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Crise Filosofia

O combate ao modernismo hoje

modernismoTradução e adaptação de um texto (Modernism Today) do Professor D. Q. McInerny, Ph.D, do Seminário Nossa Senhora de Guadalupe, da Fraternidade de São Pedro, e publicado no boletim de notícias do distrito americano dessa fraternidade em agosto do corrente ano.

O modernismo não é algo que ficou no passado. Pode-se pensar que os efeitos operados pela encíclica Pascendi Dominici Gregis escrita pelo Papa São Pio X em 1907 foram todos positivos, e que a cabeça da serpente da “síntese de todas as heresias” foi esmagada. Mas não foi isso que ocorreu. Na verdade, os modernistas foram de certa forma disciplinados pela encíclica, mas não subjugados. As respostas deles ao documento foram variadas: a maior parte optou pelas catacumbas, e lá ficaram, escondidos, por algumas décadas. Contudo, no tempo próximo ao Vaticano II, eles audaciosamente reemergiram, mais resolutos e combativos do que nunca, confiantes de que tinham um novo sopro de vida. O fato sombrio é que ainda hoje o modernismo está muito vivo e, desconcertantemente, mostrando todos os sinais de uma saúde robusta. Por isso não podemos nos permitir complacência, e seria inconcebível supor que a Igreja não continua a ter nele um inimigo dos mais perigosos, e, mais ainda, como enfatizaram os Papas São Pio X e Pio XII, um “inimigo interno”.

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Filosofia

Arte e Prudência em João de Santo Tomás

Breve estudo sobre o maior filósofo português que já pisou o pó deste mundo: João Poinsot, também conhecido como João de Santo Tomás!

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Filosofia

Um Papa lusitano na história do nominalismo

João XXI - Petrus Hispanus
João XXI – Petrus Hispanus
Artigo do Pe. J. de Castro Nery, publicado na Revista Eclesiástica Brasileira em setembro de 1946 (com pequenas modificações de estilo e ortografia):

Na história da filosofia não figuram apenas os grandes pensadores, os que poderiam ser denominados generalíssimos das idéias. Também por vezes os soldados obscuros, confundidos com a massa anônima, sobreestão àqueles pela influência, direta ou indireta, que exercem no desenvolvimento do sistema.

É pouco mais ou menos o que aconteceu a um português, quase esquecido nas grandes histórias, tão esquecido que, na maior parte das vezes, apenas se encontra citado nalgum parágrafo secundário ou nalguma nota erudita dos rodapés. Referimo-nos a Pedro Julião de Lisboa, que Prantl (1) considerava simples copista de Psellus, mas que a crítica moderna parece decidida a julgar como um dos auxiliares mais em vista do movimento filosófico, desde o final do século XIII até o fim da Renascença.

Pedro Julião, ou Petrus Hispanus, mais tarde Papa sob o nome de João XXI, estudara em Paris, fora médico e professor em Siena. Discípulo de Shyreswood (2), contemporâneo de estudos de Rogério Bacon, ouvinte de Santo Alberto Magno na universidade parisiense, tornou-se conhecido pela competência em três domínios diferentes: ciências naturais, psicologia e lógica. Como naturalista, escrevera o Thesaurus pauperum, que foi um dos repositórios de observações mais estimadas durante a Idade Média (3). Psicólogo, compusera o De Anima, que um historiador severo como é Martin Grabmann considera como “a mais importantes de todas as monografias escolásticas sobre a teoria da alma durante o século XIII”, e a respeito da qual escreve: “Não tenho dúvida em considerá-lo o mais completo exemplar de psicologia sistemática que nos foi legado pela época do esplendor da Escolástica” (4). Como lógico, deixou essas famosas Summulae Logicales, que são objeto deste artigo.

Pedro Julião (5) era um fervoroso discípulo de S. Tomás, e é provável mesmo que o tivesse escutado em Paris, pois aparece como uma das personagens intervindas no processo movido por Pedro de Corbeil contra certos autores mais em voga por esse tempo. Mas o filósofo ulissiponense, sem o querer talvez, concorreu para dar aos estudos filosóficos uma orientação que os grandes metafísicos da Escolástica muito provavelmente não aprovariam.

