Ano: 2013
Conforto? Não no cristianismo.

Adeus à inteligência
Artigo de Ângelo Monteiro (Jornal do Commercio, Recife, 18 de abril de 2013):
Cada vez mais nos convencemos de que a inteligência vai perdendo terreno para as posições culturalmente dominantes. Pois quem detém o poder naturalmente contará com as armas para mantê-lo; e a atual cultura de massas dispõe, em seu favor, não só de numerosos testemunhos mas do aval de poderosas instituições, inclusive universitárias. Eis a herança trágica do que sequer foi suspeitado nos piores momentos da trajetória humana: a subestimação da inteligência em nome de uma pós-modernidade que não consegue distinguir o gesto de um esgar, a fala de um uivo, a força da escultura de uma precária instalação; em suma, a indistinção e o completo nivelamento artístico, convertidos em meios de disfarçar os conhecidos abismos que, até bem pouco tempo, existiam entre o fazer e o não fazer, ou entre o valor e dos desvalor.
Quem se sente obrigado a assistir a uma exposição sem quadros, e a ouvir uma peça musical desprovida de sons no mínimo audíveis, também não se verá disposto a ultrapassar as barreiras de uma razão meramente instrumental, de base ideológica, que há muito deitou suas raízes no campo devastado de uma cultura que terminou por perder seu fascínio, de uma hora para a outra, na terra dos homens. É como se a nossa voz se calasse para dar lugar a alheias vozes, alienadas de si mesmas, muito embora as únicas a se fazerem ouvidas pela turba a ocupar os estádios e anfiteatros ora ampliados e multiplicados. Chegamos perplexos à terrível conclusão de que a inteligência trabalha apenas sobre projeções mais ou menos esperadas, e não propriamente sobre a realidade.
E nada que possa ferir tanto a delicadeza de certos indivíduos que a verdade, nem aparições tão estranhas à maioria dos olhos que as da beleza. Ambas – a beleza e a verdade – vêm se tornando, com frequência, mais impermeáveis à experiência comum, agora exclusivamente dominada pelas contrafações de uma atividade estética que se opõe, sob todas as formas, quer às imagens do passado, quer às representações vivas do presente.
Nessa corrida esquizofrênica para um futuro sem rosto – e nessa busca desenfreada de máscaras no lugar dele – não percebemos a menor correspondência com outros momentos vividos ao longo de nossa história. Encontramo-nos, finalmente, na curiosa situação de reconhecer que a mediocridade é inteligentíssima. A inteligência é que é burra.
Texto de betty Milan (Veja, 14 de dezembro de 2011):
Por que ler os clássicos? O que há neles de fundamental para nós? Com essa questão em mente, reli Hamlet, anotando os seus ensinamentos.
Antes de dizer adeus a Ofélia, Hamlet envia a ela um poema: “Duvida de que os astros sejam chamas / Duvida de que o sol gira / Duvida da própria verdade / Mas não duvida de que eu te amo”. Algumas poucas linhas para dizer o essencial sobre o amor. Ou seja, que ele não suporta a dúvida, a desconfiança. Como é patente, aliás, na história de Eros e Psiquê, que vale rememorar.
Sendo o mais terno dos amantes, Eros não deseja ser visto e só vai ao encontro de Psiquê à noite. Desconfiada de que Eros seja um monstro, Psiquê se vale do sono dele para iluminar o seu rosto. Surpreendida pela beleza que revela, deixa cair da lamparina uma gosta de óleo quente no ombro do amante, que acorda assustado e vai embora enfurecido.
Também sobre a vida e a morte Shakespeare diz o essencial em poucas linhas. Assim é no diálogo de Hamlet com a rainha, sua mãe. Para fazê-lo aceitar a morte do pai assassinado, a rainha diz: “…tudo o que vive deve morrer, ser levado pela natureza para a eternidade”. Palavras sábias. Tanto quanto serão as do novo marido da rainha, o assassino, o rei usurpador, que, temendo a vingança de Hamlet, procura apaziguá-lo com as seguintes palavras: “Viver a tristeza do luto, durante algum tempo, é uma obrigação filial, mas perseverar numa aflição obstinada é indício de teimosia… de um coração sem humildade, de uma alma sem resignação, de um julgamento fraco e malformado”.
A leitura dos clássicos se faz necessária pela sabedoria que eles contém. Em especial, a sabedoria que se refere aos sentimentos humanos. Ela nos faz refletir e viver melhor. Hamlet ensina a não fazer pouco do amor e a não desperdiçar a vida, chorando infindavelmente a morte e a perda.
