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O que importa é o sacramento?

A ideia continuísta de que “tanto faz o rito ou a celebração, o que importa é o sacramento, a presença de Cristo e seu Sacrifício” foi inspirada por um mau espírito.

Porque a Missa é o Sacrifício da Igreja unido ao de Cristo, não é o Sacrifício de Cristo em abstrato.

É óbvio que o Sacrifício do Filho já agradou ao Pai de uma vez por todas.

Mas em ordem à aplicação dos frutos da Redenção representada, o que deve agradar a Deus é a adoração, o louvor, a ação de graças e a oferta da Igreja unida mística ou sacramentalmente, moral e espiritualmente à Oferta de Cristo.

O que “conta” para a salvação (a aplicação dos seus frutos, isto é, a recepção da Graça e a íntima união com Deus) é a nossa atitude religiosa na celebração ritual, em comunhão com a devoção de Cristo ao Pai no Espírito.

Não o “rubricismo” ou o “esteticismo” exteriores, pois a correção e sobriedade dos gestos, a solenidade ou o decoro estão a serviço desta atitude devota.

Os abusos litúrgicos, a depender da índole e do grau, tornam o sacrifício ritual indigno do Sacramento, ou até mesmo sacrílego.

É como se rodeássemos o altar como os judeus que caçoavam ou, no menos pior dos casos, como os romanos que ignoravam.

O sacrifício ritual pode desagradar a Deus. Ele conhece o coração de cada qual, mas como rito comunitário e público abusivo, pode tornar-se algo detestável ao Senhor e a seus santos, pelo que representa de desprezo ao Preciosíssimo Sangue.

Uma tal celebração corresponde mais ou menos àquilo que os protestantes acham que é a missa Católica: uma recrucificação do Salvador. Seria melhor não acreditar…

Não causamos dano físico a Cristo, certamente, mas O ofendemos gravemente, e aos mártires, pois O crucificamos em nossos corações: deixamos de crucificar nossas paixões para nos apresentarmos com uma consciência pura diante do Altar, deixamos de morrer com Cristo, e O matamos em nossa alma, e desprezamos Seu Santíssimo Nome diante do mundo.

Quando Deus diz no Antigo Testamento que “não lhe importavam os sacrifícios e o sangue dos novilhos” (cf. Is I, 11), ou “quero misericórdia e não sacrifícios” (cf. Os VI, 6), estava se referindo a ritos oficiais. Cristo não estava ali sacramentalmente, mas estava figurativa e espiritualmente, e era desprezado, não amado: celebrar sem espírito é repetir a oferta de Caim.

Podemos estar em volta do altar do Verbo Crucificado dirigindo-lhe os impropérios de nossas celebrações indignas, separadas da obra de misericórdia e justiça que se atualiza diante de nós.

Aquelas palavras “eles voltaram as costas para mim, e não o rosto” (cf. Jr XXXII, 33), e “aborreço e desprezo as vossas festas e não tenho prazer em vossas assembleias solenes… afastai de mim o som de vossas canções ” (cf. Am V, 21ss) foram escritas para a Igreja atual.

– Joathas Bello

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Traditiones Custodes: a derrota de Francisco

Obediência tem limites

Este texto é, em parte, uma tradução e adaptação de um post de Peter Kwasniweski.

No domingo passado, junto as alegrias da festa de Nossa Senhora do Carmos, tivemos o segundo aniversário da infame Traditiones Custodes (TC), o documento berglogliano que tencionava restringir (e extinguir) a Missa romana tradicional, mas que acabou revelando e produzindo coisas completamente inesperadas.

Quando essa normativa veio a lume, com muita razão, várias pessoas sentiram como se tivesse sido atingidas por uma bomba atômica, pois aqueles que tinham redescoberto os tesouros da Igreja, agora seriam tratados como filhos bastardos. Muitos caíram no desespero, no erro do sedevacantismo sistemático, e falaram e fizeram coisas de que deveriam se arrepender, mas, com a distância temporal, podemos hoje dizer que as consequências foram bem variadas.

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Ofício Parvo usado na OTC

Basílica de Nossa Senhora do Carmo, Festa da Padroeira do Recife, julho de 1949. Coleção Antônio Oliveira.

