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"A Bíblia ensina…" – análise das passagens da Escritura Sagrada associadas à homossexualidade

bib gayFazendo eco à postura que tenho no Orkut, onde nunca temi tocar em temas doutrinários polêmicos, mas sempre refletindo segundo os parâmetros católicos (Revelação + Magistério + vida dos Santos), acho que uma análise dos trechos bíblicos ordinariamente associados a homossexualidade/homossexualismo é uma necessidade.

Por que é uma necessidade?

Por dois motivos:

1) Hoje em dia temos, refletindo o modernismo católico e o liberalismo protestante, uma linha de exegetas que se rendeu “ao século”, que adota uma visão naturalista, cientificista e historicista da Bíblia, sempre buscando fissuras na Sagrada Doutrina para justificar os mais variados desregramentos que são comuns na existência humana e que foram amplificados na nossa triste época afastada de Deus.

2) Como reação aos exageros da exegese modernista-liberal e por influência do evangelicalismo norte-americano, ganhou corpo nos meios tradicionalistas, neo-conservadores ou carismáticos da Igreja uma leitura literalista da Escritura, completamente contrária à postura clássica católica.

Esses dois grupos se batem como cegos (não conseguem enchergar a luz da Verdade) no meio das reivindicações do movimento homossexual. São incapazes de responder satisfatoriamente, ou seja, teologicamente, às questões levantadas; suas respostas ou parecem uma rendição de quem acredita em algo completamente irracional ou frias e fechadas em si mesmas.

Vou tentar quebrar isso! Deus me ajude.

Agora, preliminarmente, a leitura de tudo que eu escrever aqui tem de ser na perspectiva destes dois pontos:

1) O exame de trechos específicos não deve interferir na noção de que o verdadeiro sentido da Sagrada Escritura só pode ser tomado na análise sistemática dela e em consonância com a Sagrada Tradição.

2) Nada do que for dito aqui deve ser interpretado num sentido mais laxista ou rigorista do que aquilo que a Igreja já definiu sobre o assunto e que está devidamente exposto no Catecismo.

Geralmente são mencionadas cerca de 15 passagens:

Gênesis I, 27-28 e II, 18-25

Dois relatos da criação do primeiro homem e da primeira mulher.

Gênesis XIX

A história de Sodoma e Gomorra.

Juízes XIX

Registra uma história dos dias em que Israel colonizara a terra de Canaã, mas ainda não tinha um rei.

Levítico XVIII, 22 e XX, 23

Preceitos do assim chamado Código da Santidade referentes à moralidade sexual.

Deuteronômio XXIII, 17

Uma proibição no sentido de que “os filhos de Israel” não se tornassem prostitutos do Templo.

I Reis XIV, 24; XV, 12; XXII, 47 e II Reis XXIII, 7

Relatos sobre a instalação e abolição da prostituição no Templo em diversas épocas durante o período da monarquia.

Romanos I, 18-32

Uma reflexão sobre a ira de Deus contra a “impiedade e maldade” da humanidade.

I Coríntios VI, 9-11

Um alerta de que “malfeitores não herdarão o Reino de Deus”.

Efésios V, 33

A relação matrimonial ideal.

Judas VII

Uma referência a Sodoma e Gomorra.

Nenhum dos profetas do Antigo Testamento fez qualquer referência a relações entre pessoas do mesmo sexo.

Embora essa lista possa impressionar a uma primeira olhada, na verdade, comparado com outros assuntos, como a injustiça ou a cobiça, os textos bíblicos que tratam a questão homossexual são relativamente poucos. É sintomático também que importantes dicionários (Vocabulário Bíblico, de Leon-Dufour) e importantes estudos bíblicos (A mensagem moral do Novo Testamento, de R. Schnackenburg) nem apresentem o termo homossexualidade. Em si nada há de surpreendente na parcimônia da Bíblia, pois ela não é um catálogo de proibições, e muito menos se destina a dar resposta pronta para todos os problemas de todos os tempos (ela até dá resposta, mas não diretamente).

O que causa surpresa é o completo silêncio de Nosso Senhor Jesus Cristo. E este silêncio do Cristo é ainda mais surpreendente quando se sabe que a prática do sexo homossexual, por influxo do mundo helênico, estava presente na sociedade judaica da época e era veementemente condenada pelos rabinos. O silêncio, no caso, não significa consentimento (como querem certos modernistas), mas sugere, antes, uma postura mais global. Trata-se de uma verdadeira revolução na maneira de enfocar todos os problemas. Jesus não se pergunta propriamente pelo que as pessoas são no momento, se são santas ou pecadoras. O que importa para o Divino Mestre é que estejam dispostas a abrir os olhos para divisar os vastos horizontes da vida que Ele oferece para todos. A partir desses novos horizontes, até as pedras podem se transformar em filhos de Abraão e até uma prostituta pode transformar-se em primeira mensageira da Ressurreição.

Vou seguir a postura de Cristo neste texto.

Gênesis I, 27-28 e II, 18-25

Muito mais que os textos de São Paulo ou o relato sobre Sodoma (passíveis de um exegese liberal), o que encontramos na história da criação, para mim, é o principal ponto no que se refere a considerar as relações homossexuais (mesmo as que subjetivamente perfazem o ideal ético de oblatividade) como desviantes.

No Gênesis fica bem claro qual o o desejo do Senhor e tal desejo perfaz o fim objetivo a que tudo deveria se subordinar. Explica o Pe. Lodi:

Como coroamento de sua obra, Deus fez o homem “à sua imagem”. E o fez “varão e mulher”. Prossegue a Escritura: “Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (Gn 1, 27-28). Esta passagem encerra a um dos fins da diferenciação sexual: a procriação. Será esta a única razão pela qual Deus criou dois sexos na espécie humana? Não. Homem e mulher são diferentes também para que se possam completar mutuamente. O isolamento do homem é descrito pelo Gênesis como um mal: “Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda” (Gn 2,18). Ao ver a mulher, tirada de seu lado, o homem exclama exultante: “Esta sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!” (Gn 2,23), ao contrário dos irracionais, que sendo inferiores a ele em natureza, não lhe podiam servir de companhia adequada. A união sexual é descrita no versículo seguinte: “Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se une a sua mulher, e eles se tornam uma só carne” (Gn 2,24).

Aí está, de maneira magnífica, descrita a instituição do matrimônio e seu duplo fim: a geração da vida e a complementação dos cônjuges. Por natureza, homem e mulher são diferentes e complementares. O que falta no homem, sobeja na mulher e vice-versa. Daí sua atração mútua e a tendência de formar uma união estável e perpétua, apta à procriação e à educação da prole.

Esse explicação nos remete ao dever ser e é o que, de fato, torna heterodoxas quaisquer tentativas de trabalhar a homossexualidade como se ela fosse um bem em si mesma.

Não é a toa que onde esse tipo de perspectiva foi esquecido ou contestado, seja dentro da Igreja (jesuítas), seja fora dela (parte da Comunhão Anglicana), todas as outras referências negativas ao comportamento homossexual acabem se relativizando ou deixando de existir. E, após muito estudo, vi que essa é uma conseqüência lógica necessária mesmo. Sem o entendimento de que há um fim objetivo que representa o ideal, qualquer outra alegação nesse campo perde seu sentido de ser.

Agora, dito isso, cabe notar que a presença da homossexualidade no mundo é tão objetivamente desviante quanto a existência da miopia ou de cabelos brancos. Provavelmente essa declaração deve ter impressionado alguns, mas é assim mesmo. Sempre me pareceu um tanto estranho como algumas pessoas enchem a boca para dizer a um homossexual que “seu comportamento é uma desordem objetiva”, mas não percebem que tudo que não se adequa àquilo que Deus queria lá no Paraíso também o é. O fato de termos doenças, de “tudo cair” quando envelhecemos, de precisarmos tomar banho para não feder, etc., tudo isso é desordem objetiva!

Refletir assim, embora jamais leve a uma justificativa da homossexualidade como ideal, ajuda a por as coisas no seu devido lugar e a tratar os problemas humanos sem exageros e neuroses (que, no mais das vezes, são o resultado de falta de amor mesmo ou projeção).

É digno de nota que no mais antigo dos relatos (Gênesis II), a relação entre Adão e Eva é descrita no sentido de destinar-se ao seu companheirismo total. Isso mostra como, em termos subjetivos, a partir do companheirismo, podemos ter relacionamentos homossexuais mais exemplares que um heterossexual, assim como podemos ter relacionamentos de casais “em segunda união” mais exemplares que relacionamentos sobre o manto do sagrado matrimônio. O que a maioria não entende hoje é que nada disso muda aquilo que deveria ser e que considerar o dever ser é o primeiro passo numa reflexão sobre a moral.

Eu não tenho problemas em lidar com essa tensão entre o ser e o dever ser e fazer julgamentos concretos no campo da moralidade a partir de tal constatação. Mas muita gente parece não lidar bem com isso, talvez um reflexo da antiga teologia manualística ou de medo irracional mesmo (homofobia)… não sei.

O que falta na teologia de categorias abstratas é um mínimo de comoção pastoral com as pessoas concretas que vivem esse drama. Por isso, a maioria dos autores atuais, admitem a distinção entre moralidade objetiva, formulada em termos de malícia intrínseca e pecado gravo, e a moralidade subjetiva, na qual admitem uma grande margem de diminuição de culpa.

Portanto, podemos dizer que no Gênesis temos a principal referência bíblica sobre o tema deste post.

Gênesis XIX – Sodoma

Já há algum tempo venho refletindo sobre a passagem que trata do castigo de Sodoma. Nesse tempo em que venho estudando a questão da homossexualidade retornei várias vezes a Gênesis XIX. Recentemente, relendo todo o Pentateuco a partir da Bíblia de Jerusalém, tive nova oportunidade de pensar sobre o castigo dos habitantes de Sodoma a partir dos referenciais católicos para a exegese.

Inicialmente, eu era um radical, que repetia o lugar comum: “é evidente que os sodomitas foram condenados por seu homossexualismo, uma abominação anti-natural que clama aos Céus por vingança”. Depois, fiquei negativamente impressionado com a exegese que certos liberais davam a esse episódio, dizendo que a questão ali era a hospitalidade e o estupro coletivo, e procurei combatê-la. Mais tarde, comecei a estudar mais e mais essa nova linha exegética, em especial depois que descobri que autores católicos de grande honestidade intelectual e com uma Fé verdadeira a levavam em conta, e cheguei mesmo a pensar que ela era a mais coerente. Graças a Deus isso foi um lapso que passou bem rápido, pois eu não poderia levar em conta a exegese liberal e esquecer o que a Igreja já disse sobre o assunto, isso seria livre-exame.

Qual então o estado da questão ao se fazer uma leitura sem preconceitos (conceitos prévios), mas levando em conta o que já foi dito sobre o tema? É isso que vou tentar enfrentar agora.

Primeiramente, como falei, sempre foi divulgado que a destruição de Sodoma (e Gomorra) tinha relação com o homossexualismo. Isso não pode ser negado pelo católico (Congregação para a Doutrina da Fé, Carta aos bispos da Igreja Católica sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais, 1987, n. 6).

Contudo, uma leitura sistemática, que leva em conta o que veremos sobre Juízes XIX e o que temos em Gênesis XIII, 13, que aponta para a maldade em geral dos habitantes de Sodoma, mostra que o pecado sexual no episódio que estamos abordando é mais um instrumental que o fim em si mesmo.

Ezequiel XVI, 49 deixa isso explícito:

Eis qual foi a causa da iniqüidade de Sodoma, tua irmã: a soberba, a fartura de pão e a abundância, a ociosidade dela e de suas filhas, e o não estender a mão para o pobre indigente.

Outros textos veterotestamentários, lidos no seu contexto, aludem muito mais a essa maldade geral que a qualquer pecado puramente sexual (Isaías I, 9 e III, 9; Jeremias XLIX, 18; Amós IV, 11; Sofonias II, 9).

Em Isaías I, 10-20 temos:

Ouvi a palavra de Iahweh, chefe de Sodoma, prestai atenção à instrução do nosso Deus, povo de Gomorra! Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios?, diz Iahweh. Estou farto de holocaustos de carneiros e da gordura de bezerros cevados; no sangue de touros, de cordeiros e de bodes não tenho prazer. Quando vindes à minha presença quem vos pediu que pisásseis meus átrios? Basta de trazer oferendas vãs: elas são para mim incenso abominável. Lua nova, sábado e assembléia, não posso suportar falsidade e solenidade! Vossas luas novas e vossas festas, minha alma detesta: elas são para mim um fardo; estou cansado carregá-lo. Quando estendeis vossas mãos, desvio de vós meus olhos; ainda que multipliqueis a oração não vos ouvirei. Vossas mãos estão cheias de sangue; lavai-vos, purificai-vos! Tirai de minha vista vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva! Então, sim, poderemos discutir, diz Iahweh: Ainda que vossos pecados sejam como escarlate, torna-se-ão alvos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim torna-se-ão como a lã. Se quiserdes obedecer, comereis o fruto precioso da terra. Mas se vos recusardes e vos rebelardes, sereis devorados pela espada! Eis o que a boca de Iahweh falou.

No texto fica claro um problema geral de maldade e o fato dele estar inserido numa parte de Isaías que trata da ingratidão é mais um reforço para essa percepção.

As duas referências do Novo Testamento encontram-se em Judas VII, um texto um tanto obscuro, acenando para uma espécie de comércio carnal entre seres humanos e anjos, e II Pedro II, 6-10, indicando a libertinagem geral.

Desse modo, o texto sobre Sodoma aponta mais para a violação da hospitalidade que para qualquer outra coisa. Afinal, se fosse pela questão da castidade, o fato de Ló querer dar suas duas filhas virgens em lugar dos anjos (que os habitantes de Sodoma não sabiam que eram anjos) para serem estupradas seria de uma contradição bem maluca (o paralelo do que temos aqui com que está em Juízes não é uma mera coincidência).