António José de Brito em entrevista
Entrevista de dezembro de 2009 com o Professor Antônio José de Brito para o projeto Direitas Radicais em Portugal, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, na qual ele dá seu testemunho sobre vários aspectos do governo de Salazar e do integralismo lusitano:
De maneira periódica sou interpelado, seja na internet (em especial na comunidade do Orkut), seja na vida real, sobre as divisões internas da Igreja. Algumas pessoas querem saber como se portar diante delas, outras pretendem simplesmente negar que pertencem a uma (pois aderem à idéia de que “um católico é apenas um católico”), e, de modo mais constante, me perguntam sobre como conceituar os diferentes grupos e como enquadrar as pessoas neles.
Há uma explicação famosa do conhecido Pe. Paulo Ricardo sobre o tema, mas para mim ela está enviesada, isto é, pende para o lado que mais o agrada. Nela o Pe. Paulo, que é um neoconservador (calma, já já explico o que isso quer dizer), considera como “conservador” aquilo que historicamente os tradicionalistas defendem, e como “tradicionalista” apenas os integrantes caricatos desse último grupo. Não aceito isso e vou explicar o motivo, de modo que futuros leitores deste texto não venham tentar contrapor a ele o pensamento do Pe. Paulo como que usando um argumento de autoridade.
Em primeiro lugar, cabe um vôo panorâmico sobre o que ocorreu nas últimas décadas.
No Vaticano II tínhamos três tendências disputando a influência na formulação dos textos: os tomistas, que aderiam à teologia tradicional da Igreja e ao ethos construído em torno disso ao longo dos séculos; os adeptos da patrologia, que defendiam o que consideravam ser uma volta às fontes da Fé; e, finalmente, os que se ligavam à teologia moderna, uma espécie de neomodernistas. Durante o Concílio, os adeptos da patrologia se juntaram aos neomodernistas, numa estratégia política para fazer valer suas opiniões, e isso pode ser percebido nos textos conciliares, onde parágrafos se contradizem, remetendo à necessidade de uma exegese sistemática, holística. Ou seja, é como se o centro tivesse se juntado com a esquerda. Mas, para a surpresa do segundo grupo, logo na segunda metade dos anos 60 passamos a ver, devido ao poder monetário e midiático, além do “agrado” que certas propostas davam ao homem contemporâneo, uma divulgação crescente de uma interpretação neomodernista do Vaticano II; e as coisas foram ficando tão radicais que o grupo tomista passou a ser visto como uma categoria inexistente de tão non sense, e o grupo da patrologia foi alçado para a direita. Portanto, os conservadores no sentido dado a essa expressão por Burke ou Russel Kirk (conservador é aquele que adere às lições e formas do passado para um desenvolvimento orgânico da vida social), são os herdeiros do grupo tomista, os atuais tradicionalistas, e os ligados à patrologia só podem ser chamados de neoconservadores, já que representam historicamente uma quebra com a tradição e só foram alçados à condição de direita pelo fato da Igreja ter caminhado excessivamente para a esquerda.
No meio disso tudo, apareceu um quarto grupo, o dos carismáticos, que tem, ao mesmo tempo, alguns aspectos híbridos dos outros grupos e alguns que são inéditos. Certas parcelas do carismatismo estão muito próximas do neconservadorismo, em especial no que se refere à obediência à autoridade; outras dos tradicionalistas, como no que se refere à disciplina eclesiástica (uso de roupas clericais); e, em vários aspectos, eles inovaram, como na maneira de se organizarem em comunidades de vida e aliança.
Chegando neste ponto, alguém pode perguntar: mas isso tudo não seriam apenas categorias políticas? Não é um reducionismo com a Igreja? Eu não me enquadro em em nenhuma delas e algumas pessoas parecem se enquadrar em mais de uma, como você explica tal fato? Todo progressista é um neomodernista?