Vou compartilhar com os leitores e confrades a obra Decor Carmeli (1905), um manual da Ordem Terceira do Carmo de São Paulo digitalizado pelo Obras Católicas, que partir da página 287 apresenta uma outra tradução do Ofício Parvo (infelizmente não é o Ofício Carmelitano):

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Mysterium Fidei e a consagração do vinho

Tradução e adaptação de um texto de Peter Kwasniewski:

Sem dúvida alguma o rito paulino se afastou de modo escandaloso de nossas tradições litúrgicas, e deve ser posto de lado num processo em que o verdadeiro rito romano volte a ocupar o lugar que lhe é de direito.

No entanto, os críticos do Novus Ordo às vezes fazem objeções equivocadas, insuficientemente fundamentadas em uma compreensão correta dos princípios da teologia. Por exemplo, no livre mercado da literatura tradicionalista às vezes se encontram pessoas alegando que a remoção das palavras “mysterium fidei” da fórmula da consagração do vinho invalida a forma. Embora a remoção dessa frase seja certamente censurável, ela não invalida de forma alguma o sacramento.

A razão é especificada por São Tomás de Aquino na Suma Teológica III, questão 60, artigo 8:

A outra causa a considerar é relativa à significação das palavras. Pois como as palavras operam, nos sacramentos, pelo sentido que fazem, conforme dissemos devemos considerar se a referida alteração tira às pala­vras o sentido próprio, porque então é manifesto que elimina a realidade sacramental.

Ora, é manifesto que, feita uma diminuição na substância da forma sacramental, desaparece o sentido próprio das palavras e portanto não se perfaz o sacramento. Por isso Dídimo diz: Quem pretender batizar, mas omitindo uma das refe­ridas palavras, isto é, do Padre, do Filho e do Es­pírito Santo, não batiza completamente. Mas se a subtração for do que não é da substância da forma, essa diminuição não tira o sentido pró­prio das palavras e por conseqüência não priva o sacramento da sua perfeição. Assim, na forma da Eucaristia, que é — Este pois é o meu corpo — o vocábulo “pois”, eliminado, não exclui o sen­tido próprio das palavras e portanto não priva o sacramento da sua perfeição. Embora possa dar-se que quem o omitiu peque por negligên­cia ou desprezo.

No caso do cálice, as palavras necessárias para realizar a transubstanciação são: “Este é o cálice do meu Sangue”. Se estas palavras forem ditas por um sacerdote validamente ordenado com a intenção de fazer o que a Igreja faz, então a consagração acontecerá, pois não há nada de ambíguo na fórmula – não há dúvida sobre o que está sendo dito, ou seja, que o cálice está cheio do Sangue de Nosso Senhor. Mas se um ministro deixasse por isso mesmo e não continuasse com o resto das palavras de acordo com o rito estabelecido pela Igreja, ele pecaria contra a virtude da religião ao deixar de oferecer o devido culto. Tal declaração incompleta, por ser contrária ao rito dado, seria ilícita; mas não levaria à invalidade, pelas razões apresentadas pelo Doutor Angélico.

O fato de muitos autores se referirem a toda a fórmula tradicional como a forma do sacramento não pode ser tomado como prova contra o argumento anterior, uma vez que próprio Santo Tomás faz uma distinção entre a forma correta e uma forma incorreta, mas não inválida. Se não adotarmos essa visão (francamente de bom senso), rapidamente teremos problemas ao tentar explicar como os ritos orientais realizam a transubstanciação, uma vez que nenhum desses ritos tem “mysterium fidei” na fórmula do cálice (a propósito, esta é também a razão pela qual é duvidoso que essa frase tenha se originado com o Senhor, embora seja possível que tenha se originado com um dos Apóstolos, por exemplo, São Pedro em Roma, o que explicaria por que é encontrado apenas no rito romano e os usos que dele derivam ou pertencem à sua esfera de influência).