Pode-se pensar, também, numa certa correlação entre a rejeição do estrangeiro e a rejeição da alteridade. Na compreensão bíblica, o reconhecimento da diferença sexual descentraliza o sujeito de si mesmo e lhe mostra seus limites; já o desconhecimento desta diferença ameaça aprisionar a pessoa no círculo encantado e mortal de si mesma, ou seja, promove a idolatria (por isso o Código da Santidade, que veremos em Levítico, aborda o tema).

A principal falha dos novos “exegetas”, então, é não levar em conta que um pecado tem relação com outros. Assim como a prática heróica de uma virtude geralmente leva à prática das outras virtudes, ficar obstinadamente num pecado leva o pecador a cair em outros pecados relacionados por natureza ou circunstância.

Realmente, os habitantes de Sodoma caíram na falta de caridade e hospitalidade, glutonaria e imoralidade geral. Contudo, isso não permite concluir que o homossexualismo não é pecaminoso como querem alguns (atentem para a palavra “pecaminoso”!).

Cornélio a Lapide, grande estudioso católico da Bíblia (se não o maior, pelo tamanho de seu trabalho e pela fidelidade à Igreja), ensina-nos (a tradução é minha e, portanto, deve ter problemas) :

O primeiro entre os vícios de Sodoma é o orgulho. Em seguida a fartura do pão, ou melhor de comida, comidas delicadas, banquetes. Em terceiro, a abundância de bens, de luxo e prazer. Em quarto, preguiça. Em quinto, falta de misericórdia…

Ouçamos São Jerônimo: “Arrogância, fartura de pão, a abundância de todas as coisas, preguiça, prazeres, esses foram os pecados de Sodoma. Por causa deles, eles esqueceram de Deus, pois a presença contínua de riquezas parece perene e então não há necessidade de recorrer a Deus para obtê-las.” (…) Por isso, nós encontramos primeiro orgulho entre os pecados de Sodoma. Então Deus castiga os orgulhosos, permitindo que eles caiam numa grande e ignomiosa luxúria, como pode ser deduzido de Rom. 1, 27… Também, a gula levou a queda de Sodoma, pois é a matéria pela qual a luxúria nasce. São Jerônimo diz: “A lava dos vulcões Etna, Vesúvio ou Olimpo não faz os jovens queimar de luxúria, mas o vinho e pratos delicados.” (…) Sobre a preguiça, São João Crisóstomo diz: “Preguiça ensina toda a malícia.”

(…)

Quinto, falta de misericórdia, que foi a causa da luxúria dos sodomitas: então aqueles que são cruéis com os outros são também cruéis com sua própria natureza, violando as leis da geração. Os que são cruéis com seus vizinhos e coisas como seu sustento ou mesmo sua vida, também são cruéis com seus corpos, abusando deles libidinosamente. Assim, os sodomitas que eram cruéis com seus convidados e com os peregrinos (neste caso os anjos que assumiram corpos humanos e se apresentaram como peregrinos a Lot) queimam de desejos maus (Gen. XIX, 5). Falta de misericórdia e crueldade fazem, então, que aqueles que são cruéis não respeitem nem a modéstia nem a reputação, o corpo, ou a vida do vizinho, especialmente estranhos e peregrinos. Em substituição, eles os tratam como seus, como comida para suas lascívias – algo vil e sem valor.

Como se observa, a interpretação que vê no homossexualismo um instrumental para a maldade não é um exemplo de “modernismo laxista”, mas, acima de tudo, um fruto do comprometimento com a verdade.

Quais as conseqüências disso tudo?

A primeira, como já ressaltei, é que tomar o caso de Sodoma como o principal na rejeição da prática homossexual como ideal é um equívoco. O relato da criação cumpre muito mais esse papel.

A segunda é saber que se for para considerar a questão da castidade como o principal aqui, então, por analogia, teremos de considerar que as chicotadas nas costas de Nosso Senhor são piores do que aquilo que as motivou (a impiedade geral que levou ao não reconhecimento do Messias). Uma pessoa inteligente não pode fazer isso.

A terceira é que a tentativa de relações homossexuais aqui não tem nada haver com uma homossexualidade estrutural.

Uma questão mais sutil, mas associada, é a avaliação daquele preceito catequético sobre os pecados que clamam ao Céu por vingança que diz: “Pecado sensual contra a natureza”. Algumas pessoas gostam de ver aqui a “sodomia” (sexo anal), mas, supondo que estivessem certas, associar isso a homossexuais seria um erro, já que existem homossexuais masculinos que não fazem sexo anal (sobre as lésbicas nem se fala) e heterossexuais que o fazem. Todavia, não é isso que o texto diz; ele, numa referência a exegese nem sempre aprimorada da Escritura, sobre episódios como o de Sodoma e o de Onan (Gênesis XXXVIII, 4-10 – equivocadamente associado à masturbação), trata de qualquer pecado (e pecado, ou seja, a um comportamento que preencha todas as condições para o pecado mortal) contra a natureza no âmbito sexual: masturbação, homossexualismo, coito interrompido, bestialismo, etc.

Sendo assim, considero que focar o episódio de Sodoma e Gomarra só no homossexualismo é um reducionismo.

Juízes

No capítulo XIX desse livro temos um texto que também é associado a questão da homossexualidade. Considero isso uma maluquice.

O que temos aqui é um relato chocante sobre um crime. Um levita que ia para casa com seu servo e sua concubina acaba tendo de passar uma noite na cidade benjamita de Gabaá. Nessa cidade os habitantes faltam gravemente com a lei da hospitalidade. O levita salienta a ironia de sua situação: ele, que tem acesso à cada de Javé, não encontra ninguém para acolhê-lo.

Ele acaba encontrando um conterrâneo que vive entre os benjamitas e este lhe oferece asilo. À noite, aparecem uns vagabundos querendo manter relações sexuais com o levita (é aqui que alguns associam esse episódio com homossexualismo). O levita acaba dando sua concubina para eles a “conhecerem” e está acaba sendo morta e disso deriva uma série de conseqüências que representa bem a mentalidade da época (de punição coletiva).

O que temos aqui não é um caso de homossexualismo, mas de estupro. A vítima, afinal de contas, é uma mulher! Não importa se tal ato é cometido por héteros, gays ou bissexuais, o estupro é errado e é isso que o episódio nos passa.

Uma coisa estranhíssima na exegese que vê aí um caso de “abominação homossexual” é que ela não atenta para o fato de que o levita dá sua concubina para ser estuprada!!! Querer condenar relacionamentos homossexuais livres e estáveis com base num episódio de estupro e não tirar nenhuma conseqüência do fato de uma mulher ser usada como objeto é uma completa doideira. É preciso ter muito, muito, muito preconceito (no sentido literal da palavra) para ver nesse episódio uma lição moral sobre a homossexualidade. É preciso muito, muito, muito preconceito para ficar picotando da Escritura segundo um dado cultural prévio para aplicar, sem mais nem menos, o Antigo Testamento para os homossexuais e não fazer isso, na mesma medida, para as mulheres. Pois se desse trecho se tirar alguma lição sobre a homossexualidade, também teremos de tirar sobre a mulher (que ela não passa de uma coisa na mão do marido).

Desse modo, Juízes não apresenta nenhuma lição verdadeira sobre a sexualidade humana.

Deuteronômio, Reis, Efésios e Judas

As referências citadas de Deuteronômio e dos dois livros de Reis referem-se todas à prostituição cúltica no Templo, que era uma característica da religião cananéia contra a qual os israelitas foram repetidamente advertidos. Essas condenações e proibições, seja da prostituição heterossexual, seja da homossexual, evidentemente nada significam no tocante a relações de longo prazo de qualquer tipo.

O versículo citado de Efésios refere-se à afirmação da relação entre Cristo e seu corpo, isto é, a Igreja, e a relação entre marido e mulher. O escritor sagrado não menciona aqui qualquer outra espécie de relação humana, e caso daí se queira concluir – como fazem alguns – que a relação marido-mulher é a única possível para cristãos, a conseqüência seria considerar o celibato tão pecaminoso quanto um relacionamento homossexual.

A passagem em Judas usa Sodoma (como fizeram todos os principais profetas e Jesus) como ilustração da destruição que inevitavelmente sucede ao pecado. O escritor não menciona “desejos sexuais não naturais” como um dos pecados de Sodoma. É necessária considerável carga de juízo prévio para encará-la como referência ao que atualmente conhecemos como relações homossexuais.

Levítico

Os textos do Levítico direta ou indiretamente ligados ao comportamento homossexual aparecem na seção desse livro conhecida como Código da Santidade, que estabelece como o comportamento dos israelitas, enquanto povo eleito de Deus, deveria distinguir-se daquele de outras nações.

Nessa via de santidade, relações homossexuais entre homens estavam proibidas. A razão por que não se mencionam mulheres (sugerem os estudiosos) é que se acreditava naquela época que a fonte total da vida vinha do homem, sendo que a mulher servia apenas de receptáculo no qual a semente se desenvolvia em nova vida. Numa pequena nação, cercada de poderosos vizinhos e almejando o crescimento, qualquer ação na qual as sementes de possível nova vida fossem desperdiçadas tinha de ser declarada pecaminosa.

Os liberais usam isso para tentar desqualificar o valor do que temos em Levítico, como se ele fosse um mero fruto da cultura do momento. Em certo sentido isso é até verdade, pois é evidente que a inspiração passou por uma filtragem cultural mas a conseqüência de saber disso não é jogá-la fora e sim descobrir o sentido espiritual profundo.

Mas vamos por partes.

O grande problema que aparece no Código da Santidade, em especial para quem se esqueceu como a Igreja lê a Bíblia (hereges modernistas e protestantes de um lado e rigoristas neo-conservadores, carismáticos e tradicionalistas do outro), é tomar os versículos que tratam da homossexualidade como algo sobre o qual não se pode fazer nenhuma reflexão e, ao mesmo tempo, ignorar os adjacentes, ou, por causa dos adjacentes, ignorar os que se referem a relações homossexuais.

Um falso dilema.

Os rigoristas, que gostam de citar o Levítico como algo autoritativo em si mesmo, costumam insistir em que pessoas que apresentam o comportamento que estamos analisando precisam ser tratadas com amor e compaixão e receber apoio num processo de mudança (é interessante como muitos, por baixo dos panos, não se furtam de encher a boca para falar “viados” em tom de ameaça). Entretanto o livro declara explicitamente que as pessoas que praticam o sexo com um igual precisam ser executadas.

Os liberais, por sua vez, observam a contradição (verdadeira) de que outras partes do Código de Santidade proíbem toda uma série de outras coisas que, ao que sei, não são levadas a sério por qualquer católico com a cabeça no lugar – por exemplo, comer carne contendo sangue, usar roupa feita de dois tipos de fibra ou designar para o sacerdócio alguém que tenha qualquer defeito físico, mesmo que seja uma sobrancelha torta.

Tudo isso, inevitavelmente, levanta a seguinte questão: como é possível determinar que um versículo deve ser considerado como tendo autoridade divina, ao passo em que se rejeita vários outros como sendo inaplicáveis para nós hoje? Resposta: lendo a Sagrada Escritura da maneira católica, isto é, sistematicamente e em conjunto com a Santa Tradição.

Por essa leitura, por exemplo, é que sabemos que a masturbação não faz parte do ideal cristão de santidade. Não há nenhuma passagem bíblica sobre ela, Jesus não falou nada contra a masturbação!!! e, mesmo assim, ela é alvo de proibição. Por quê? Porque não se adequa àquilo que se tira da visão sistemática da Escritura (uma sexualidade objetivamente regrada – visando a reprodução – e dentro do matrimônio) e dos princípios que o Divino Mestre nos deixou (afinal, se olhar com más intenções uma mulher já é pecado, imaginem fazer uma auto-estimulação erótica a partir disso).

Sendo assim, o que deve importar no Código da Santidade não são suas regrinhas em concreto, mas o sentido profundo espiritual, ou seja, o de se preservar de tudo que afaste do ideal que Deus tem para nós, como seu povo (a Igreja é o novo Israel de Deus), e sempre lendo na perspectiva do Cristo, que tem por horizonte o Reino, ao qual todos são convocados.

Romanos

Nesse trecho de Romanos (I, 18-32) a questão da homossexualidade parece direta e bem estruturada (inclusive, temos aqui a única referência em toda a Bíblia ao lesbianismo). Parece… novamente temos o sexo entre iguais como um instrumental e não como o problema central.

Mas vamos por partes, entendendo pouco a pouco todo esse trecho do livro.

A perícope (conjunto de versículos que formam uma unidade temática) está definida em seu caráter forense pelo começo, “ira-condenação”, e pelo final, “réus de morte”. A ira é tema freqüentíssimo no Antigo Testamento (Sofonias I, 15). O delito é enunciado, primeiro de modo genérico: todo tipo de impiedade (contra Deus) e injustiça (contra o próximo). Por serem gerais, abrangem tudo, e mostram um Deus ativamente inconciliável com o pecado (Salmo X, 5).

Depois desenvolve um processo. Primeira fase: o homem conhece (naturalmente, sem Revelação) a Deus, e não o reconhece como é devido. Como castigo – segunda fase – o Senhor abandona o homem a suas paixões; repete-o três vezes (versículos 24, 26, 28). Conseqüência – terceira fase – um catálogo de vícios, tirados em parte da cultura pagã greco-romana. Desenlace: como não podem alegar a rejeição nem o atenuante da ignorância (versículo 32), são réus de morte.

No Antigo Testamento, como castigo, Javé “entrega” o povo ao inimigo (Juízes II, 1-4/20-23), aqui o entrega “a seus desejos, a suas paixões, à sua mente depravada”: levam dentro o inimigo e o castigo abrange “o corpo e a mente”.