Respostas: De fato, isso são categorias políticas, ou melhor, sociológicas, mas que se refletem na política eclesial (e ninguém venha me dizer bovinamente que não há política na Igreja, pois há, é natural que exista, já que Cristo fundou uma sociedade de fiéis e em toda sociedade a política é necessária); não estou tratando de categorias teológicas, pois a suposição aqui é que todas elas sejam católicas (se alguém defende que alguma não é, então que leve às últimas conseqüências sua conclusão). Isso é assumidamente reducionismo, pois tudo não passa de um instrumental didático para se tentar organizar um pouco a complexidade do real. Algumas pessoas, de fato, podem estar fora de todas elas (embora eu particularmente não conheça ninguém), mas a maioria vai se inserir preponderantemente, mas não exclusivamente, num dos grupos citados. Nem todo progressista é um neomodernista, mas o progressismo atual tem seus antecedentes no trabalho de pessoas que ignoravam os conselhos e mandamentos de São Pio X (assim como nem todo tradicionalista é lefebvrista, mas todos tem seus antecedentes na luta desse santo bispo).
Agora, feita toda essa introdução, posso esquematizar minhas respostas a certas colocações/perguntas que já li:
1) O que cada grupo (tradicionalistas, neoconservadores, carismáticos e progressistas) defende?
Tradicionalistas: as formas litúrgicas e disciplinares anteriores ao Vaticano II, a teologia neotomista.
Neoconservadores: a posição oficial de Roma em relação a tudo, os resultados da terceira fase do movimento litúrgico, a “teologia das fontes”.
Carismáticos: a valorização da experiência com o sagrado e da emoção na vida eclesial, a “teologia das fontes” com uma leitura toda particular, uma moral neotomista.
Progressistas: a busca da harmonização entre a doutrina católica e a filosofia moderna, a “teologia das fontes” com uma leitura toda particular e com reflexos na liturgia e nas regras disciplinares.
2) Qual o posicionamento de cada um em relação ao Vaticano II?
Tradicionalistas: variado, da simples negação (que é uma burrice e tende ao cisma) à leitura sistemática com o Depósito da Fé (nesse caso, com resultados que variam segundo o valor que se dá ao concílio: dogmático ou pastoral).
Neoconservadores: aceitam a exegese oficial e suas justificativas.
Carismáticos: em geral, aceitam a exegese oficial e suas justificativas, mas em alguns pontos aderem ao chamado “espírito do Vaticano II” e em outros possuem uma visão próxima a dos tradicionalistas moderados.
Progressistas: o Vaticano II deve ser aproveitado segundo seu “espírito”, isto é, segundo o desejo de mudança e harmonização com a realidade atual que se depreende mais da vontade dos padres conciliares que da letra dos textos.
3) Acredito que a questão política é semelhante à questão eclesial, modificando apenas alguns termos específicos no que tange o funcionamento do Estado em relação ao que ocorre na Igreja.
Não, a questão política não tem nada haver com a eclesial.
Todos os tradicionalistas, se forem tradicionalistas de verdade e não malucos, são conservadores no campo político. Já os neoconservadores eclesiológicos podem ser conservadores ou social democratas no campo político.
Eclesiologicamente:
a) Os conservadores, que querem conservar as formas que passaram no teste do tempo e, ao mesmo tempo, aceitam as mudanças orgânicas, são aqueles que fizeram resistência ao caos pós-conciliar. São os tradicionalistas.
b) Já os neoconservadores são os que não aceitam essa resistência, mas que também não levam até o fim os princípios nos quais as diretrizes do pós-concílio se apoiam, são os oficialistas acima de tudo.
4) Esquematize as posições das várias “tribos católicas” sobre os assuntos que você acha mais importantes.
Tradicionalistas:
1) Ênfase histórica: reforma tridentina;
2) Afinidades: ortodoxos bizantinos;
3) Fontes de reflexão pastoral: Magistério anterior ao Vaticano II + vida dos santos;
4) Ênfase catequética: Magistério, Tradição, Escritura;
5) Revelação (foco): Tradição;
6) Uso de ferramentas científicas: não;
7) Ética: moralista;
8) Inserção sócio política: direita;
9) Liturgia: ritualista;
10) Questões divisivas (valor do Vaticano II, maneira de obedecer ao Magistério contemporâneo, rubricas usadas no rito gregoriano, aparicionismo): tendência à separação.
Neoconservadores:
1) Ênfase histórica: Padres;
2) Afinidades: ortodoxos bizantinos;
3) Fontes de reflexão pastoral: Magistério posterior ao Vaticano II + vida dos santos;
4) Ênfase catequética: Magistério, Escritura, Tradição;
5) Revelação (foco): Escritura;
6) Uso de ferramentas científicas: sim, com reservas;
7) Ética: moralista moderada/social;
8) Inserção sócio política: direita
9) Liturgia: ritualista;
10) Questões divisivas (relação com outros grupos eclesiais, ecumenismo, interpretação do Vaticano II): obedecem à última palavra do superior.