A lógica velha, como aliás a lógica aristotélica, estava intimamente soldada com a metafísica. Pedro Julião separa as duas disciplinas filosóficas. Considera a lógica “nova” um todo independente, ars artium et scientia scientiarum, que “abria caminho para os princípios de todos os métodos e para os princípios de todas as ciências”. De acordo com esta orientação, os torneios dialéticos se tornaram uma das preocupações mais importantes na filosofia; o estudo das propriedades dos termos, e da ligação destes com a gramática, surge como uma das funções mais explícitas do filosofar; o exame e a solução dos sofismas aparece como uma das finalidades máximas. Pedro Julião, que se liberta das autoridades árabes na exposição da ciência lógica, desenvolve toda uma parte original, sem correspondentes na obra de Aristóteles, Porfírio ou Boécio, nulli speciali libro correspondes, tratando das “suposições, ampliações, apelações, obrigações e questões insolúveis”.

Era uma novidade filosófica; e o sucesso alcançado pelas súmulas logicais foi extraordinário. Todas as universidades do continente e das ilhas adotaram o volume. Na longínqua Bizâncio, Georgios Scholarius traduz, reproduzindo-o textualmente, o compêndio do lógico lisboeta. No primeiro século da imprensa, o volume alcança um recorde editorial, tendo nada menos que quarenta e oito edições.

Durante três séculos, as súmulas logicais foram o manual mais estudado pelas várias correntes de filosofia, tomista, escotista e nominalista. Principalmente pela corrente nominalista.

E por que?  Porque o nominalismo tinha muito de comum com a orientação geral do programa estabelecido por Pedro Julião. Em primeiro lugar, restringia o campo da metafísica e cooperava na intenção simplificadora dos nominais. Depois, insistia nas noções de “suposição” e “significação” que eram uma das plataformas de combate assentadas pelo nominalismo. Enfim, pelo livre acesso às sutilezas, às argúcias, aos sinkategoremata, de que se vangloriavam os mestres da escola nominalista.

Ocam, para nos referirmos ao maior deles, dava grande apreço aos parva logicalia de Pedro Julião. Adotava-lhe toda a terminologia, e mandava que a ela se afizessem os discípulos. Para Ocam, como Petrus Hispanus, a lógica é “um instrumento adequado a toda filosofia”. Aproveitando-se habilmente das inovações do português, o venerável bacharel de Oxford afirmava que todo conhecimento não passa de um “sinal”, fazendo as vezes do objeto, e que os conceitos abstratos tomam o lugar dos objetos realmente existentes fora de nós mesmos.

Tais simpatias pela obra do lógico português não cessaram com a morte de Ocam; prosseguiram através das escolas, até o fim da Renascença. Em Oxford, berço do nominalismo, o gosto das sutilezas intensifica-se nos Sophismata de Cleymeton Langley, publicados em 1350, e nos dois tratados de lógica compostos por Dumbleton, do Merton College. A tal ponto os ingleses, adestrados pela ciência logical, se tornaram peritos na esgrima dialética que um dia se gloriavam da nímia sutileza da sua filosofia, mira scientiae logicalis subtilitas.

Em Paris, onde Pedro Julião estudara, e chegara mesmo a prelecionar, o entusiasmo para com as agudezas chegou a tal auge que o Papa João XXII julgou necessário intervir, mandando carta de recriminação aos professores da universidade, e reprovando as doutrinas sofísticas, assim introduzidas no currículo escolar, extranece doctrinae sophisticae. Houve mais. A própria universidade alarmou-se, censurando o desleixo da metafísica e o apego à formalística de Petrus Hispanus. Era tarde, porém, para uma eliminação definitiva do lusitano. Buridan, que foi um dos mestres mais acatados do nominalismo, eleito reitor da Universidade, teve um de seus atos mais típicos, restaurando, reeditando e comentando as súmulas de Petrus Hispanus.