Desse modo, quando chega a falar de relações homossexuais, São Paulo as enquadra no contexto geral de decadência moral que encontra na sociedade romana. É bom não forçar demais a passagem, entendendo que ele se refere especificamente ao fato de pessoas que tinham vivido em relações heterossexuais abandoná-las em favor de relações homossexuais. Em termos práticos, qual era a origem disso? Era a chamada prostituição cúltica: na época de Paulo eram comuns as orgias grupais nos cultos de fertilidade; nas sociedades vinculadas a Roma, a pedofilia e a prostituição faziam parte das práticas sexuais entre homens (não haveria o inconveniente de uma gravidez), que se inflamavam mutuamente. Homens livres heterossexuais ou bissexuais desprezavam as suas esposas e praticavam orgias sexuais com seus escravos, prestando culto aos ídolos (o mesmo no que se refere às mulheres).

Por que o culto aos ídolos, na visão cristã, como que “exigia” isso? Bem, a “abominação” das práticas descritas não é só moral, mas, especialmente, teológica. No início havia o caos… ou seja, não havia diferenciação, mas uma mistura desordenada de elementos; Deus, então, começa a colocar ordem, justamente estabelecendo a diferenciação dos elementos: terra, ar, água… A expressão máxima da diferenciação organizadora e fecunda encontra-se justamente na diferenciação sexual: Ele os criou homem e mulher. Ora, nessa perspectiva, relações homossexuais seriam uma volta atrás, uma volta da confusão e da esterilidade. E esquecer a diferença, como ressaltei na análise do episódio de Sodoma, é a expressão da idolatria, posto que o reconhecimento dela descentraliza o sujeito de si, mostrando seus limites; o desconhecimento da diferença aprisiona a pessoa no círculo encantado de si mesma.

Temos, então, nesse trecho de Romanos um eco do “sereis como deuses” do Gênesis (por isso já escrevi mais de uma vez: sem levar ele em conta, nada faz sentido na consideração da homossexualidade como algo que não é ideal). O que se encontra na raiz de todos os pecados (o orgulho), transparece de maneira mais clara no campo da sexualidade. Por isso, se a antropologia paulina aponta para o: “não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? E então vão tomar membros de Cristo para faze-los membros de uma prostituta? Jamais!” é exatamente no modo como o ser humano vivencia sua sexualidade que vai se manifestar ou não a consciência de sua dignidade; se este ser se entrega às obras da carne ou às obras do espírito: eis o critério. Esse é o foco de Paulo, as relações homossexuais citadas aqui (periféricas, não oblativas) são um exemplo, não o ponto essencial.

I Coríntios

Entro agora no último trecho bíblico associado a questão homossexual.

Vamos a ele (segundo a tradução de quatro versões católicas e duas protestantes):

Vulgata (Matos Soares): “Porventura não sabeis que os injustos não possuirão o reino de Deus? Não vos enganeis: Nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os que se dão à embriaguez, nem os maldizentes, nem os roubadores possuirão o reino de Deus. E tais éreis alguns de vós; mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, e pelo Espírito de nosso Deus.”

Ave Maria: “Acaso não sabeis que os injustos não hão de possuir o Reino de Deus? Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus. Ao menos alguns de vós tem sido isso. Mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados, em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus.”

Peregrino: “Não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos iludais: nem os fornicadores nem os idólatras nem adúlteros nem efeminados nem homossexuais nem ladrões nem avarentos nem beberrões nem caluniadores nem exploradores herdarão o reino de Deus. Alguns de vós no passado eram desses; mas fostes lavados, consagrados e absolvidos pela invocação do Senhor nosso Jesus e pelo Espírito do nosso Deus.”

Jerusalém (edição revista e ampliada): “Então não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos iludais! Nem os impudicos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem as pessoas de costumes infames, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os injuriosos herdarão o Reino de Deus. Eis o que vós fostes, ao menos alguns. Mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito de nosso Deus.”

Almeida Revisada e Corrigida: “Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis; nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o Reino de Deus. É o que alguns têm sido, mas haveis sido lavados, mas haveis sido santificados, mas haveis sido justificados em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito de nosso Deus.”

Almeida Edição Contemporânea: “Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus. E tais fostes alguns de vós. Mas fostes lavados, mas fostes santificados, mas fostes justificados em nome do Senhor Jesus, e pelo Espírito nosso Deus.”

De maneira preliminar, digo que a tradução da Bíblia de Jerusalém é a ideal, mas, por desencargo de consciência, vou fazer um exercício intelectual avaliando o trecho segundo a traducão das outras versões antes de ir ao argumento central.

Em primeiro lugar, cabe notar que esse trecho se une com a lista presente em V, 11 (que acrescenta outras categorias) compondo uma espécie de “decálogo negativo” (também encontrado em Gálatas V, 19-21; Efésios V, 5; I Timóteo I, 9-11; Apocalipse XXII, 15). Nesse sentido, as duas palavras que podem ser associadas a homossexualidade na perícope (efeminados e sodomitas) não são ressaltadas. Quem as enfatiza deveria ser enfático com todo o resto da lista.

Vale salientar que a tradução que encontramos na Bíblia do Peregrino, onde “sodomitas” vira “homossexuais” é fruto de grande subjetivismo, pois na época de São Paulo a palavra “homossexual” não existia e o que entendemos por ela, mesmo se for levada em conta a exegese duvidosa que identifica o “pecado de Sodoma” apenas com relacões sexuais entre pessoas do mesmo sexo, não é o mesmo que se infere de “sodomitas”. O termo “homossexual” pode se referir a uma orientacão sexual, enquanto “sodomita” sempre fará mencão de uma conduta.

Por outro lado, a palavra “efeminado” não pode ser usada para tratar da questão homossexual pelo simples fato de que nem todo efeminado é gay.

Tomando, pois, as coisas desse modo, só a palavra “sodomitas” teria algo a dizer sobre os homossexuais e, mesmo assim, com as limitações que já expliquei sobre o “episódio de Sodoma”, e com o fato de que um pecado para se enquadrar nela teria de contar com os elementos subjetivos (livre querer e consciência do ato), pois o simples enquadramento objetivo não satisfaz (ou teríamos de inferir que ficar bêbado excluiria alguém do Reino).

Só que tudo isso cai por terra quando vamos ao centro da questão.

E esse centro é o fato de que traduzir malakoi (literalmente, “macios”) por “efeminados” e arsenokoitai (literalmente, “homem de muitas camas”) por sodomitas é algo contestável. Hoje, a maioria dos exegetas concorda que o vocábulo traduzido por “efeminados”, na verdade, se refere aos catamitas – meninos feitos prostitutos em templos pagãos. Em relação ao outro termo é simplesmente impossível de se chegar a uma conclusão precisa.

As palavras originais em grego koiné eram desconhecidas do tradutor (ou tradutores), o qual supôs para elas um sentido. Quando o tradutor (ou tradutores) se deparava com um vocábulo que desconhecia, tentava procurar em outras obras (sem sucesso) e aí atribuia algo que “achava” encaixar-se no contexto da maneira mais bela. No século XIX, por exemplo, várias bíblias continham “masturbadores” ao invés de “efeminados”.

No decorrer do século XX, no entanto, versões mais novas começaram a questionar essas traduções. Essas traduções tentam ao máximo usar a equivalência formal, ou seja, dar mais valor à tradução ao pé da letra dos vocábulos e menos à beleza da forma. Nessas edições, as equipes observaram que era mais adequado traduzir esses dois vocábulos como impureza sexual e prostituição cúltica, que era homossexual, mas também heterossexual, e comum em templos pagãos. Desse modo, bíblias como a Bíblia de Jerusalém, trocaram “efeminados” e “sodomitas” por “imoralidade sexual”.

É interessante notar que a mesma palavra em grego que é traduzida comumentemente por sodomitas, quando aparece em Apocalipse XXI, 8 e XXII, 14, nas mesmas bíblias, ganham outro significado (o que remete à “adivinhação”).

Sendo assim, São Paulo condena aqui a depravação sexual dos injustos (os pagãos). Certamente em tal depravação está incluída a depravação homossexual, assim como qualquer outra.

O que não dá é querer ver aqui uma condenação do comportamento homossexual em si mesmo. Este é colocado fora da moralidade objetiva pelo relato do Gênesis e pelo sentido último da proposta moral do Evangelho.

Conclusão

Após tudo isso (foram seis meses de pesquisa direta e seis de indireta), vejo como a homossexualidade deve ser tratada: considerando-a algo que está fora do Projeto de Deus, mas que também não deve ser motivo para histeria.

Alguns podem olhar para mim e achar que eu nasci ontem… e que estou numa conspiração satânico-diabólica, querendo desvirtuar a “sã doutrina” e a “Fé entregue aos Santos”.

Eu não nasci ontem. Vivi e vivo intensamente a Igreja para saber que, de todos os coleguinhas criados comigo, indo à Missa, cantando nos corais, participando de gincanas, grupos de estudo, etc…. alguns – e só a Deus cabe saber isso – ao se despertarem sexualmente, perceberam que eram homo ou bissexuais.

E aí, pedir para ler Romanos ou Coríntios, ou qualquer outra passagem, retirada como cartas da manga, é jogar aquele católico fiel num poço sem fundo de depressão e miséria interior.

O que estou propondo aqui é, mais uma vez, discutir o assunto de uma forma inteligente e equilibrada. Deixo todo um texto para debate (que, a meu ver, é até muito resumido e precisava de mais detalhamento), a partir do qual podemos aprofundar os argumentos honestos e respeitosos.

Quem meramente lança um post de uma linha, fechando a questão com a interpretação literal de um versículo tirado de uma bíblia mal traduzida, na verdade, não está muito preocupado com o assunto… ou tem medo – medo de sua pseudo-verdade absoluta ser derrubada. A palavra seca e as observações sem muito rigor ou aprofundamento só mostram a imaturidade e a infantilidade de certas pessoas.

A resposta fácil que alguns querem ouvir é: não pode, e a pessoa vai ser transformada, só precisa perseverar.

Mas, na verdade, os que apenas sabem entoar esse mantra, mostram que nunca tiveram uma real experiência de vivência do Evangelho (vejam bem, não digo que não creiam em Cristo), a ponto de lidarem com situações constrangedoras.

A complexidade das passagens bíblicas alvos desta pesquisa são um reflexo da própria complexidade da vida, do caminhar humano. Por isso temos de ler as Escrituras com os olhos de Cristo ou, ao invés de produzirem vida, serão fonte de maldição.

Fontes

Bíblia do Peregrino.

Bíblia de Jerusalém.

Ética da Sexualidade e do Matrimônio. Ed. Paulus. Autor: Eduardo López Azpitarte.

Defending a Higher Law: Why We Must Resist Same-sex “Marriage” and the Homosexual Agenda. Autor: TFP americana.

– artigos retirados da Enciclopédia Católica (em inglês, 1967) e do Dicionário de Teologia Moral da Paulus.

Encarando nossas diferenças. As igrejas e seus membros homossexuais. Ed. Sinodal. Autor: Alan A. Brash.

O Enigma da Esfinge. A sexualidade. Ed. Vozes. Autor: Frei Antônio Moser.

Reforçando as trincheiras. Análise da problemática do homossexualismo à luz do cristianismo histórico. Ed. Vida. Autor: D. Robinson Cavalcanti.

Acompanhamento de vocações homossexuais. Ed. Paulus. Autor: José Lisboa Moreira de Oliveira.

Same-sex unions in premodern Europe. Autor: John Boswell.

– Artigo Eles também são da nossa estirpe – considerações sobre a homofilia (Revista Vozes 9 – 1967). Autor: Pe. Jaime Snoek.

– coleta de posts em várias comunidades cristãs pelo Orkut.

– conversas com homossexuais (masculinos e femininos) católicos (que possuem uma atuação na Igreja ou que deixaram a prática religiosa).

Para refletir (os documentários, o filme e o artigo são só para os leitores terem mais elementos ao pensarem sobre essa questão, em hipótese alguma deve-se entender que eu defendo algo que a Igreja não defende):

Como diz a Bíblia (documentário)

Orações para Bobby (filme)

A terceira via (documentário)

What should a gay catholic do? (artigo)

Author: James Martin, S.J.

Here’s a real pastoral question to consider: What place is there for the gay person in the Catholic church? With the warning from the archdiocese of Washington, D.C., that it would pull out of social services in the city rather than accede to a bill that would afford benefits to same-sex spouses, a question, too long neglected, arises for the whole church: What is a gay Catholic supposed to do in life?

Imagine you are a devout Catholic who is also gay. Here is a list of the things that you are not to do, according to the teaching of the church. (Remember that most other Catholics can choose among many of these options.) None of this should be new or in any way surprising. If you are gay, you cannot:

1.) Enjoy romantic love. At least not the kind of fulfilling love that most people, from their earliest adolescence, anticipate, dream about, hope for, plan about, talk about and pray for. In other cases, celibacy (that is, a lifelong abstinence from sex) is seen as a gift, a calling or a charism in a person’s life. Thus, it is not to be enjoined on a person. (“Celibacy is not a matter of compulsion,” said then Cardinal Joseph Ratzinger.) Yet it is enjoined on you. (“Homosexual person are called to chastity,” says the Catechism, meaning complete abstinence.) In any event, you cannot enjoy any sort of romantic, physical or sexual relationship.

2.) Marry. The church has been clear, especially of late, in its opposition to same-sex unions. Of course, you can not marry within the church. Nor can you enter into any sort of civil, same-sex unions of any kind. (Such unions are “pseudo-matrimonies,” said the Holy Father, that stem from “expressions of an anarchic freedom”) They are beyond the pale. This should be clear to any Catholic. One bishop compared the possibility of gays marrying one another to people marrying animals.

3.) Adopt a child. Despite the church’s warm approval of adoption, you cannot adopt a needy child. You would do “violence,” according to church teaching, to a child if you were to adopt.

4.) Enter a seminary. If you accept the church’s teaching on celibacy for gays, and feel a call to enter a seminary or religious order, you cannot—even if you desire the celibate life. The church explicitly forbids men with “deep-seated homosexual tendencies” from entering the priesthood. Nor can you hide your sexuality if you wish to enter a seminary.