Em nível eclesiológico e canônico, devemos dizer também que a autoridade suprema na Igreja tem o direito de especificar/esclarecer o que é e o que não é a forma, ou, pelo menos, o que é adequado para a realização de um determinado sacramento. O direito canônico sempre concedeu esse ponto, e não há um único teólogo que o conteste. Embora possamos e devamos lamentar o dano causado à Ordem da Missa por Paulo VI, não podemos acusá-lo de promulgar um sacramento inválido.

Em conclusão, concordo que há uma mutilação no reaproveitamento da frase “mysterium fidei”, como argumentei longamente noutro lugar. Aqui, estou simplesmente dizendo que isso não prejudica a eficácia da declaração encontrada no novo Missal, porque essa declaração contém a essência da forma – ou seja, que este [1] é o sangue de Cristo. Isso, por si só, é suficiente, todas as outras condições usuais sendo atendidas (matéria correta, ministro e intenção). Como ensina Pio XII em sua encíclica Mediator Dei, o sacrifício consiste na consagração separada do pão e do vinho; e, novamente, São Tomás deixa claro que, por mais ilícito que seja omitir parte da forma, enquanto for significada a noção de uma conversão de pão/vinho em corpo/sangue, as palavras serão eficazes.

[1] São Tomás levanta uma objeção particular às palavras de Nosso Senhor na Última Ceia (Comentário sobre Mateus, capítulo 26, versículo 26). Ele está tentando identificar o sentido exato do pronome “este” nas frases “este é o meu Corpo” e “este é o meu Sangue”. Ele aponta as várias maneiras pelas quais se pode interpretar o significado de “este” e descarta positivamente que o “este” signifique “este pão” ou “este vinho”, porque, se é isso que é significado, resultaria em uma contradição: “Este [pão] é meu Corpo” ou “Este [vinho] é meu Sangue”. Assim, após alguma análise gramatical, São Tomás conclui que o pronome “este” significa “tudo o que está sob esses acidentes”. A afirmação “Este é o meu corpo” não é, portanto, falsa, pois seu significado é: “aquilo que está sob esses acidentes é o meu Corpo”.

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A proibição da Missa no rito romano tradicional é um abuso de poder

A declaração seguinte, de D. Athanasius Schneider, foi publicada em inúmeros lugares e traduzo para os leitores a versão que encontrei no blog Rorate Caeli.

A proibição da missa tradicional em latim é um abuso do poder eclesiástico e o descumprimento de sua proibição não constitui desobediência.

1. A tradicional liturgia romana da Missa era a liturgia de nossos ancestrais católicos. Foi a forma da Missa com a qual a maioria das nações europeias (exceto alguns países da Europa Oriental e as áreas sob os ritos ambrosiano e moçárabe), todas as nações americanas e a maioria das nações africanas, asiáticas e da Oceania foram evangelizadas.

2. “O que as gerações anteriores consideraram sagrado, permanece sagrado e grande também para nós” (Papa Bento XVI).

3. “O problema com o novo Missal reside no abandono de uma história sempre contínua, antes e depois de São Pio V, e na criação de um livro completamente novo (embora compilado de material antigo)” (Cardeal Joseph Ratzinger).

4. A “publicação do novo Missal foi acompanhada por uma espécie de proibição de tudo o que veio antes dele, o que é inédito na história do direito eclesiástico e da liturgia” (Cardeal Joseph Ratzinger).

5. “Posso dizer com certeza, com base no meu conhecimento dos debates conciliares e na minha leitura repetida dos discursos feitos pelos Padres Conciliares, que isso [isto é, a reforma como está agora no novo Missal] não corresponde as intenções do Concílio Vaticano II” (Cardeal Joseph Ratzinger).

6. A tradicional liturgia romana da Missa foi a liturgia de todos os santos de rito latino que conhecemos pelo menos durante todo o último milênio; portanto, sua idade é milenar. Embora comumente chamada de “Missa Tridentina”, a mesma forma exata da Missa já estava em uso vários séculos antes do Concílio de Trento, e esse Concílio pediu apenas para canonizar aquela forma venerável e doutrinariamente segura da liturgia da Igreja Romana.