Fatos análogos aconteceram nas demais universidades européias. Henrique de Oyta, instalado em Viena e Praga, repõe Petrus Hispanus no lugar de mestre das novas gerações nominalistas. O estatuto universitário, de 1390, exige que o candidato aos estudos superiores tenhapassado antes pelas súmulas do escritor ibérico. O prestígio de Petrus Hispanus não empalideceu nem mesmo com os derradeiros defensores do nominalismo. João Escoto Maior, esse mesmo que foi vítimas das zombarias de Rabelais, não desdenhou, à volta de 1505, escrever todo um comentário às súmulas de Pedro Espanhol. Em pleno Portugal de D. João III, o grande escolástico Margallo (6) fundamenta a sua lógica nos tratados de Petrus Hispanus. O prestígio destas súmulas só desapareceu quando o chefe da escola conumbrincense, denominado “Aristóteles português”, o grande Pedro Fonseca (7), escreveu os oito livros das Intituições Dialéticas.

Na verdade, Pedro Julião tinha sido um auxiliar involuntário do nominalismo, um cooperador indireto, um filósofo que entrara na contenda por favorecer certos  pendores da escola nominalista. Isso não lhe diminuiu o valor no conceito dos contemporâneos. Na lápide de seu túmulo se inscreveram estas palavras qui lusitani fuerat lux maxima regni. E não foi apenas para Portugal. Dante, que era tomista, não se esqueceu do Summulator na Divina Comédia, e não se esqueceu num dos momentos mais empolgantes da excursão paradisíaca, quando S. Boaventura faz o elogio da ordem dominicana e apresenta aos viajantes do além seus companheiros de glória, Hugo de S. Vítor, o gramático Donato e especialmente Pietro Hispano “lo qual giù luce in dodice libelli”, que, na terra, respalndeceu por motivo das suas súmulas logicais em doze livros (8).

(1) K. Prantl, Michel Psellus und Petrus Hispanus, Leipzig, 1927. V. Rose, Pseudo-Psellus und Petrus Hispanus, Hermes, vol. II, 1867.

(2) Guilherme Shyreswood, falecido em 1249.

(3) Notulae P. Hispani super regimen acutorum; Glosae magistrae P. Hispani super prognosticon; Tractatus a magistro P. Hispano super libro de dietis universalibus; Quaestiones super libro de urina; Quaestiones de crisi et super libro de diebus decretoriis; Quaestionis super libro de animalibus Aristotelis. Cfr. Berger, Die Ophtalmologie (Liber de Oculo) des Petrus Hispanus, Muenchen, 1889.

(4) Cfr. M. Grabmann, Ein ungedrucktes Lehrbuch der Psychologie des Petrus Hispanus (Papst Johanes XXI) in cod. 3314 der Biblioteca Nacional zu Madrid, in Spanische Forschungen der Goerresgesellschaft, série I, vol. I, Münster, 1928. Cit. por Lothar Thomas, Contribuição para a história da Filosofia Portuguesa, Lisboa, 1944.

(5) Pedro Julião nasceu em Lisboa, provavelmente em 1226, e morreu em Viterbo, em 1277, sob as ruínas de uma casa. Foi Arcebispo de Braga, e eleito Papa em 1276. Cfr. Stapper, Papst Johanes XXI: Eine Monographie, Münster, 1889; E. Moniz, O Papa João XXI, in “Jubileu da Academia de Ciências de Lisboa”, Coimbra, 1931; L. Pina, Pedro Julião ou Pedro Hispano, Papa João XXI, in Arquivo Histórico de Portugal, vol. I, fasc. I, 1932.

(6) Pedro Margallo, professor de Moral na Universidade de Salamanca, em 1520, e professor de Teologia na Univ. de Coimbra. Logica; Physices compendium, 1520. O prof. Joaquim de Carvalho diz que a Lógica de Margallo é fundada nas Súmulas de Pedro Hispano. Cfr. Lothar Thomas, p. 383. O título da obra a que nos referimos é Magallea logices utriusque Scolia in diui Thome subtilisque Duns doctrina ac nominalium.

(7) Pedro Fonseca, 1548-1597, chefiou a restauração aristotélica em Portugal, dirigindo o Cursus Conimbricensium, na companhia de Manuel Góis, Cosme Magalhães, Sebastião Couto.

(8) Divina Comédia, Paradiso, canto XII, vs. 134 e 135.

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Apologética Filosofia

Por que o materialismo é ilógico e incoerente?