5.) Work for the church and be open. If you work for the church in any sort of official capacity it is close to impossible to be open about who your identity as a gay man or a lesbian. A gay layman I know who serves an important role in a diocese (and even writes some of his bishop’s statements on social justice) has a solid theological education and desires to serve the church, but finds it impossible to be open in the face of the bishop’s repeated disparaging remarks about gays. Some laypeople have been fired, or dismissed, for being open. Like this altar server, who lives a chaste life. Or this woman, who worked at a Catholic high school. Or this choir director.

At the same time, if you are a devout Catholic who is attentive both to church teachings and the public pronouncements of church leaders, you will be reminded that you are “objectively disordered”, and your sexuality is ”a deviation, an irregularity a wound.”

Nothing above is surprising or controversial: all of the above are church teaching. But taken together, they raise an important pastoral question for all of us: What kind of life remains for these brothers and sisters in Christ, those who wish to follow the teachings of the church? Officially at least, the gay Catholic seems set up to lead a lonely, loveless, secretive life. Is this what God desires for the gay person?

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Apologética

Irmã Themis, de protestante a católica

A graça abunda onde menos se espera. Maria Santíssima é mãe de todos aqueles que buscam a Deus com sinceridade.

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Defesa da vida

Debate na UFPE – aborto

fdrOntem (25/03) debati sobre a legalização e legitimação do aborto na Faculdade de Direito do Recife, ligada a Universidade Federal de Pernambuco. No debate, promovido pelo grupo que ora ocupa o diretório acadêmico, também estavam presentes na mesa uma socióloga feminista (defesa ideológica do aborto) e um advogado criminalista (defesa pragmática do aborto).

Desde o primeiro momento tentei cortar certo tipo de estratégia dos abortistas ao levar a discussão para o âmbito natural:

“Começo com algumas afirmações para esquentar o debate.

O aborto não é legal no Brasil em nenhuma hipótese e, mesmo que fosse, seria ilegítimo.

Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais tornar lícito um ato que é intrinsecamente mau, porque contrário à Lei Natural, inscrita no coração de cada homem e reconhecível pela razão.

Desse modo, a luta pelo aborto não é luta, mas uma mistificação, que instrumentaliza conceitos e fraquezas humanas para levar a cabo seu nefasto intento.

A mistificação pelo aborto não um movimento em prol de direitos, pois solapa a base justificadora do sistema jurídico, que é a pessoa. Quando admitimos que uma vida humana inocente pode ser eliminada, tudo, TUDO, perde sentido. Nenhuma causa, social, econômica, sexual, política, cultural e, muito menos jurídica, faz sentido. A pessoa, ao contrário do que querem certos doutrinadores carcomidos como os ossos de Augusto Conte, não é um repositório de direitos e deveres, mas o centro irradiador dos direitos e deveres.

A mistificação pelo aborto não proclama a liberdade. Liberdade não é fazer o que se quer, mas mover-se com autonomia no meio de balizas e em direção ao bem. Não há liberdade de escolha quando a escolha é matar o indefeso.

A mistificação pelo aborto não contribui para dignificar a mulher, antes a degrada na mesma medida em que degrada toda a civilização, ao subverter o movimento ascendente de superação de tabus que proclama a dignidade do ser humano pelo simples fato de ser um humano.

A mistificação pelo aborto não atua em favor em favor de “direitos reprodutivos” ou do “planejamento familiar”. Não atua em prol dos “direitos reprodutivos” porque não atua em prol de direito nenhum, como disse a pouco, e não atua em favor do “planejamento familiar” pelo simples fato de que não podemos admitir este à custa de vidas ceifadas.

Sendo assim, como tolerar que tal mistificação continue a existir?

A tolerância pode ser uma virtude, mas é a virtude característica das situações anômalas, periclitantes, difíceis. Ela é a cruz do cidadão cônscio e responsável, que se encontra numa época de desolação, decadência espiritual e ruína. Desse entendimento já se observa que a tolerância pode ser perigosa: no meio de um contexto em que não se reflete com base em princípios (que é a estratégia do movimento abortista), passa-se a aceitar tudo, a tomar como ordem o que é desordem, a tolerar o intolerável.

Chega! É um atentado ao Criador e um crime de lesa pátria continuar a não responder ao abortismo. Eles querem guerra? A terão!”

Acho que essa foi a melhor estratégia, pois sempre que eles tentavam sectarizar as idéias, dizendo que eu defendia o que defendo pelo fato de ser católico, eu chamava a atenção para minhas palavras iniciais.

Infelizmente, fazendo minhas aquelas famosas palavras de Chesterton: “Tornar-se católico, não significa que se deixe de pensar, mas que se aprende a pensar”, tive de lidar com a constante confusão de critérios dos meus opositores. Numa hora um deles dizia que a ciência não podia ser critério para afirmar o que era ou não vida e, pouco depois, usava um pseudoconceito científico para dizer que o feto anencefálico não passa de uma “coisa”. Isso quando não se apropriavam de slogans (facista, medieval) indicadores da cosmovisão de cada um, para tentar descaracterizar o que eu colocava.

Por isso tive, rapidamente, de selecionar do besteirol sem fim que falavam algumas coisas para rebater sempre que tomava a palavra. E fiz isso com uma postura agressiva, para construir um contraponto moral ao que era colocado pelos “advogados da morte”.

É interessante como algumas pessoas do auditório não gostaram dessa minha última postura, tendo sua sensibilidade chocada, como se, por exemplo, fosse aceitável eu defender que o negro não é pessoa (como fez a Suprema Corte americana em 1857) com muita educação e usando palavreado chic e, ainda assim, merecer respostas num tom equilibrado. Esse é mais um exemplo de como o mundo ocidental vive numa paralaxe cognitiva, de como ele vive de aparências, de artificialidades e, por isso mesmo, cairá de podre.

Terminei com as seguintes palavras:

“Moloch era um antigo deus dos fenícios.

Construído de bronze, a imensa estátua continha no bojo uma enorme fornalha.

Em honra dessa divindade implacável, as próprias mães imolavam seus filhos pequeninos.

Atiravam elas, dentro do monstro de metal, os filhos primogênitos, os quais rolavam para dentro do abdômen incandescente de Moloch, sendo então devorados pelas chamas.

Para não provocar arrepios nos assistentes, os iníquos sacerdotes de Moloch tomavam o cuidado de mandar soar trombetas e rufar tambores, abafando assim, no ruído de uma música infernal, o gemido dos pobres inocentes.

A Fenícia pagã desapareceu na História. E com o desaparecimento da Fenícia, acabaram-se os terríveis sacrifícios.

Acabaram mesmo?

No começo deste século XXI – o século dos “direitos do homem” – já não há sacerdotes fenícios, mas aborteiros inescrupolosos de avental branco.

Já não há mais estátua de bronze, mas o próprio ventre materno tomou o lugar do bojo de Moloch.

A qual divindade se ofereceram hoje as milhões de vítimas inocentes?

Variam de acordo com um “politeísmo” macabro.

Quando se trata de cultuar o gozo sexual, sem as conseqüências estabelecidas pela própria natureza, esse deus se chama Eros e a religião toma o nome de erotismo.

Quando se trata de evitar incômodos, numa furiosa busca das conveniências pessoais, esse deus se chama Ego, e a religião será o egoísmo.

Acima de tudo, ergue-se Leviatã, ou seja, os Estados hipócritas, cujos próceres tanto falam de “direitos humanos”, mas que se tornam cúmplices de uma injustiça clamorosa, isto é, o extermínio do mais indefeso dos seres: o nascituro.

Leviatã diz que faz isso por questão de higiene e saúde. E mergulha no sangue das vítimas inocentes o mais elementar dos direitos, que é o direito à vida, praticando assim a mais odiosa das discriminações: contra o ser humano na fase pré-natal de sua existência.

O paradoxo não poderia ser mais flagrante. Precisamente da mãe, dos médicos e das autoridades públicas, a pequena vítima deveria esperar proteção e tutela.

Mais especificamente, da mãe, o filho deveria esperar o amor materno. Porém ela o imola, não em um altar em chamas, mas numa fria mesa de operação.

O médico, cuja missão é garantir a vida, se transforma no instrumento de sua morte.

O Estado, que deveria punir os criminosos que levantassem a mão contra sua vida, nega ao nascituro o direito de viver, em nome de índices, cifras e estatísticas manipuladas.

Diante do Moloch abortista, o que seremos nós?

Cidadãos mornos, indolentes, que não sabem fazer valer os seus princípios?

Ou batalhadores, que não se acovardam diante da opinião contrária dos outros e proclamam desassombrados o direito à vida, da concepção à morte natural?

Acomodação, preguiça, medo não têm lugar nessa hora em que estão ameaçados milhões de seres humanos indefesos.

Será que vamos nos tornar um Pilatos?

Pilatos passou a História, indelevelmente marcado pelo ferro em brasa da censura dos Evangelistas, como tipo característico do homem que não é cruel, por medo da crueldade, não é assassino, por idolência, e não é feroz, por inércia.

Escravo da preguiça e do medo, cede a todas as infâmias, submete-se a todas as baixezas, pela força da inércia que é como que a base de sua mentalidade.

O erro, meus caros, não é só não defender a Verdade, mas também não ter a coragem de A preservar e resguardar contra o ódio instrumentalizado da massa.

Descendo agora ao terreno de nossas consciências, esse terreno onde somente dois olhares penetram, o de Deus e o nosso, perguntemo-nos: não seremos nós outros Pilatos?

Muito obrigado pela atenção.”

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Crise

Frutos do "novo Pentecostes"

Hoje meu pároco não pôde celebrar a última Missa do dia e, em substituição a ele, veio o reitor de uma instituição de ensino superior católica (formado em centros de estudo da França e Itália). Pois bem, esse sacerdote só fez abusos atrás de abusos. Eu vi o seguinte (tem a parte que não vi, pois estava dando uma de porteiro e segurança da igreja): não elevou o Corpo e o Sangue após a consagração e não se ajoelhou para adorar; quase negou a Comunhão a um jovem que se ajoelhou para recebê-la; não purificou o cálice, as âmbulas e as patenas; e, por fim, foi atender a confissão de um seminarista que, depois, me disse que achava que ela tinha sido inválida por falta de forma!

Um amigo que teve aulas de teologia com esse padre (que, em passado recente, negou um pedido de colocação de crucifixos nas salas da instituição de ensino da qual é reitor para “não chocar” os não-católicos) contou que aula dele é uma sucessão de heresias ou de colocações com “bombas-relógio” escondidas (nada mais modernista). De negação da Trindade como categoria teológica a considerar Nietzsche como referencial filosófico tem de tudo.

São precisamente esses os frutos das reformas pós-conciliares! E ninguém venha dizer que isso é radicalismo de minha parte ou que esse padre não passa de uma excessão. Vou explicar porque não é assim: dada sua formação, ele representa o paradigma daquilo que a educação teológica católica quer produzir hoje.

Aí, quando pessoas assim ocupam cargos na burocracia romana e soltam absurdos como o da validade da Anáfora de Addai e Mari, os neoconservadores querem que nos calemos por prudência… é o fim da picada.

Pelo menos, pude rir um pouco quando o rapaz a que ele quase negou a Comunhão, após a Missa, cumprimentou o tal sacerdote pedindo sua benção e beijando sua mão. Que susto ele levou

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Apologética

Uma trela

Um confrade aqui de Recife, me contou que deu uma andada pelo centro da cidade e colocou como intenção de ação de graças em várias Missas de igrejas diferentes o seguinte:

“Pela retirada das excomunhões dos bispos sagrados por D. Marcel Lefebvre.”

A reação dos comentaristas ou sacerdotes ao lerem tal intenção foi hilária: começavam a abaixar a voz e olhar para o papel com atenção (como se estivessem lendo algo errado) e, depois, a olhar para a assembléia, procurando o lefebvrista infiltrado.

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Do Breviário à Liturgia das Horas

breviario

A Liturgia das Horas recebeu vários nomes na história. O mais difundido foi o de Breviário, que indicava a reunião em um só volume, para facilitar a recitação individual, de todos os elementos necessários para celebrar o Ofício Divino, como salmos, leituras, hinos, etc. Esse nome, todavia, também encerrava uma mentalidade privatista e reducionista da prece eclesial que sempre se quis corrigir (pelo menos desde Trento), mas que o caminhar turbulento da Igreja sempre adiava.

Depois do Vaticano II, recuperaram seu significado as expressões Ofício Divino e Liturgia das Horas. Ofício quer dizer serviço cultual e ação litúrgica (ou seja, pública), e divino indica em honra de quem se realiza a celebração. Essa expressão é equivalente à Opus Dei (Obra de Deus), segundo a expressão de São Bento (Regra 43, 3):

“Nada se anteponha à obra de Deus.”

O segundo nome faz alusão à prece eclesial distribuída segundo as horas do dia.

Nesse sentido, o Ofício Divino é verdadeira liturgia, exercício do sacerdócio de Jesus Cristo para a santificação dos homens e para o culto a Deus (Sacrosanctum Concilium 7), e, conseqüentemente, celebração de toda a Igreja, ou seja, oração de Cristo ao Pai com seu corpo eclesial (SC 84). Por esse motivo dever-se-á preferir sempre a celebração comunitária, com assistência e participação ativa dos fiéis, à recitação indivial e quase particular (SC 26-27).

Antecedentes do Ofício Divino

A origem da oração das horas deve ser buscada na oração do Divino Mestre e das comunidades católicas primitivas, que observavam os ritmos da oração judaica.

A oração judaica na época do Novo Testamento

Jesus nasceu num povo que sabia orar, no seio de uma família piedosa que observava com amor e fidelidade os preceitos do Senhor.

“Completados que foram os oito dias para ser circuncidado o menino, foi-lhe posto o nome de Jesus, como lhe tinha chamado o anjo, antes de ser concebido no seio materno.