7. A tradicional liturgia romana da Missa tem a mais estreita afinidade com os ritos orientais no testemunho da lei litúrgica universal e ininterrupta da Igreja: “No Missal Romano de São Pio V, como em várias liturgias orientais, há belas orações através das quais o sacerdote expressa o mais profundo sentido de humildade e reverência diante dos Sagrados Mistérios: elas revelam a própria substância da Liturgia” (Papa João Paulo II).

8. O Papa e os bispos não têm, portanto, autoridade para proibir ou limitar uma forma tão venerável da Santa Missa, que foi oferecida pelos santos por mais de mil anos, da mesma forma que o Papa ou os bispos não teriam autoridade para proibir ou reformar significativamente a forma venerável do Credo Apostólico ou do Niceno-Constantinopolitano, precisamente por causa de seu uso venerável, contínuo e milenar.

9. Cumprir a proibição abusiva daquela venerável forma da Missa dos Santos, ditada infelizmente pelos eclesiásticos atuais num tempo de crise eclesial sem precedentes, constituiria uma falsa obediência.

10. O descumprimento das proibições da Missa tradicional não torna ninguém, por isso, cismático, desde que se continue a reconhecer o Papa e os bispos e continue a respeitá-los e a rezar por eles.

11. Ao desobedecer formalmente a tão inaudita proibição de um patrimônio inalienável da Igreja Romana, obedece-se de fato à Igreja Católica de todos os tempos e a todos os papas que diligentemente celebraram e ordenaram a preservação daquela venerável e canonizada forma da Missa.

12. A atual proibição do rito tradicional da Missa é um fenômeno temporário e cessará. A Igreja Romana vive hoje uma espécie de exílio litúrgico, ou seja, a tradicional Missa latina foi exilada de Roma; mas o exílio, com certeza, um dia chegará ao fim.

13. Visto que a Missa latina tradicional está em uso ininterrupto há mais de um milênio, santificada pela recepção universal ao longo do tempo, pelos Santos e pelos Romanos Pontífices, ela pertence ao patrimônio inalienável da Igreja Romana. Consequentemente, no futuro, sem dúvida, os Romanos Pontífices reconhecerão e restabelecerão o uso daquela liturgia tradicional da Missa.

14. Os futuros Papas agradecerão a todos os sacerdotes e fiéis que, em tempos difíceis, apesar de todas as pressões e falsas acusações de desobediência, e com espírito de amor sincero pela Igreja e pela honra da Santa Sé, mantiveram e transmitiram a grande liturgia tesouro da Missa tradicional para as gerações futuras.

+ Athanasius Schneider
Festa de São Pedro & São Paulo, 29 de junho de 2023

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Crise Eclesiologia Liturgia

Como obedecer à Igreja

Tradução e adaptação de artigo de Joseph Shaw:

Entre as frases familiares do debate sobre a liturgia estão as que envolvem a obediência à Igreja. “A Igreja nos pede…”, “devemos obedecer à Igreja…” e afins, geralmente empregadas pelos partidários da reforma litúrgica. Não está imediatamente claro o que elas significam. O que essas pessoas estão dizendo quando se referem à “Igreja”?

Quando os teólogos querem discernir o “ensinamento da Igreja”, eles podem escolher algum ato “extraordinário” do magistério, como uma definição ex cathedra do Papa, mas muitas vezes não há nenhuma disponível. Sendo assim, eles vão para a Escritura e a Tradição, já que nelas está o Depósito da Fé: elas nos dirão o que a Igreja ensina. Os Padres e os Doutores são testemunhas da Tradição e também extraem suas implicações. Este é o magistério “ordinário” da Igreja e o modo ordinário pelo qual a Igreja transmite o ensinamento que lhe foi confiado por nosso Senhor.

É assim que, normalmente, Deus escolheu se revelar a nós; é assim que, ordinariamente, o Espírito Santo fala à Igreja: através do que foi transmitido. Quando as pessoas são levadas a derrubar a Tradição estabelecida em favor de uma nova leitura radical das Escrituras, talvez inspirada por uma revelação privada, podemos esperar ouvir alguma heresia.