Meu amigo Conde, conhecido pelos debates na internet, fez um ótimo vídeo refletindo sobre a ilogicidade do materialismo/ateísmo. Com seu conhecido didatismo e sinceridade, ele demole vários mitos modernos sobre essa questão:

https://youtu.be/H_Vd_NMAdus

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Filosofia

A filosofia de São Boaventura

Apresento abaixo uma tradução de meu confrade Ricardo do Orkut:

sao-boaventura-ofmI. Vida e obras

Boaventura (nascido Giovanni di Fidanza) nasceu em Bagnorea em 1221 e entrou na Ordem Franciscana provavelmente em 1243. Estudou na Universidade de Paris, onde foi discípulo de Alexandre de Hales – o primeiro mestre franciscano da universidade. Mais tarde Boaventura sucedeu seu mestre na cadeira de filosofia. Ensinou na universidade entre 1248 e 1255 e tomou parte, junto com Tomás de Aquino, no debate contra William de Saint Amour, adversário dos frades mendicantes.

Em outubro de 1257 o título de Doutor foi-lhe conferido na universidade. Nomeado Geral da Ordem no mesmo ano, deixou seus estudos para devotar-se aos problemas dos franciscanos. Nesse tempo escreveu as novas Constituições da Ordem e a biografia de São Francisco de Assis que ajudou a pacificar várias controvérsias entre os franciscanos.

Em 1273 foi nomeado Cardeal e Bispo de Alvano. Morreu em Lião em 1274 enquanto o Concílio estava ainda em sessão. Boaventura foi honrado com o título de “Doctor Seraphicus”.

Suas principais obras são: Comentários aos Quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo; Itinerarium mentis in Deum; De reductione artium ad theologiam; e o Breviloquium.

II. Doutrina: noções gerais

Boaventura teorizou o que, de uma maneira prática, estava refletido na vida de São Francisco de Assis. Francisco foi inteiramente consumido pelo amor de Deus e do Cristo crucificado; seu estigma sagrado, visível no corpo, foi uma manifestação do que já existia nas profundezas de sua santidade. Em sua união mística com Deus e com Cristo, São Francisco deixou as bases da fraternidade não apenas com homens, mas com todos os seres, e os mundos humano e físico foram revelados aos seus olhos como santuários onde tudo fala sobre Deus.

Boaventura queria teorizar na vida do Poverello e criar assim um sistema perfeito da vida cristã. Nesse empreendimento não assimilou os ensinamentos do racionalismo especulativo de Aristóteles, mas voltou-se para o agostinianismo, o qual gozava de grande autoridade na tradição da Igreja. Seu voluntarismo, que coloca o amor de Deus no centro de toda atividade; sua teoria da iluminação, que torna Deus presente na alma; seu exemplarismo, que revela uma imagem de Deus e de Seus atributos em cada uma das criaturas – todos esses motivos que, além da especulação racional, falam-nos vivamente sobre o que deve ser o ideal de vida cristã.

São Boaventura não era oposto ao pensamento de Aristóteles, e inclusive o aceitava em parte. Mas sua preferência é por Santo Agostinho, e traça todos os motivos do agostinianismo – no qual todas as coisas, externas ou internas, materiais ou espirituais, falam-nos sobre Deus; seguindo Agostinho, Boaventura sustenta que o fim de toda atividade humana é a contemplação ou união mística com Deus.

Em resumo, Boaventura mostra aos cristãos que tipo de vida eles devem ter se querem atingir seu destino. Essa é a função histórica do misticismo de Boaventura, o qual é importante na ordem espiritual como o aristotelismo de Tomás de Aquino é na ordem da filosofia racional.

III. Teoria do conhecimento

Boaventura admite três degraus do conhecimento:

 O primeiro degrau é o conhecimento do particular, do individual. Por este primeiro degrau, a experiência sensível correspondente ao sentidos físicos, é indispensável.

O segundo degrau consiste no conhecimento do universal, das ideias, e do que adquirimos refletindo sobre nós mesmos. Esse conhecimento não vem da abstração como ensinam Aristóteles e Tomás de Aquino, mas da iluminação. Essa iluminação é, para Boaventura, o resultado de uma cooperação imediata de Deus. O intelecto precisa dessa cooperação ou iluminação para alcançar o inteligível.