Concluídos os dias de sua purificação segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém para o apresentar ao Senhor, conforme o que está escrito na lei do Senhor: ‘Todo primogênito do sexo masculino será consagrado ao Senhor‘ (Êx. XIII, 2); para oferecerem o sacrifício prescrito pela lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos.” (Lucas II, 21-24)

Num mundo politeísta, que desprezava a oração como absurda e inútil, e que reduziu a religião a um conjunto de práticas sangrentas e obscenas, Jesus participava na prece do povo instruído na oração pelo próprio Deus através da Revelação.

A prática judaica da prece compreendia três momentos de oração durante o dia: ao cair da tarde, ao amanhecer e ao meio dia.

“Pela tarde, de manhã e ao meio-dia lamentarei e gemerei; e ele ouvirá minha voz.” (Salmo LIV, 18)

“Ouvindo essa notícia, Daniel entrou em sua casa, a qual tinha no quarto de cima janelas que davam para o lado de Jerusalém. Três vezes ao dia, ajoelhado, como antes, continuou a orar e louvar Deus.” (Daniel VI, 11)

Desses momentos, dois estavam unidos aos sacrifícios perpétuos, que eram oferecidos todos os dias no Templo.

“O Senhor disse a Moisés: ‘Ordena o seguinte aos israelitas: cuidareis de apresentar no devido tempo a minha oblação, o meu alimento, em sacrifícios de agradável odor consumidos pelo fogo.’

‘Dir-lhes-ás: eis o sacrifício pelo fogo que oferecereis ao Senhor: um holocausto quotidiano e perpétuo de dois cordeiros de um ano, sem defeito. Oferecerás um pela manhã e outro entre as duas da tarde, juntando, à guisa de oblação, um décimo de efá de flor de farinha amassada com um quarto de hin de óleo de olivas esmagadas. Este é o holocausto perpétuo tal como foi feito no monte Sinai, um sacrifício pelo fogo de suave odor para o Senhor. A libação será de um quarto de hin para cada cordeiro; é no santuário que farás ao Senhor a libação de vinho fermentado. Oferecerás, entre as duas tardes, o segundo cordeiro; e farás a mesma oblação e a mesma libação como de manhã: este é um sacrifício pelo fogo, de suave odor para o Senhor.’ ” (Números XXVIII, 2-8)

Desse modo, a oração era santificada pelo sacrifício.

Ao se deitar e ao se levantar se recitava o Shemá Ysrael (Escuta Israel), a profissão de fé no Deus único.

“Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças. Os mandamentos que hoje te dou serão gravados no teu coração. Tu os inculcarás a teus filhos, e deles falarás, seja sentado em tua casa, seja andando pelo caminho, ao te deitares e ao te levantares. Atá-los-ás à tua mão como sinal, e os levarás como uma faixa frontal diante dos teus olhos. Tu os escreverás nos umbrais e nas portas de tua casa.” (Deuteronômio VI, 4-9)

“Se obedecerdes aos mandamentos que hoje vos prescrevo, se amardes o Senhor, servindo-o de todo o vosso coração e de toda a vossa alma, derramarei sobre a vossa terra a chuva em seu tempo, a chuva do outono e a da primavera, e recolherás o teu trigo, o teu vinho e o teu óleo; darei erva aos teus campos para os teus animais, e te alimentarás até ficares saciado. Tende cuidado para que o vosso coração não seja seduzido e vos desvieis do Senhor para servir deuses estranhos, rendendo-lhes culto e prostrando-vos diante deles. A cólera do Senhor se inflamaria contra vós e ele fecharia os céus: a chuva cessaria de cair, e não haveria mais colheita, no vosso solo, de modo que não tardaríeis a perecer nesta boa terra que o Senhor vos dá. Gravai, pois, profundamente em vosso coração e em vossa alma estas minhas palavras; prenderas às vossas mãos como um sinal, e levaras como uma faixa frontal entre os vossos olhos. Ensinai-as aos vossos filhos, falando-lhes delas seja em vossa casa, seja em viagem, quando vos deitardes ou levantardes. Escreve-as nas ombreiras e nas portas de tua casa, para que se multipliquem os teus dias e os dias de teus filhos na terra que o Senhor jurou dar a teus pais, e sejam tão numerosos como os dias do céu sobre a terra.” (Deuteronômio XI, 13-21)

“O Senhor disse a Moisés: ‘Dize aos israelitas que façam para eles e seus descendentes borlas nas extremidades de suas vestes, pondo na borla de cada canto um cordão de púrpura violeta. Fareis essas borlas para que, vendo-as, vos recordeis de todos os mandamentos do Senhor, e os pratiqueis, e não vos deixeis levar pelos apetites de vosso coração e de vossos olhos que vos arrastam à infidelidade. Desse modo, vós vos lembrareis de todos os meus mandamentos, e os praticareis, e sereis consagrados ao vosso Deus. Eu sou o Senhor vosso Deus, que vos tirei do Egito para ser o vosso Deus. Eu sou o Senhor vosso Deus.’ ” (Números XV, 37-41)

Jesus também o recitava.

“Jesus respondeu-lhe: ‘O primeiro de todos os mandamentos é este: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito e de todas as tuas forças.’ ” (Marcos XII, 29-30)

Ao meio dia se diziam as bênçãos da Thepillah. Essa prece pertencia ao culto da sinagoga (que, salvo engano, só surgiu no exílio babilônico).

A liturgia judaica incluía, além disso, uma ampla variedade de hinos, salmos e orações para as festas, para as peregrinações ao Templo e para a liturgia doméstica, na qual se destacavam as bênçãos ao cair da tarde (lucernário) e ação de graças da ceia. Nesse ambiente de oração Jesus viveu, de modo que “o louvor a Deus ressoa no coração de Cristo com palavras humanas de adoração, propiciação e intercessão” (Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas 3).

A oração de Jesus

“Cristo Jesus, ao assumir a natureza humana, trouxe para este exílio terreno aquele hino que é cantado por todo o sempre nas habitações celestes” (IGLH 3; SC 83). A oração de Nosso Senhor em sua vida terrena foi a expressão do colóquio eterno do Verbo com o Pai no Espírito Santo, e o anúncio da mediação sacerdotal que continua agora nos Céus.

a) A pureza de intenção.

“Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa. Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á.” (Mateus VI, 5-6)

“Ele lhes dizia em sua doutrina: Guardai-vos dos escribas que gostam de andar com roupas compridas, de ser cumprimentados nas praças públicas e de sentar-se nas primeiras cadeiras nas sinagogas e nos primeiros lugares nos banquetes. Eles devoram os bens das viúvas e dão aparência de longas orações. Estes terão um juízo mais rigoroso.” (Marcos XII, 38-40)

b) A união da mente com a voz, para não se cair na censura de Isaías XXIX, 13.

“Este povo somente me honra com os lábios; seu coração, porém, está longe de mim. Vão é o culto que me prestam, porque ensinam preceitos que só vêm dos homens.” (Mateus XV, 8)

c) A confiança no Pai.

“Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê num lugar oculto, recompensar-te-á. Nas vossas orações, não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos que julgam que serão ouvidos à força de palavras.” (Mateus VI, 7-8)

“Portanto, eis que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais do que o alimento e o corpo não é mais que as vestes? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros e vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas? Qual de vós, por mais que se esforce, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida? E por que vos inquietais com as vestes? Considerai como crescem os lírios do campo; não trabalham nem fiam. Entretanto, eu vos digo que o próprio Salomão no auge de sua glória não se vestiu como um deles. Se Deus veste assim a erva dos campos, que hoje cresce e amanhã será lançada ao fogo, quanto mais a vós, homens de pouca fé? Não vos aflijais, nem digais: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos? São os pagãos que se preocupam com tudo isso. Ora, vosso Pai celeste sabe que necessitais de tudo isso.” (Mateus VI, 25-32)

“Jesus voltou-se então para seus discípulos: Portanto vos digo: não andeis preocupados com a vossa vida, pelo que haveis de comer; nem com o vosso corpo, pelo que haveis de vestir. A vida vale mais do que o sustento e o corpo mais do que as vestes. Considerai os corvos: eles não semeiam, nem ceifam, nem têm despensa, nem celeiro; entretanto, Deus os sustenta. Quanto mais valeis vós do que eles? Mas qual de vós, por mais que se preocupe, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida? Se vós, pois, não podeis fazer nem as mínimas coisas, por que estais preocupados com as outras? Considerai os lírios, como crescem; não fiam, nem tecem. Contudo, digo-vos: nem Salomão em toda a sua glória jamais se vestiu como um deles. Se Deus, portanto, veste assim a erva que hoje está no campo e amanhã se lança ao fogo, quanto mais a vós, homens de fé pequenina! Não vos inquieteis com o que haveis de comer ou beber; e não andeis com vãs preocupações. Porque os homens do mundo é que se preocupam com todas estas coisas. Mas vosso Pai bem sabe que precisais de tudo isso.” (Lucas XII, 22-30)

Outros ensinamentos dizem respeito à necessidade da oração (Lucas XXII, 40; VI, 28), à oração em seu nome (João XIV, 13-14), à oração de petição (Mateus V, 44; VII, 7), à humildade (Lucas XVIII, 9-14 e à perseverança (Lucas XI, 5-13).

Mas o ensinamento mais original e importante é o que se refere ao próprio conteúdo da oração. Esse conteúdo está condensado numa palavra: Abba, Pai!, expressão da relação filial a título único entre o Filho Jesus Cristo e o Pai. A revelação dessa relação foi seguida da doação do Espírito Santo, que torna possível a filiação divina adotiva e que todos os discípulos do Divino Mestre possam invocar a Deus. Por isso, o Pai-Nosso é o supremo modelo da oração cristã.

“Um dia, num certo lugar, estava Jesus a rezar. Terminando a oração, disse-lhe um de seus discípulos: Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos. Disse-lhes ele, então: Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja o vosso nome; venha o vosso Reino; dai-nos hoje o pão necessário ao nosso sustento; perdoai-nos os nossos pecados, pois também nós perdoamos àqueles que nos ofenderam; e não nos deixeis cair em tentação.” (Lucas XI, 1-4)

A Didaché, em fins do século I, é testemunha da substituição do Shemá pelo Pai-Nosso nos círculos judeu-católicos, também três vezes ao dia.

“Também não rezeis como os hipócritas, mas como o Senhor mandou no seu Evangelho: Nosso Pai no céu, que teu nome seja santificado, que teu reino venha, que tua vontade seja feita na terra, assim como no céu; dá-nos hoje o pão necessário (cotidiano), perdoa a nossa ofensa assim como nós perdoamos aos que nos têm ofendido e não nos deixeis cair em tentação, mas livra-nos do mal, pois teu é o poder e a glória pelos séculos.

Assim rezai três vezes por dia.” (Didaché 8, 2-3)

A oração na Igreja primitiva

Os Apóstolos, instruídos pelo Senhor depois da Ressurreição (Atos I, 3), também ensinaram a orar e organizaram no Espírito de Jesus a oração das primeiras comunidades da Igreja. Desde os primeiros momentos a “perseverança nas orações” foi uma característica da comunidade que se transformou em Pentecostes.

“Perseveravam eles na doutrina dos apóstolos, na reunião em comum, na fração do pão e nas orações.” (Atos II, 42)

Como Nosso Senhor, os primeiros cristãos acorriam ao Templo e à sinagoga, embora depois celebrassem a “fração do pão” em suas casas.

“Unidos de coração freqüentavam todos os dias o templo. Partiam o pão nas casas e tomavam a comida com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e cativando a simpatia de todo o povo. E o Senhor cada dia lhes ajuntava outros que estavam a caminho da salvação.” (Atos II, 46-47)

Observavam o costume de rezar privadamente ou em comum no cômodo principal, em certas horas do dia e também da noite.

“Refletiu um momento e dirigiu-se para a casa de Maria, mãe de João, que tem por sobrenome Marcos, onde muitos se tinham reunido e faziam oração.” (Atos XII, 12)

“Pela meia-noite, Paulo e Silas rezavam e cantavam um hino a Deus, e os prisioneiros os escutavam.” (Atos XVI, 25)

A oração era dirigida geralmente ao Pai celestial. Mas com o passar do tempo sobreveio na comunidade eclesial a consciência de que o Divino Mestre não somente é mediador e “lugar” único para adorar o Pai em Espírito e verdade (João II, 19-22, IV, 23-24), mas também termo da oração cristã. Exemplo disso são as doxologias, os agradecimentos ao Pai pela obra realizada em Cristo, e os hinos cristológicos.

A Liturgia das Horas na história

A história do Ofício Divino significa a perseguição, ao longo dos séculos, do ideal (Lucas XVIII, 1):

“É preciso orar sempre.”

As primeiras tentativas de organização (séculos I– IV)

Os primeiros séculos da história católica oferecem pouquíssima informação sobre a oração em certas horas. Contudo, sabe-se que a Missa dominical acabou tendo uma vigília estendida, que consistia em leituras e cantos de Salmos.

A partir do século III os testemunhos são cada vez mais abundantes e mencionam, junto com os ofícios matutino e vespertino, sem dúvida comunitários, as horas terça, sexta e nona, fixas e determinadas na recordação da Santíssima Trindade e em memória dos momentos da Paixão de Cristo e de alguns acontecimentos narrados nos Atos dos Apóstolos.

Na etapa que se seguiu à paz de Constantino o desenvolvimento do Ofício foi favorecido. Dois foram os modelos organizados:

1. O eclesial: celebrado nas catedrais e paróquias, era centrado nas celebrações da manhã e da tarde, isto é, nas laudes e nas vésperas presididas pelo bispo ou por um presbítero, com assistência do restante do clero e do povo.

2. O monástico: marcado pelo desejo de dedicar o maior tempo possível do dia à oração, seguindo os conselhos evangélicos e buscando o equilíbrio entre a oração e o trabalho. Assim, foram introduzidas, junto com as laudes e as vésperas e as horas intermediárias, a hora prima, as completas e as vigílias noturnas.