Espero que isso não seja controverso, mas quando se trata da liturgia, uma atitude muito diferente costuma prevalecer. Os progressistas litúrgicos nos dizem que o Espírito os chamou, ou está chamando toda a Igreja, a adotar alguma inovação litúrgica: para dar apenas um exemplo, considere a assistência de mulheres no altar (coroinhas). Isso derruba a tradição de apenas homens e meninos servindo na Missa até onde os registros, que é o final do século 4 (veja o cânon 44 da Coleção de Laodicéia).

A unanimidade da tradição litúrgica aqui é impressionante, mas é posta de lado por duas razões. Uma é que não é uma questão dogmática, mas disciplinar; a outra é que em certo ponto o aparato legal da Igreja nos permitiu não seguir a tradição (pelo menos, na versão “reformada” da liturgia da Igreja Ocidental).

Esses dois argumentos são irrelevantes, entretanto, se aceitarmos que o Espírito Santo nos fala habitualmente através da Tradição da Igreja. Se o Espírito nos fala sobre a doutrina que Deus revelou através da Tradição com “T” maiúsculo, parece muito estranho dizer que devemos ignorar uma tradição litúrgica, quando ela nos fala sobre como Deus deseja que o adoremos. Claro que a liturgia não é doutrina; no entanto, há um paralelo óbvio com o magistério ordinário. Deus revelou um pouco sobre como devemos adorar nas Escrituras, e seria estranho se isso não fosse complementado pelos escritos litúrgicos dos Padres e Doutores e pela prática da Igreja.

O papel das tradições litúrgicas em nos comunicar a vontade de Deus sobre como devemos adorar é sustentado pela ideia de que a liturgia é uma “fonte teológica”, e também diretamente pelo magistério. Lemos na encíclica Mediator Dei (n. 56) de Pio XII, de 1947, que o desenvolvimento da liturgia ao longo dos séculos foi guiado pela Providência:

Como, em verdade, nenhum católico fiel pode rejeitar as fórmulas da doutrina cristã compostas e decretadas com grande vantagem em época mais recente da Igreja, inspirada e dirigida pelo Espírito Santo, para voltar às antigas fórmulas dos primeiros concílios, ou repudiar as leis vigentes para voltar às prescrições das antigas fontes do direito canônico; assim, quando se trata da sagrada liturgia, não estaria animado de zelo reto e inteligente aquele que quisesse voltar aos antigos ritos e usos, recusando as recentes normas introduzidas por disposição da divina Providência e por mudança de circunstâncias.

Essa ideia é repetida pelo Memoriale Domini, a instrução de 1969 que proíbe (com as inevitáveis exceções) a recepção da Sagrada Comunhão na mão. Esses dois documentos defendiam o desenvolvimento da liturgia contra aqueles que queriam fazer uso do que afirmavam ser um costume mais antigo. Quando se trata de uma questão em que não houve desenvolvimento que possamos ver, quando a prática da Igreja foi contínua e imutável desde os primeiros registros que existem até a década de 1990, mas, em oposição a isso, os padres foram autorizados a usar servidores do sexo feminino para “razões locais específicas” (Notitiae 30 (1994) 333-335), o caso é muito mais grave. Deus certamente está nos dizendo, por meio dessa tradição, que o serviço do altar por homens e meninos é algo que Ele deseja. Como essa mensagem poderia ser deixada de lado?

Uma abordagem alternativa seria dizer isso: a liturgia é criatura da Igreja, continuamente sujeita a mudanças por decreto legislativo, mas também é uma fonte teológica, e nos transmite a vontade de Deus, ou seja, o que a liturgia nos diz não é mais nem menos do que o que nossos superiores, aqueles que têm autoridade sobre a liturgia, querem nos dizer, e Deus está falando através deles (deve-se notar que não estamos falando necessariamente do Papa: até Trento os bispos e as ordens religiosas tinham ampla autoridade sobre sua liturgia; as Igrejas Orientais têm um alto grau de autonomia; e assim por diante).