Carismáticos:
1) Ênfase histórica: Igreja primitiva;
2) Afinidades: protestantes + ortodoxos bizantinos;
3) Fontes de reflexão pastoral: vida dos santos + Escritura;
4) Ênfase catequética: Escritura, Magistério, Tradição;
5) Revelação (foco): Escritura;
6) Uso de ferramentas científicas: não;
7) Ética: moralista;
8) Inserção sócio política: alienação/direita;
9) Liturgia: ritualista/emoções;
10) Questões divisivas (oração X ação social, uso de elementos da cultura contemporânea na evangelização, obediência ao Magistério em pontos que contrariam seu ethos, aparicionismo): alienação, preferem fingir que elas não existem.
Progressistas:
1) Ênfase histórica: igreja pré-constantina e tempos modernos;
2) Afinidades fora do catolicismo: protestantes liberais;
3) Fontes de reflexão pastoral: Bíblia + ciências modernas (experiência);
4) Ênfase catequética: Escritura, Magistério, Tradição;
5) Revelação (foco): Escrituras/razão;
6) Uso de ferramentas científicas: sim, abundantemente;
7) Ética: situacional/social;
8) Inserção sócio-política: esquerda;
9) Liturgia: despojada/moderada;
10) Questões divisivas (divórcio, ordenação feminina, uniões homossexuais, métodos anticoncepcionais): varia, tendência a uma prática pastoral complacente.
Bem, é isso, acho que com este texto os confrades e demais leitores terão um ponto inicial mais sólido para refletirem sobre as divisões internas da Igreja nos dias atuais (cada época tem as suas!).
Leis puramente penais
Artigo do filósofo e teólogo Inácio Strieder (Jornal do Commercio, Recife, 27 de janeiro de 2013) que apresenta uma informação interessantíssima no que se refere à reflexão da Igreja sobre a relação da lei divina com as leis civis:
Em tempos não muito remotos, constava nos livros de moral cristã, usados como manuais nos cursos seminarísticos, um capítulo sobre as “leis puramente penais”. Que leis eram estas? Como, na compreensão da política (medieval) cristã, o Estado e a Igreja são duas sociedades perfeitas, mas distintas em seus objetivos, as leis de uma dessas sociedades não necessariamente são vinculantes uma para a outa. Na Igreja são obrigatórias as leis do direito canônico que, segundo se ensina, obrigam com fundamento nas convicções de consciência dos fiéis. A voz da consciência é como a “voz de Deus”. Por isto, seguir a consciência é certo, não seguir a consciência é pecado.
Na sociedade civil, em questões de leis, não é a consciência que determina a obrigatoriedade da lei. A lei é a dura lex. Agrade ou não, se é justa ou não, se há convicção ou não de sua justiça e verdade, isto não interessa. A lei, uma vez promulgada por autoridade legítima, exige observância. Em caso contrário, o cidadão está sujeito a penalidades. Em sociedades democráticas, quem não estiver de acordo com determinada lei, deve lutar por aboli-la. Diante da compreensão da lei penas na Igreja (medieval?!), sustentou-se a existência de “leis puramente penais” para o cristão. Certas leis civis não observadas, não deveriam gerar intranquilidade de consciência; o seu descumprimento não era pecado; a transgressão destas leis não precisava ser confessada, e nem necessitava de perdão, pois não ofendiam a Deus. Contudo, se a autoridade flagrasse um cristão na transgressão destas leis, o fiel deveria cumprir as penalidades determinadas.
Estavam no rol das “leis puramente penais” as leis aduaneiras, fiscais, do trânsito, certas leis trabalhistas e profissionais. Não era, portanto, pecado, fazer contrabando, sonegar impostos, dirigir fora da lei, não assinar a carteira de trabalho… O que, ainda hoje, encontramos sendo praticado por certos religiosos. No entanto, hoje, a Igreja já não ensina mais a moral das “leis puramente penais”. Interessante é que, ao que parece, a “moral”, ou melhor, a imoralidade das “leis puramente penais” migrou da consciência religiosa para a consciência civil. Muitos cidadãos corruptos e criminosos, notórios transgressores das leis, se escondem e mentem para não serem descobertos. E, ao contrário do ensinamento da Igreja, também não querem cumprir as penalidades de suas transgressões.