Finalmente, a organização monástica configurou todo o Ofício.

Detalhando o desenvolvimento monástico

Para os estudiosos, a oração que precedia a Eucaristia pós-apostólica, eventualmente, ficou organizada em quatro partes: uma que acabou originando a parte preparatória do Sacrifício (a Missa dos Catecúmenos do rito gregoriano), uma que se tornou as Vésperas do final da tarde, uma da qual nasceu as Matinas da meia noite e, finalmente, uma que se tornou as Laudes do começo da manhã. Esse grupo, originalmente noturno, constituiu as “Grandes Horas”, as outras cinco, as “Horas Menores”. As Matinas poderiam ser chamadas de “pai de todas as horas” e as Vésperas e Laudes de “irmãs gêmeas”, dada sua estrutura similar.

Mais tarde, o grupo diurno, Terça, Sexta e Noa foi instituído para a santificação ao longo do dia. Elas também são como gêmeas por terem uma estrutura idêntica.

Por fim, as Completas e a Prima foram criadas para servirem de oração noturna e matutina no dormitório. Elas ainda mantém um sabor monástico maior que as outras horas e podem ser consideradas um irmão e uma irmã, pois embora sejam semelhantes, não possuem uma estrutura idêntica.

Desse modo, originalmente, as horas do Ofício tinham uma correspondência com as horas do dia (segundo nossos parâmetros) um tanto diversa da que hoje possuem.

Nas minhas pesquisas encontrei a seguinte tabela:

Matinas – meia-noite

Laudes – 3 da madrugada

Prima – 6 da manhã

Terça – 9 da manhã

Sexta – meio-dia

Vésperas – 6 da tarde

Completas – 9 da noite

Ela não faz referência à Noa.

Ainda segundo essa mesma fonte, após alguns séculos, as horas adquiriram a seguinte configuração nas casas religiosas:

Matinas e Laudes – 2 e 3 da madrugada

Prima – ao se acordar

Terça – 9 da manhã

Sexta – meio-dia

Noa – 3 da tarde

Vésperas – ao anoitecer

Completas – antes de dormir

Comentando

Como se pode notar, no apanhado que fiz, há uma certa falta de sistemática na consideração do surgimento das horas. Todavia, acredito que a seguinte ordem é plausível:

1) Laudes e Vésperas

2) Matinas

3) Terça, Sexta e Noa

4) Completas

5) Prima

Sete vezes por dia eu Vos louvei, no meio da noite me levantei para Vos louvar.

Por fim, o esquema ficou assim:

Matinas (com seus três noturnos) – durante a noite

Laudes – 5 da manhã

Prima – 7 da manhã

Terça – 9 da manhã

Sexta – meio-dia

Noa – 3 da tarde

Vésperas – 5 da tarde

Completas – 8 da noite

OBS:

1) Em alguns ritos orientais (como o siríaco) o modelo eclesial, com duas horas, é que se consolidou como referência.

2) No modelo eclesial também se conhecia a oração noturna e as orações ao longo do dia, só que, em geral, elas não eram litúrgicas, posto que não assumidas pela igreja local sob a autoridade do bispo.

Do Ofício completo e solene ao Ofício particular

Nos séculos VI-IX o Ofício era a oração da Igreja local, do clero e do povo. Quando ainda não se havia generalizado a celebração diária da Eucaristia, as horas do Ofício serviam para a santificação dos dias da semana. Aconteceu, então, uma grande criação de elementos não-bíblicos: antífonas, hinos, responsórios e orações, paralela à que acontecia na Missa e nos ritos dos sacramentos.

Durante esses anos, as liturgias receberam sua estrutura definitiva.

Nós sabemos pouco sobre o Ofício Romano primitivo, mas podemos distinguir entre os das igrejas presbiterais e os das basílicas (cuidadas por comunidades mais ou menos regulares). Esse último Ofício serviu, provavelmente, de modelo ao da Regra de São Bento. Nessas comunidades das basílicas, o Ofício era composto de Salmos, antífonas, leituras da Sagrada Escritura e dos Padres, responsórios, e, em certas igrejas, como nos mosteiros, de hinos. Também nesse tempo, os aniversários dos mártires e confessores começaram a ser celebrados nas suas tumbas por meio de um Ofício votivo sem relação com o Ofício do dia.

A partir de tal base, no tempo de São Gregório Magno, a liturgia das basílicas foi aperfeiçoada (lecionário das Matinas e música para as antífonas e responsórios), ganhando sua estrutura essencial (até o pós-Vaticano II) e se espalhou para o resto de Roma e além: a Gália, a Inglaterra e a Alemanha. O Ofício das basílicas romanas tendia a virar o Ofício do clero nos diferentes países.

Pelo meio do século VIII, o curso completo das Horas, incluindo as Matinas, se tornou a prática geral, e os clérigos foram obrigados a participar dela inteiramente. O tipo de vida canônica necessária para essa celebração recebeu sua organização principalmente de São Chrodegang e do Concílio de Aix-la-Chapelle. Com Pepino, o Pequeno, a monarquia franca favoreceu e, mais tarde, Carlos Magno impôs ao seu Império, os usos romanos. Amalario e a schola cantorum da diocese de Metz tiveram um papel importante na correção e difusão do Antifonário romano.

Desse modo, com seu conteúdo fixado, a Liturgia das Horas cantada pelas comunidades, monásticas ou diocesanas, era solene na sua forma e requeria muitos livros (o Psalterium, o Antiphonale, o Collectarium, o Hymnarium, o Lectionarium, etc.) e ministros (que desempenhavam papéis diferentes durante a celebração); a congregação participava recitando Salmos e respostas decorados ou respondendo aos Salmos por refrãos. Nesse quadro, adaptações e adições passaram a ocorrer (como Salmos suplementares para cada Hora, Ofícios para a Virgem e os defuntos, comemorações diversas, preces, etc.).

Tudo isso, apesar das boas intenções, foi um desastre. As complicações nas rubricas, a quantidade de livros e o tempo necessários para se celebrar as Horas acabou afastando o clero dedicado ao cuidado direto das almas do Ofício (quanto ao povo, nem se fala). A decadência era patente e já no século X apareceram tentativas de reforma (com a redução da salmodia e das leituras nas Matinas).

Desse modo, foi natural que surgisse o Breviário.

Ela era uma experiência de juntar todas as partes do Ofício num formato “breve” – um ou mais volumes com todos os elementos dispostos numa seqüência racional. Encontramos os primeiros Breviários compilados pelos monges de Monte Cassino nos século X e XI. Embora certos Breviários mais antigos incluam alguns elementos musicais do Ofício, no geral, eles só continham o texto (enquanto os elementos musicais ficavam em outros livros, como o Antiphonale).

Mas a verdadeira difusão do Breviário só veio com seu uso pela Curia papal e, mais tarde, pela sua adoção pelos mendicantes, em especial os franciscanos.

A solução praticada na capela do Palácio de Latrão, em Roma, de usar uma abreviação (aprovada por Inocêncio III) dos livros litúrgicos empregados na Basílica foi imitada em outros lugares. O exemplar mais antigo, conhecido como Breviário de Santa Clara, se intitula assim: Incipit ordo et officium breviarii ecclesiae Curiae, quem consuevimus observare tempore Inocentii tertii papae el aliorum pontificum. Esse breviário, adotado por São Francisco em 1223 (dada sua portabilidade) e revisado por Haymo de Faversham (geral da ordem em 1240), com a imprensa, se espalhou por toda a Europa (os breviários não-romanos acabaram com sua publicação proibida).

No Breviário da Curia Romana poucas mudanças foram feitas nos textos antigos, mas numerosas seções ad libitum desapareceram. Além disso, novas tendências na vida espiritual tiveram grande influência no seu desenvolvimento posterior; elas se manifestaram na multiplicação das festas e legendas históricas e na diminuição do número de leituras e de outros elementos.

Todavia, a vantagem real do livro litúrgico único trouxe consigo o inconveniente da introdução da recitação particular. Já no século XIII canonistas e teólogos passaram a justificar a prática da recitação privada e o que no começo foi exceção se transformou em norma.

Mais tarde, no século XV, como conseqüência da Devotio Moderna, acentuou-se na espiritualidade sacerdotal a orientação intimista e subjetiva, que tendia a fazer da própria Missa e do Ofício o cumprimento de uma obrigação pessoal. Desse modo, as ordens e as congregações religiosas que foram fundadas a partir do século XVI não tinham o Ofício Divino como oração comum. E, por outro lado, a introdução das vigílias, oitavas, comemorações e ofícios duplos e semiduplos complicou novamente a celebração das Horas.

O sentimento de que uma reforma profunda devia ocorrer voltou a crescer.

Tentativas de renovação

Fazia-se necessária uma renovação do Ofício. Esse sentimento não atingia apenas o clero, obrigado a ele, mas os leigos mais instruídos também se incomodavam com a maneira como as coisas estavam; daí a multiplicação de “Pequenos Breviários” para os fiéis.

Nesse clima, surgiram algumas iniciativas mais ou menos efêmeras, como uma levada a cabo pelos teatinos, e uma que teve mais impacto, feita pelo cardeal Quiñones.

O “Breviarium Sanctae Crucis”

O Papa Clemente VII, que tinha como um dos programas de seu governo a reorganização da oração oficial, encomendou ao espanhol Francisco Quiñones, cardeal da Santa Cruz, de Jerusalém, e ex-geral dos franciscanos, o encargo de reformar as Horas, reconduzindo-as, até onde fosse possível, à sua forma antiga e, mantendo-se fiel aos princípios que marcaram o Ofício ao longo do tempo, suprimir pontos complicados e prolixos (de maneira que os clérigos não tivessem mais desculpas para descuidar da Liturgia das Horas).

Quiñones iniciou seu trabalho em 1529 e com a ajuda de Diego Meyla e Gaspar de Castro, terminou sua tarefa em 1534, pouco antes da morte do Papa; mas não o publicou até 1535, acompanhado de um breve do novo Pontífice, Paulo III. O autor o apresentou como um projeto, intitulado: Breviarium romanum ex sacra potissimum Scriptura et probatis Sanctorum historiis, collectum et concinnatum.

A acolhida do clero, em geral, foi muito positiva. As críticas e censuras feitas, no geral pelo teólogos da Sorbone, em Paris, foram levadas em conta pelo cardeal para a segunda edição do seu Breviário, a definitiva, saída em julho de 1536, com uma aprovação de Paulo III que permitia seu uso para a recitação privada por sacerdotes que tinham obtido autorização da Santa Sé. Isso respondia plenamente ao critério usado por Quiñones na sua compilação: ela não devia servir para o uso público, em igrejas, mas só para os clérigos que já estavam obrigados à recitação individual.

Conforme isso, suprimiu todas as partes do Ofício que derivavam sua origem ou tinham em vista o uso público, ou seja, as antífonas, os versículos, os responsórios, as lições breves e os capítulos, conservando apenas alguns hinos e uma parte das antífonas dos noturnos das Matinas.

Em relação à estrutura do novo Breviário, podemos destacar:

a) Uma nova distribuição dos Salmos, de maneira que em cada semana se pudesse recitar o saltério inteiro sem nenhuma repetição. Para isso, em cada hora canônica, não excluídas as Matinas, havia apenas três Salmos; mas nas Laudes, em lugar do terceiro Salmo, se devia ler um cântico. Segundo a tradição, o cântico das Laudes era o Benedictus, o das Vésperas o Magnificat e os das Completas o Nuc dimittis. Finalmente, tanto nas festas de Nosso Senhor quanto nas da Santíssima Virgem, embora de primeira classe, se deviam recitar os Salmos assinalados no saltério para o dia em que caia a comemoração. Assim, por exemplo, se a Assunção cai numa sexta-feira, nas Matinas se dizia os Salmos 21 (Deus, Deus meus, respice…), o 68 (Salvum me fac) e o 70 (In te speravi…), que expressam as tristezas e amarguras da Paixão.

b) A reforma das lições da Sagrada Escritura, de modo que se lessem no curso do ano todos os livros ao menos em suas partes principais. Desse modo, as lições, mesmo reduzidas a três, no único noturno, eram bem maiores que as do futuro Breviário tridentino. A primeira era tomada do Antigo Testamento, a segunda do Novo testamento e a terceira variava: nas festas dos Santos era algo sobre suas vidas e nos domingos, férias e festas de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem era uma leitura dos Padres correspondente ao Evangelho da Missa correspondente. No que se refere as lições históricas dos Santos, o cardeal teve o cuidado de descartar tudo quanto tinha sabor de lenda, levando em conta o estado da crítica histórica no seu tempo.

c) A abreviação do Ofício, de modo que sua duração, no máximo possível, resultasse uniforme em cada dia da semana (a antiga Liturgia das Horas era muito maior no domingo). Para tanto suprimiu uma série de coisas, mas eu não posso relacionar quais pois não entendi a colocação sobre isso na fonte em que estou pesquisando (M. Righetti, Historia de la Liturgia. Tomo I. Madrid, BAC, 1955, n. 349, pp. 1144-1147). Quem puder, pode tentar:

Abrevió el oficio, de manera que su duración, en cuanto fuese posible, resultase uniforme en cada día de la semana, porque el antiguo oficio era mucho más largo el domingo que los otros días de la semana. Suprimió los salmos y los oficios adicionales, substituyendo al pequeño oficio de la Virgen una simple conmemoración, y al oficio de los difuntos, la fórmula todavía en uso: Et fidelium animae…

A boa acolhida do Breviarium Sanctae Crucis pode ser atestada pelo fato de que, entre 1536 e 1558, quando Paulo IV proibiu sua reimpressão, ele teve mais de 100 edições, com milhares de cópias cada. Essa grande aceitação se explica, especialmente, pela elegância da forma, que o fazia aceitável pelos mais calorosos humanistas, e por sua brevidade, que, por um lado, o tornava compatível com a tibieza de muitos, e, por outro, não desagradava aos piedosos que tinham pouco tempo disponível devido aos deveres de seu ministério. O Breviário de Quiñones contribiu para fazer ainda mais freqüente entre os sacerdotes a recitação privada do Ofício (mesmo que não tenham faltado catedrais e mosteiros que o adotaram para a recitação colegial).