O terceiro degrau é o entendimento de coisas superiores a nós – Deus. Esse tipo de conhecimento pode ser obtido pela contemplação. “O olhar da contemplação não funciona perfeitamente senão em estado de glória, o qual é perdido pelo homem através do pecado e recuperado pela graça, fé e entendimento das Escrituras. Assim a mente humana é purificada, iluminada, e atraída para a contemplação das coisas celestes. Tudo isso está além do alcance do homem caído, a menos que ele reconheça seus defeitos e ignorância. Mas isso só pode ser feito mediante a consideração da natureza humana caída” (Breviloquium, II, 12).

IV. Metafísica

Boaventura aceita os princípios aristotélicos de matéria e forma, mas vai muito além na interpretação deles. A matéria, criada por Deus, tem sua própria forma, distinta das outras formas ou determinações que unem-se a ela. Além disso, ela contém sementes de todas essas determinações (é a doutrina das “rationes seminales” de Sto. Agostinho).

A matéria é uma constituinte essencial de toda criatura, mesmo daquelas que são ditas incorpóreas, como as almas humanas e os anjos. A matéria das substâncias incorpóreas, em acordo com as formas que recebem, é matéria espiritual (“materia spiritualis”), a qual expressa o que há de contingente e limitado em todo ser finito. Boaventura admite em todo corpo uma pluralidade de formas. Então, além da forma que é própria da matéria, em todo corpo há tantas formas quanto há propriedades essenciais, todas postas numa ordem hierárquica; quer dizer, as formas inferiores são subordinadas pelas superiores.

V. Cosmologia

Em sua cosmologia, Boaventura não aceita os conceitos aristotélicos de eternidade do mundo ou da matéria como co-eternas a Deus. O mundo tem sua origem no ato criativo no tempo; a criação “ab aeterno” é uma contradição. Deus, que criou a matéria, colocou nela as sementes ou razões de todas as determinações que pode assumir (“rationes seminales”).

VI. Psicologia

Em psicologia, Boaventura separa-se do aristotelismo não apenas no fato do conhecimento, como vimos, mas também na relação da alma com o corpo e da alma com suas faculdades.

Para Boaventura a alma é, por sua natureza, composta de forma e matéria (matéria espiritual), e consequentemente é uma sustância completa, independente do corpo. O corpo, por sua vez, é composto de matéria e forma (vegetativa e sensitiva), mas aspira ser informado pela forma racional. Nessa aspiração e coordenação consiste a unidade do indivíduo.

Sem dúvida, a unidade da pessoa não é intimamente proclamada como no aristotelismo; mas o ensinamento de Boaventura evite o perigo em que caiu o aristotelismo com sua teoria da forma imanente, fazendo da alma dependente do corpo até em seu destino. Tal perigo não pode existir em Boaventura, para quem a alma é uma substância completa em si mesma e não indissoluvelmente unida ao corpo.

Quanto às faculdades da alma, Boaventura, de acordo com Sto. Agostinho, distingue três – a vontade, o entendimento e a memória intelectiva. Para Boaventura as faculdades são expressões de uma e mesma alma, a qual é possuidora de três atividades diversas; entre a alma e suas faculdades há meramente uma distinção lógica. No aristotelismo as faculdades são qualidades da alma e realmente distintas dela. Boaventura sustenta que, entre as faculdades, a vontade possui o primado sobre as outras; portanto é necessário amar se queremos entender.

Essa lei é aplicada ao nosso conhecimento de Deus: é necessário estar unido a Deus pela fé e graça para conhecê-Lo e a Seus atributos. O processo desse conhecimento é descrito no Itinerarium mentis in Deum. Há três degraus ou etapas pelos quais a alma passa em sua ascenção a Deus:

A primeira etapa é chamada “vestigium”, que é a impressão de Si que Deus deixou nas coisas materiais fora de nós.

A segunda etapa é a “imago”, ou a reflexão da alma sobre si mesma, pela qual, vendo suas três faculdades – vontade, intelecto e memória – o homem discerne a imagem de Deus.

A terceira etapa é a “similitudo”, ou a consideração de Deus em Si mesmo. Considerando a ideia do ser perfeitíssimo, podemos conceber a unidade de Deus (é o argumento ontológico de Sto. Anselmo, que Boaventura admite como válido); e do conceito de bondade infinita alcançamos a consideração da Trindade. Em “similitudo” a alma atinge a união mística, o supremo grau de amor entre a criatura e seu Criador.