrar nossa unidade e cura não em campanhas de justiça social ou reformas policiais, qualquer que seja o valor que elas possam ter, mas na graça e verdade de um único Salvador da humanidade e Sua única Igreja, vividamente simbolizada no Ocidente pela herança litúrgica latina comum ainda incorporada – e retornando alegremente – no usus antiquior.


Notas:
[1] Do segundo artigo: “A crítica de Archer às mudanças após o Vaticano II baseia-se no fato de que os aspectos da Igreja que mais atraíam a classe trabalhadora foram varridos, e o que foi trazido atraía apenas a classe média educada e descontraída. Saiu a Missa latina na qual todos podiam se envolver em seu próprio nível; veio uma Missa em vernáculo na qual o compromisso dos fieis é estritamente controlado: quando sentar e quando levantar, que respostas dar, quando ser amigável com seu vizinho etc. Jogando fora as devoções populares, surgiram pequenos grupos para missas em casa, reuniões carismáticas ou pastorais paroquiais. Saiu a Igreja como um sinal de contradição, um refúgio excêntrico e exótico da sociedade, onde somente a verdade e a autoridade eram encontradas; veio uma Igreja na qual os bispos conversavam como iguais com os bispos anglicanos, e participavam de cerimônias estatais. Saiu a espiritualidade da perseverança na adversidade; surgiu uma maneira de ‘encontrar Jesus’ para escapar de problemas da classe média, como solidão e depressão – ou apenas hipocondria. A inspiração para as mudanças, afinal, não veio de nenhuma tentativa de descobrir o que a maioria dos católicos queria: veio de teólogos, que queriam o respeito de seus colegas protestantes.”
[2] Obviamente não estou dizendo que onde se celebra o rito paulino não se pode encontrar essa diversidade, nem que as comunidades tradicionalistas não podem ser homogêneas em termos demográficos. Estou apenas externando tendências que encontrei ou que me foram relatadas por outros.
[3] Quando digo “o vernáculo silenciosamente disponível”, refiro-me a traduções contidas em um missal de mão ou em um folheto como auxílio à compreensão, uma escada para subir, “rodinhas” para a bicicleta, como de fato eram para mim por muitos anos. Trads não são esnobes sobre isso; nós somos muito pragmáticos. Tudo o que ajuda, ajuda. As traduções vernaculares oferecem uma mão acolhedora àqueles que não estão familiarizados com os textos litúrgicos e os ajudam a refletir sobre seu significado. Ao mesmo tempo, essas traduções nunca precisam ser “traduções oficiais”, cuja dicção e estilo são incessantemente discutidos em comitês, com resultados com os quais ninguém está realmente satisfeito; eles não precisam suportar tanto peso. O texto em latim tem todo o peso ritual e teológico, enquanto o vernáculo é livre para ser lido – ou ignorado. Deste ponto de vista, um comunidade onde se celebra no rito romano tradicional oferece possibilidades muito mais realistas para congregações multilíngues, uma vez que seu missal-lecionário mais compacto já foi convenientemente traduzido para muitos dos principais idiomas. Em uma congregação urbana de uma cidade cosmopolita, não é incomum encontrar missais de mão em meia dúzia de línguas diferentes sendo usadas na mesma liturgia: verdadeiramente a mesma liturgia.
Fotos de Allison Girone.