Todavia, é preciso reconhecer que pessoas sábias e experimentadas não dissimularam sua reprovação, como Domingo Soto e Juan de Arce, consultores do Concílio de Trento. Para eles o novo Breviário continha uma reação demasiada às venerandas tradições que a oração litúrgica da Igreja seguia a mais de 12 séculos. Além disso, o critério adotado por Quiñones (sugerido, diga-se de passagem, por Clemente VII) de propor um formulário de oração para o uso privado, parecia que tirava da recitação particular seu caráter oficial – o que era uma crítica infundada, pois um Breviário, seja que forma assuma, é oração pública da Igreja devido a delegação que ela dá a seus ministros.

Com a reforma piana, que aboliu qualquer rito da Missa ou versão do Ofício com menos de 200 anos, a obra do cardeal Quiñones foi abandonada, mas influenciou a Oração Matutina e a Vespertina do clássico Livro de Oração Comum anglicano (versão brasileira de 1950):

Ordem para a Oração Matutina

Ordem para a Oração Vespertina

Breviarium Pianum

Como a obra de Quiñones encontrou a resistência descrita, a questão da reforma do Breviário ficou em aberto, mas alguma tinha de ser feita (tanto que as propostas mais ridículas possíveis, em especial vindas dos “humanistas”, ganharam certo destaque – como uma que pedia a substituição das leituras dos Padres pela dos autores clássicos), seja pelos motivos que eu já citei ao longo desses posts, seja porque o santoral continuava a crescer, obscurecendo a centralidade dos mistérios da vida de Cristo no Ofício.

Desse modo, São Pio V, em 1568, de acordo com a reforma proposta pelo Concílio de Trento, impôs um novo Breviário universalmente (só respeitando, como já foi dito, os existentes a mais de 200 anos). A comissão que formulou o novo esquema do Ofício se guiou pelos seguintes princípios:

1) Não inventar um novo Breviário.

2) Ser guiada pela tradição eclesiástica.

3) Manter tudo de bom que foi adicionado ao longo do tempo, mas, ao mesmo tempo, corrigir os inúmeros erros que levantavam tantas reclamações.

Seguindo essas linhas, a nova Liturgia das Horas foi caracterizado pela redução do calendário, da hora da Prima, das preces e dos ofícios suplementares e que, com as inovações da imprensa, teve rápida difusão. O Saltério, foco do Ofício, foi valorizado novamente (da maneira que estava a recitação semanal era quase impossível e certos Salmos nunca eram recitados) e as legendas dos Santos e as homilias foram cuidadosamente revisadas.

Com o passar dos séculos, o Breviário tridentino passou por pequenas modificações.

A principal delas começou durante o pontificado de Sixto V (e terminou sob Clemente VIII), consistindo na mudança dos textos bíblicos, que adotaram a Vulgata revisada, e emendas nas rubricas: ao Comum dos Santos foi adicionada a das Santas Mulheres não Virgens, o rito de certas festas foi alterado e algumas festas adicionadas. A Bula Cum Ecclesia que aplicou as alterações é datada de 10 de maio de 1602.

Outro conjunto de mudanças foi promovido por Urbano VIII. Ele nomeou uma comissão que revisou as lições e homilias segundo os manuscritos mais antigos. Até aí tudo bem, só que esse Papa acabou indo muito além, pois, como humanista e poeta, ele considerava o Breviário com um estilo trivial e uma prosódia irregular, e acabou decidindo por uma grande revisão gramatical (segundo os parâmetros clássicos) e métrica. As correções feitas pelos puristas de sua equipe (no geral, jesuítas) chegaram ao número de 952, alterando profundamente o caráter de alguns hinos que, embora ganhassem um estilo mais literário, perderam boa parte de seu antigo charme e fervor.

Essa revisão acabou sendo muito criticada, pelo desrespeito aos antigos textos, como se a pureza gramatical pudesse substituir o sabor do latim expressado por um Ambrósio, Prudentius, Sedulius, Sidonius Apollinaris, Paulinos de Aquileia ou Venantius Fortunatus. E até o latim mais bárbaro de um Rhabanus Maurus tem sua razão de ser.

Qualquer semelhança com as opções de certas “reformas” pós-Vaticano II não é mera coincidência.

O estrago só não foi maior porque os revisores, ao se depararem com um número imenso de hinos que para eles tinham pouco valor poético (o interessante é que os progressos na filologia demonstraram que os hinos “corrigidos” seguiam regras rítmicas, só que, na época, elas ainda não tinham sido sistematizadas – um claro exemplo do que o formalismo pode fazer com a liturgia), mas já eram lugar comum na cultura católica, decidiram por uma via média, não os eliminando ou substituindo.

Nada foi feito após Urbano VIII, a não ser a adição de novos ofícios, fazendo, novamente, a comemoração dos Santos ganhar espaço.

Todavia, entre ele e a reforma de São Pio X encontramos uma grande confusão que passarei a abordar em seguida.

Breviários de espírito galicano e/ou jansenista

Na metade do século XVIII, encontramos outra tentativa de reforma ampla.

Inicialmente, o Breviário romano revisado por São Pio V foi recebido na França sem oposição. Contudo, no reinado de Luiz XIV, o espírito de resistência e antagonismo a Roma inspirou idéias tendentes a modificar o Ofício. Elas vieram dos partidos que faziam profissão pública do galicanismo e do jansenismo (que não são a mesma coisa) e, deve-se ressaltar, não eram de todo negativas (numa perspectiva objetiva).

Um dos primeiros esquemas modificativos foi o do chamado “Breviário de Paris”, publicado em 1680. Nele a história dos Santos e as homilias foram corrigidas e muitas outras partes sofreram pequenas alterações. Em 1736 a diocese de Paris lançou outro Breviário (que ficou em uso até a metade do século XIX), fruto do trabalho (pelo menos em parte) de jansenistas e influenciado pelo de Quiñones. Embora tal versão do Ofício não pretendesse ser ideal, acabou relegando muitas tradições litúrgicas.

Em outras dioceses da França breviários produzidos com os mesmos pressupostos foram postos em uso.

A baderna francesa teve reflexo em outros países (Itália e Alemanha).

Uma reação a tudo isso surgiu entre 1830 e 1840, inspirada pelo trabalho do eminente liturgista D. Guérranger, Abade de Solesmes, que, nas suas Instituições Litúrgicas, expôs os erros de construção desses breviários e provou que seus autores agiram sem mandato. Os argumentos apresentados tiveram tanto sucesso que, em 20 anos, um grande número de dioceses deixou de usar sua Liturgia das Horas galicana: em 1791, 80 dioceses tinham abandonado a liturgia romana; em 1875 Orléans foi a última a voltar ao uso romano.

Fora da França também teve lugar um processo semelhante de volta à unidade litúrgica.

Em Roma

Enquanto jansenistas e galicanos criavam uma nova liturgia, Bento XIV, seguindo e exemplo de seus antecessores, determinou uma reforma cuidadosa do Breviário. Para isso uma congregação especial foi instituída, mas, embora o trabalho dela tenha sido de reconhecido valor (servindo de parâmetro para estudos futuros), na prática, deu em nada. Pio VI, Pio IX e Leão XIII também tentaram, sem sucesso, colocar a reforma do Ofício como objetivo de seus reinados.

Só São Pio X conseguiu efetivar esse intento.

A reforma de São Pio X

Dentro desse quadro, ao sucessor de Leão XIII pareceu que o tempo da reforma tinha chegado.

Pela Constituição Apostólica Divino Afflatu, de 1 de novembro de 1911, São Pio X fez uma mudança no Saltério do Breviário Romano. Os Salmos foram impressos juntos e distribuídos de maneira que possam ser recitados ou cantados a cada semana (quando muito longos, foram divididos, para que cada dia do Ofício tenha aproximadamente o mesmo número de versos). Desse modo, restaurava-se o uso original da Liturgia das Horas romana, novamente alterado pelo crescimento das comemorações dos santos desde o tridentino, que fazia alguns salmos serem recitados raramente.

As porções do Ofício que requerem rubricas, ao invés de serem impressas junto com os Salmos, como os invitatórios, os hinos para as diferentes épocas, bênçãos, absolvições, capítulos, sufrágios, preces dominicais, o Benedictus, o Magnificat, o Te Deum, etc., passaram a ter um lugar próprio sob o nome de Ordinário.

Infelizmente, a reforma não pôde ser completa e uma comissão especial foi formada para o exame do calendário, a revisão histórica das lições, a retirada das lições não autenticadas, a correção dos textos, novas rubricas gerais e um Comum para certas classes de santos, como os confessores, santas mulheres e outros, em ordem a comemorar todos num dia, ao invés de um dia para cada.

Mudanças pós-São Pio X e até o Ofício Paulino

Entre essa última reforma e a Liturgia das Horas do rito de Paulo VI uma série de modificações (em especial sob João XXIII) ocorreu no Ofício romano tradicional (elas são muito criticadas pelos tradicionalistas mais radicais que, até hoje, usam o Breviário segundo as rubricas de São Pio X).

Primeiramente, em 1945, no reinado de Pio XII, uma nova versão do Saltério latino, feito pelo Pontifício Instituto Bíblico, foi difundida. A recepção dela foi péssima, tanto que alguns editores adotaram a tal versão e outros não (em livros maiores, como num Pontifical da metade dos anos 50 que tive em mãos, os Salmos foram publicados nas duas versões, em colunas paralelas, para o celebrante escolher a que lhe agradava mais).

No que se refere ao reinado de João XXIII, podemos destacar as seguintes modificações:

1. Redução das Matinas a três lições na maioria dos dias. Isso reduziu em 1/3 as porções da Sagrada Escritura, 2/3 das vidas dos Santos e boa parte dos comentários dos Padres (as Matinas, é claro, formavam uma boa parte do Ofício).

2. Substituição de formulas eclesiásticas por fórmulas de estilo escriturístico.

3. Remoção das festas dos Santos do domingo. Das 32 que a reforma de São Pio X previa, apenas nove ficaram (duas de São José, três de Nossa Senhora, a de São João Batista, a dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, a de São Miguel e a de Todos os Santos).

4. Preferência do ofício ferial sobre as festas dos Santos. João XXIII suprimiu 10 festas do calendário (onze na Itália, com a festa de Nossa Senhora de Loreto), reduziu a classificação de 29 festas e transformou 9 festas em simples comemorações (assim, o ofício ferial podia tomar precedência). Quase todas as oitavas e vigílias foram abolidas e outros 24 dias em memória de Santos foram substituídos pelo ofício ferial. Com as novas regras para a Quaresma (que só manteve as festas de primeira e segunda classe) nove festas (como a de Santo Tomás de Aquino, a de São Gregório, São Patrício, São Gabriel, etc) , embora no calendário, nunca eram celebradas.

5. Vários milagres foram retirados da biografia dos Santos e várias festas foram supressas por não se adequarem à chamada crítica histórica.

6. Uma das duas festas da Cátedra de São Pedro foi abolida (18 de Janeiro), bem como a oitava de São Pedro.

7. Reforma da quinta-feira santa, da sexta-feira santa e do sábado santo (mas não sei os detalhes).

8. As rubricas de João XXIII obrigavam o sacerdote, quando recitando em privado, a dizer Domine exaudi orationem meam ao invés de Dominus vobiscum.

9. Fim das longas petições chamadas preces e de alguns outros elementos como as Antífonas de Nossa Senhora e o Credo Atanasiano.

Como se pode notar, as reformas de João XXIII procuraram deixar o Breviário mais curto e sem repetições. Alguns críticos dizem que isso é um sinal da influência do liturgicismo, que refletiria os parâmetros anteriormente rejeitados de Quiñones e dos breviários galicanos e jansenistas . Todavia, como vimos, uma linha de reflexão que observa no tamanho desmedido do Ofício um desvio de seu sentido original é algo constante na vida da Igreja (o que ocorre é que, talvez, João XXIII tenha passado dos limites).

A Reforma do Ofício após o Vaticano II

Para entender a reforma que o Concílio Vaticano II pediu para o Ofício e o que, de fato, foi feito, a leitura dos seguintes documentos é imprescindível:

1. Sacrosanctum Concilium (de 4 dezembro de 1963), capítulo IV, artigos 83-101.

2. A Constituição Apostólica Laudatis canticum (de 1 de novembro de 1970).

3. A Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas.

Em primeiro lugar, devemos notar que o Vaticano II tinha em vista uma revisão do Ofício que levasse em conta uma pessoa engajada num trabalho pastoral ativo, que não celebra as Horas num coro.

Levando isso em conta e remetendo ao que falei no começo deste estudo, é bom saber que durante o Concílio duas tendências entraram em confronto: uma (representada especialmente por bispos do “Terceiro Mundo”) que pretendia a valorização do modelo eclesial (que possui um ethos instrutivo) e outra que, admitindo modificações, não abria mão do modelo monástico (de caráter eminentemente cultual). Os beneditinos, a despeito de seu número reduzido, conseguiram que o modelo monástico fosse mantido como parâmetro para toda a Liturgia das Horas (com seus agradecimentos e intersessões); um Ofício cultual foi considerado a melhor ferramenta apostólica.

Sendo assim, a noção de santificação de vários momentos do dia foi mantida, embora a Prima tenha sido abolida, as Matinas (vigílias) terem se transformado no Ofício de Leituras (que, fora do contexto monástico, pode ser recitado a qualquer hora do dia) e das três “Horas Menores” apenas uma poder ser escolhida (isso, também, fora de um contexto monástico). Os “momentos” obrigatórios, portanto, passaram de oito para cinco (só que um pode ser recitado quando for mais conveniente).