Esta é uma concepção positivista da tradição litúrgica: a tradição litúrgica é apenas o que um legislador com a autoridade legal apropriada nos diz que é. No entanto, uma coisa é aceitar que várias pessoas tiveram ou têm autoridade legal sobre a liturgia; outra é sugerir que isso equivale a um novo órgão do Magistério. O sentido de dizer que a liturgia é uma fonte teológica, um testemunho da Tradição ao lado, embora subordinado, da Escritura e dos Padres, é que ela é o produto de um desenvolvimento orgânico, sob a Providência Divina, e tem em certo sentido a aprovação de séculos de uso na Igreja. Se, em vez disso, for o produto dos caprichos arbitrários de determinados titulares de cargos, então a ideia de que é uma fonte teológica torna-se impossível de manter. Esses titulares de cargos podem ter autoridade magisterial e, se assim for, podem exercê-la da maneira normal; contudo, ao se atribuir um significado especial à liturgia, estamos considerando-a uma fonte diferente de autoridade, não simplesmente outra versão da autoridade mantida por bispos e papas.

Quando falamos do que nos diz a tradição litúrgica como fonte teológica, as liturgias reformadas dos anos 60 têm menos peso do que as tradições litúrgicas milenares, não porque estas tenham sido instituídas por legisladores com maior autoridade, mas porque foram usadas e aprovadas pela Igreja durante vastos períodos de tempo. O que “a Igreja” está nos dizendo para fazer, liturgicamente, não é uma questão de olhar para a legislação mais recente, mas para o que a Providência imprimiu em inúmeras gerações de católicos.

A Igreja nos conta as coisas de várias maneiras, e essas coisas podem até estar em tensão umas com as outras. A tradição litúrgica, no entanto, tem autoridade especial para nos dizer como adorar: essa, certamente, é sua competência central. Se aceitarmos que “a Igreja” tem algo mais do que meros regulamentos humanos para guiar o culto católico, então devemos olhar para a tradição ampla e profunda, mesmo quando isso causa desconforto.

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Imagens podem falar mais que palavras

Uma proposta de Shawn Tribe:

Uma das impropriedades  divulgadas pelos neoconservadores na atualidade é a de que, de algum modo, o Concílio de Trento e o Papa São Pio V, criaram um novo Missal/rito litúrgico.  Isso é frequentemente usado para justificar o que aconteceu após o encerramento do Concílio Vaticano II. A realidade é outra, mas se alguém realmente deseja fazer com que ela atinja seu alvo, um bom exercício seria executar uma “Missa seca” de acordo com uma edição anterior do Missale Romanum (como esta) e gravá-la, e depois mostrá-la lado a lado com a Missa do mesmo dia tirada de uma edição do século XX.

Mostre as orações de cada uma, mostre as cerimônias de cada uma e deixe-as serem observadas lado a lado.

Se você realmente quiser ser ambicioso, adicione uma terceira janela mostrando a Missa para o mesmo dia de acordo com o rito paulino utilizando as opções mais próximas (e mesmo feitas ad orientem para que ninguém tente usar essas coisas como uma desculpa para cancelar o exercício ).

Outra variante desse tipo de projeto seria simplesmente colocar o usus antiquiior por um dia ao lado da liturgia paulina para o mesmo dia com o mesmo propósito – destacando as diferenças.

É um projeto ambicioso, mas é o tipo de coisa que poderia causar mais impressão popular do que uma centena de ensaios sobre o tema (ensaios que também são necessários, mas destinados a outro público).

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Desvio na Tradição?

citação2Os teólogos contemporâneos e muitos católicos fazem uma confusão tremenda entre o grau de pureza das eras antigas da Igreja e o grau de perfeição da Tradição.

A época apostólica e dos mártires tinha instituições mais sumárias porque possuíam, de modo geral, uma santidade mais perfeita, e porque não havia tempo. A Cruz estava marcada em seu coração e o Espírito iluminava e fortalecia frequentemente sua mente e vontade; o rito eucarístico e as fórmulas doutrinais podiam ser bem mais simples.

Os Padres possuíam uma inteligência mais mística dos mistérios, por isso sua teologia poderia apoiar-se em filosofias mais religiosas sem o rigor aristotélico (de índole platônica ou helenística); era uma época em que os sucessores dos Apóstolos (bispos) e dos mártires (eremitas e monges) viviam mais próximos dos paradigmas ideais.