Agora, o partido em favor do modelo eclesial não perdeu totalmente, pois as Laudes (oração da manhã) e as Vésperas (oração do anoitecer) foram valorizadas. A oração da manhã celebra as duas criações, a segundo a natureza e a segundo a graça; a do anoitecer reflete sobre a presença de Deus na nossa vida. Essas duas horas foram chamadas “os dois polos do Ofício quotidiano” (SC 89a).

Seguindo, ainda, a via monástica, a reforma pós-conciliar manteve a abrangência de todo o Saltério no Ofício (no modelo eclesial é evidente que isso não se dá), só que, fugindo do uso romano, o novo ciclo é de quatro semanas. Desse modo, nem uma hora tem mais de três Salmos ou três seções de um Salmo (no Breviário tradicional podem ser até cinco).

Uma grande atenção foi dada à seleção e distribuição das porções da Sagrada Escritura (retirados da Neo Vulgata) , bem como aos escritos dos Padres e de outros autores eclesiásticos.

O destaque da Escritura é mais um ponto de contato com o modelo monástico, visto que os monges sempre possuíram uma leitura contínua da Bíblia junto à Liturgia das Horas. No Ofício de Leituras temos uma boa oferta de trechos bíblicos e há um suplemento opcional (não sei se existe em português) que estabelece um ciclo bianual de leituras de passagens bíblicas que raramente encontramos na liturgia.

Já os textos dos Padres e dos outros autores que dedicaram suas vidas a edificação da Igreja militante, e que possuem um inestimável valor catequético, litúrgico, poético, místico e pastoral, sofreram um aumento cuidadoso e passaram a incluir uma quantidade maior de autores orientais.

Os hinos também foram revisados e, em muitos casos (em latim), restaurados à sua forma pré-Urbano VIII (embora alguns deles tenham sido encurtados).

Em relação à vida dos Santos, o conteúdo foi revisado segundo os padrões históricos vigentes nos nossos dias (para alguns, aqui houve uma abertura ao naturalismo).

Como dissemos, agradecimentos e intersessões são a base do Ofício, mas o elemento contemplativo não foi esquecido. No que se refere aos Salmos, por exemplo, o título de alguns deles (como o 86) e o versículo do Novo Testamento que os acompanha foram cuidadosamente escolhidos para incentivar a meditação. O mesmo se diga da manutenção das antífonas e da pausa opcional após a recitação de um Salmo. A oração que muitas vezes segue um Salmo acompanha esse esforço de incentivo a reflexão; ela tem origem numa prática dos monges orientais que, após a recitação, prostravam-se em silêncio, para adicionar a contemplação à sua oração vocal, o silêncio, então, era quebrado por uma pequena oração que vinculava o Salmo recitado ao Mistério de Cristo e/ou da Igreja.

Por fim, como novidades temos as orações de intercessão que acompanham as Laudes e as Vésperas e a oração do Pai Nosso ao final delas (com várias maneiras de ser introduzida), o que, junto com a oração na Missa, promove a repetição do Pai Nosso três vezes ao dia, uma prática da Igreja primitiva.

Comentário

A reforma pós-Conciliar do Ofício foi feliz em vários pontos, em especial na recuperação de um maior número de leituras dos Padres e da Escritura, perdidos pelas mudanças de João XXIII, e por buscar mecanismos que ajudam sua recitação pelo fiel comum (eu, particularmente, acho que ela podia ainda ser mais simples).

Por outro lado, a crítica histórica na vida dos Santos, a tradução da Neo Vulgata (que, mesmo em latim, para muitos, tornou o texto de vários Salmos efeminados e politicamente corretos) e o ciclo mensal do Saltério são modificações que, no mínimo, devem ser melhor discutidas.

Conclusão

Ao longo da História vimos como, na “consciência da Igreja”, a importância do Ofício nunca deixou de ser lembrada (mesmo quando isso só tinha um valor formal) e também notamos como certos problemas se repetem pelos séculos.

Agora, com a convivência, no Ocidente, de duas grandes versões Ofício adaptadas à mentalidade moderna (a tradicional, segundo as rubricas de João XXIII, e a pós-Vaticano II – pelo menos oficialmente pois, como disse, o Breviário de São Pio X tem muitos entusiastas), acho que não há desculpa para que um trabalho pastoral que vise sua divulgação não seja feito.

Bibliografia

Só para se ter uma idéia, sem seguir nenhuma regra da ABNT:

A Liturgia na Igreja, Julian Lopez Martin (Paulinas).

Breviarium Romanum ex decreto Sacrosancti Concilii Tridentine, pars aestiva, 1922 (Ratisbonae).

Enciclopédia Católica (Catholic Encyclopedia) 1917: verbete Breviary e Reform of the Roman Breviary.

Enciclopédia Católica (Catholic Encyclopedia) 1967: verbetes Quinõnes, Francisco; Roman Divine Office e Roman Breviary.

Historia de la Liturgia, Tomo I, M. Righetti, 1955 (BAC) in Enciclopédia Franciscana: verbete Francisco de Quiñones.

Liturgia diária das Horas, setembro de 2008 (Paulus).

Liturgical Revolution, Pe. Francesco Ricossa (The Roman Catholic, February–April 1987)

Liturgy of the Hours, dia 2 de outubro, 3:23h.

Livro da Oração Comum

Missal Quotidiano e Vesperal D. Gaspar Lefebvre, 1936 (Desclée de Brouwer & Cie).

Some Essential Elements of the Vatican II Renewal of the Liturgy of the Hours, Rev. Sam Anthony Morello, O.C.D., STL, 1983.

The Divine Office — Its History and Development

The Saint Mark´s Lion (unofficial news letter of Saint Mark´s Parish, Denver, Colorado – uma paróquia ortodoxa de rito ocidental pertencente à Igreja Ortodoxa Antioquena ) maio de 2003, volume CXXVIII, nº 5.

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Espiritualidade Pastoral

Combatendo os escrúpulos

Sinais de que a pessoa é escrupulosa

1) Medo de estar cometendo pecados ao fazer coisas que mesmo pessoas devotas não consideram uma ofensa a Deus.

2) Freqüentemente mudar a opinião por razões triviais (ou por nenhuma razão) sobre se algo é pecaminoso ou não.

3) Medo constante ou ansiedade sobre o pecado, sem que se consiga descobrir uma razão exata de tal temor.

4) Medo constante sobre as próprias confissões, mesmo quando um sacerdote plenamente ortodoxo diga que não há nada de errado com elas.

5) Teimar com o padre (ortodoxo) na confissão (pensando que você está certo sobre algo ser pecaminoso e ele errado). Isso leva à busca de diferentes sacerdotes sem que se ouça, realmente, os conselhos e instruções deles.

6) Perguntar repetidamente se um ato é pecaminoso ou não, mesmo o padre já tendo respondido essa pergunta várias vezes.

7) Confessar repetidamente (“só para garantir”) coisas que o padre já explicou como não sendo contrárias à Lei Divina.

Alguns conselhos

1) Considere a escrupulosidade uma doença de que você deve se livrar com a ajuda do diretor espiritual.

2) Peça a Deus auxílio para se livrar dos escrúpulos. Faça uma prece nessa intenção diariamente.

3) Odeie os escrúpulos e atue contra eles. Não alimente pensamentos sobre o que lhe dá escrúpulos.

4) Veja Deus como Bem Supremo e Pai Amoroso.

5) Ofereça as atividades diárias pelo seu avanço em direção à vontade de Deus.

6) Nas preces diárias, agradeça a Deus por todas as coisas maravilhosas que Ele lhe deu: família, amigos, bênçãos temporais, etc. Agradeça a Ele por ser capaz de ir à Missa e receber a Comunhão. Agradeça a Ele por poder se confessar, já que esta é a maneira pela qual Ele nos mostra sua misericórdia e amor.

7) Evite a ociosidade. Quando estiver só faça algo para se distrair e ocupar a mente.

8) Deixe o padre se preocupar com você (afinal, ele foi ordenado para isso).

9) Lembre-se que só com paciência e oração a escrupolisade pode ser vencida.

10) Memorize as seguintes regras:

a. Eu devo odiar meus escrúpulos.

b. Eu posso fazer tudo que as pessoas devotas fazem.

c. Eu não cometi nenhum pecado mortal a não ser que não haja dúvida que ele foi mortal mesmo.

d. Eu só sou obrigado a confessar o que é pecado mortal.

e. Devo aceitar essas regras e seguir os conselhos do sacerdote.

Indo à Confissão

1) Examine sua consciência por não mais que cinco ou dez minutos.

2) Diga ao padre que você é escrupuloso.

3) Não mencione pecados passados, a não ser que você tenha certeza que ele foi mortal e não foi confessado antes.

4) Sempre confie no padre (mas é evidente que nos tempos atuais isso depende de se ter escolhido antes um sacerdote ortodoxo).

5) Nunca confesse um pecado duvidoso (pergunte ao padre se foi pecado ou não).

6) Se o sacerdote lhe diz que algo que você pensou, disse ou fez não é pecado, acredite e não se preocupe mais.

7) Confesse apenas as espécies e o número dos pecados mortais. Se você não sabe o numero exato, dê um aproximado.

8) Se não há pecados mortais a serem confessados, fale apenas sobre um ou dois tipos de pecados veniais cometidos.

9) Aceite o julgamento do padre sobre algo ser ou não pecado.

10) Faça o que o sacerdote recomendar.

Indo à Comunhão

1) Apenas a dúvida sobre ter cometido ou não um pecado mortal não deve lhe afastar da Santa Comunhão.

2) A menos que você tenha certeza de ter cometido um pecado mortal, faça um ato de contrição e comungue.

Finalmente

Deus é infinitamente bom e misericordioso, Ele quer que você Lhe faça companhia no Paraíso. Com a ajuda Dele a escrupolosidade será vencida.

Vá em paz.

(Fonte)
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Personalidade

Gustavo Corção – 30 anos

Do dia 20 de janeiro deste ano o professor de direito e leigo atuante José Luiz Delgado publicou um artigo no maior jornal de minha cidade (Jornal do Commercio) em lembrança dos 30 anos da morte de Gustavo Corção. Vamos a ele:

corçãoCorção – 30 anos

Somente agora, graças à lembrança de um amigo, me adverti de que há 6 meses, em julho, completaram-se 30 anos da morte de Gustavo Corção. Que passaram completamente em branco, dada a conspiração geral de silêncio contra aquele que foi, provavelmente, o mais poderoso pensador brasileiro do século 20. Pois o mundo relega ao silêncio aqueles que não o cortejam, não se entontecem com seus brilhos, não se deslumbram com seus (falsos) valores. Corção era dessa têmpera. Daqueles raros que somente se deixam fascinar pela verdade, ainda que ela incomode; somente se seduzem pelo absoluto, e por isso subestimam as coisas relativas. Daqueles nítidos, o que é insuportável para o mundo que cultua as contemporizações, os relativismos e a mediocridade, e daqueles que se dispõem ao combate, o que é inadmissível para o mundo das acomodações e das tolerâncias.

Gustavo Corção foi um dos nossos mais formidáveis escritores. Se tivesse ficado apenas no mundo, sob certa forma neutro, da literatura, estaria consagrado como um de nossos mais brilhantes intelectuais. Até no romance (ou quase-romance) se aventurou, escrevendo esse livro fascinante de inquietação que é Lições do abismo. Confessando seu gosto pelo mundo propriamente literário, dizia-se “poeta menos-do-que-menor”, ao qual algumas vezes ia vizitar “às escondidas, como um Nicodemos”, em confabulações das quais trazia “o pouco que põe vida e calor nas obras de meus compromissos”. Quando roubava a seus “deveres de estado” “um sábado de poesia e de cultura”, era capaz de se debruçar, com insuportável finura, sobre, por exemplo, o grande Machado, seu ídolo, e escrever estudos de penetrante compreensão, como o ensaio sobre o Machado cronista que a Aguilar publicou nas obras completas, ou a introdução aos romances machadianos, dos Nossos clássicos da Agir. Havia todo um Corção lírico, um Corção propriamente literário, contido, por exemplo, na excelente seleção de crônicas que Paulo Rodrigues reuniu, Conversa em sol menor – na qual se incluem as muitas notas autobiográficas que foi levado a redigir em resposta a texto infelicíssimo, de página inteira de jornal, de Abade no entando também admirável.

Mas aconteceu com Corção que, todo tomado pela conversão religiosa, deixou-se essencialmente, e quase exclusivamente, ao que chamava “seus deveres de estado”, a militância política, filosófica e religiosa. Toda sua vida intelectual consistiu fundamentalmente num combate de idéias. Foi um ardoroso, contundente, temível esgrimista, que toda gente de fato receava enfrentar. É pena que nesse combate fosse, algumas vezes, exagerado e extremado. Tanto se deslumbrava com certa verdade, que não conseguia considerar os outros lados do problema, ou algumas matizes que suavizariam as avaliações. E, pior, passava facilmente do plano das idéias – no qual era insuperável – para as críticas pessoais, formulando juízos que desconheciam as complexidades das individualidades concretas. Mas, a rigor, não havia desafeições pessoais nisso: era o amor à verdade, seu extremo amor à verdade, que o levava a atacar pessoas de quem esperava muito, ou em cuja igual fidelidade aos supremos valores ele quisera confiar.

Quem conseguir ir além dos seus excessos e da excessiva personalização das disputas, logo verá nele um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. O verdadeiro Segundo Bruxo do Cosme Velho. Grande pensador, grande crítico de idéias, grande polemista, grande escritor literário. Um dos raros pensadores de primeira linha. Sabia pensar, pensava por conta própria, sabia ir às raízes dos problemas e denunciá-las sem respeito humano algum. E como escrevia bem! Como sabia escrever! Admirável e raro intelectual capaz de realmente repensar os problemas e instigar, interpelar as inteligências. Presente no mundo, militante, combate, empenhado nas coisas deste mundo como somente pode empenhar-se quem sabe que está no mundo sem ser do mundo – que é, aliás, o curioso pano de fundo que ele, sempre arguto, descobriu nas crônicas de Machado.