Mas a teologia escolástica, apoiada numa filosofia mais científica (aristotélica), e as ordens mendicantes, adaptadas à vida citadina, representam a condição de uma vida cristã “normalizada” e voltada para as boas inteligência e virtude “médias”; por isso, constituem uma condição de certo modo “definitiva”, útil na paz e nas perseguições (nestas obviamente poderia faltar o Espírito das origens, mas isso nada obsta à excelência dos instrumentos teóricos e práticos legados pela Igreja medieval).

Nem é estranho que nessa condição “normal” tenham brotado as duas expressões máximas da sabedoria e do heroísmo cristãos depois da era apostólica: S. Tomás e S. Francisco, que tiveram ocasião de manifestar extensivamente a inteligência e a encarnação do mistério (de fazer o que Cristo e os Apóstolos fariam se não vivessem sob o peso da urgência e o risco de morte).

Para um santo bastam as palavras da consagração; para o cristão médio, os ritos tradicionais são uma necessidade. Mas o santo ainda assim preferirá a Missa tradicional como o bem comum e a expressão ritual perfeita de sua [da de Cristo a quem ele está conformado] vivência intensa da Cruz.

Para um místico, basta um versículo da Escritura ou a oração de Jesus; para o cristão médio, o entendimento da Vida de Cristo lhe será facultado pela Suma Teológica. Mas o místico não a desprezará, antes encontrará nela, de modo raciocinado, o que ele inteligiu compactamente, e isto será necessário a sua pregação.

A ideia de que se possa despojar a Igreja das riquezas acumuladas, como se fossem “peso morto”, e “voltar às fontes”, não é razoável e, a rigor, é orgulho: é pressupor a própria sabedoria e santidade (que só precisaria contar com meios mais simples), e é ainda pressupor a própria situação (imaginada) como regra para todos.

Só o santo volta à Fonte, mas ele ama o grande rio da Tradição, não pretende assoreá-lo.

Esse despojamento não é verdadeiro enriquecimento, não é obra da santidade. O protestantismo, intento de “cristianismo despojado”, tornou-se um cristianismo adequado ao mundo, mostrou a inviabilidade desse caminho. A nova teologia deveria ter aprendido.

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As tradições apostólicas não escritas (cujo vetor principal são os Ritos Litúrgicos) se desenvolvem de modo análogo às doutrinas.

Insinuar, como fez o cardeal Cantalamessa, que as celebrações descritas por S. Justino ou S. Hipólito são mais “tradicionais” que o estágio “Tridentino” da Missa Romana equivale a dizer que as ideias patrísticas imprecisas sobre conversão eucarística são mais “tradicionais” que a noção de “transubstanciação”.

Se pudesse ocorrer um tal “desvio” na Tradição da Igreja (desde 1570? século XIII? Gregório Magno?), no núcleo mesmo de sua existência, que é a Missa, então a indefectibilidade da Igreja teria ido pro inferno há séculos.

Da mesma forma, se tal rito pudesse deixar de ser “lex orandi” por decreto, então haveria uma ruptura entre essa (pseudo)legislação e a Tradição.

Eu gostaria de saber que irmão católico, com a mão na consciência, com temor e tremor no coração, acredita realmente nisso de que o “diálogo interreligioso”, a “cooperação com a fraternidade universal”, Assis e Pachamama, comunhão de recasados, etc. têm direito à cidadania católica e a Missa Romana dos tempos canonizada em Trento, não?!

Como crer nesse tipo de coisa?! Quem realmente não percebe que é um pensamento néscio e uma adesão imoral?

Não temeis pela salvação de vossas almas, vivendo em tal obscuridade?

Não tendes o direito de seguir crendo assim.

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– Engraçado que a liturgia paulina mal nasceu e já teve um desenvolvimento orgânico muito mais rápido que o núcleo litúrgico apostólico – inculturações com “missas afro” e Cia., músicas dissonantes, palmas, dancinhas, ministros da eucaristia de jaleco branco de dentista, meninas coroinhas….

–  O rito paulino não se desenvolve, ele se corrompe como um cadáver, é um rito natimorto, pela informidade.

 Joathas Bello (postagens e resposta a comentário feito no FB)