Categoria: Brasil profundo
Nessa excelente entrevista em vídeo, o escritor e cientista político Jorge Caldeira fala sobre seu novo livro, Nem Céu, Nem Inferno, e explica por que grandes clássicos da análise do Brasil, como Caio Prado Jr. ou Celso Furtado, já não podem guiar os estudos sobre o país. “O conhecimento progride. Os clássicos não dispunham de informações que novas bases de dados e a antropologia, por exemplo, trouxeram recentemente”, diz Caldeira. “Hoje sabemos quem em 1800 a economia interna brasileira era o dobro da portuguesa. Não podemos continuar repetindo um enredo em que tudo se resume à exploração da colônia pela metrópole.” O escritor ainda se reporta sobre outros mitos esquerdistas, demonstrando, por exemplo, que ao contrário do que se acredita, a grande força produtiva do Brasil colônia não era a escravidão, mas os pequenos produtores independentes. Vale ver e vale ler o livro depois.
Na semana passada recebi, como todos os anos, o cartão de Natal dos príncipes D. Luiz e D. Bertrand de Orleans e Bragança (os Correios atrasaram), e, desta vez, ele trouxe um interessantíssimo texto comemorativo do segundo centenário da formação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Como católico, sou monarquista, porque esse é o regime mais de acordo com a vontade de Deus, e também sou contrário ao nacionalismo excludente, fruto da modernidade, que eclipsou o legítimo cultivo do patriotismo a partir do século XVIII; desse modo, só posso lamentar que o Reino Unido não tenha durado até hoje (incluindo outras nações da cristandade lusófona), pois ele foi como que o último suspiro de um projeto de evangelização mundial que respeitava os legítimos direitos e identidades locais e se punha em confronto com a demagogia supostamente democrática. Obviamente não estou dizendo que devíamos lutar pela volta desse projeto, posto que a história andou e não retorna ao mesmo ponto. Vamos ao texto:
No dia 16 de dezembro de 1815, por Carta de Lei, o Príncipe Regente D. João elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Estamos comemorando neste mês o segundo centenário desse marcante acontecimento de nossa história.
Do nativismo brasileiro
Certas coisas parece que nunca mudam:
Padecem essas nacionalidades [latino-americanas], principalmente no seu ódio romântico à Península, – sua grande madre, as consequências duma longa e persistente infiltração estrangeira. Se nas nações de origem espanhola, mercê duma activa campanha intelectual, o regresso aos caminhos da verdade começou já a acentuar-se, o “nativismo” no Brasil, desprezando, entre outros avisos, o do insuspeito Sílvio Romero, não hesita em quebrar todas as amarras que prendem a pátria brasileira ao passado, – e glorioso passado! –, de Portugal. Chega-se até à extremidade de aclamar como um puro tipo de brasileirismo nascente a Calabar, – um traidor, que não trepidou em abandonar seus irmãos de armas, passando-se para o holandês – para o inimigo!
Nunca o Brasil deve esquecer os aplausos que a colonização portuguesa arrancou a Eduardo Prado, – colonização católica, criadora de povos, tal como a espanhola –, e não simples ocupadora de territórios, onde a caça ao indígena se tornava processo sumário de domínio, – tal como a Inglaterra. Cremos bem que a tendência mental no Brasil se modificará sensivelmente, com mais justiça e mais meditação sobre as lições da História. O esforço de Elísio de Carvalho, com as páginas fortes e sinceras dos seus Bastiões da Nacionalidade, representa já uma sensível modificação do ambiente. Mas a Elísio de Carvalho e aos seus colaboradores da América Brasileira, – que o querido e ilustre camarada nos perdoe a franqueza, talvez um tanto desabrida! –, falta-lhes uma doutrina, uma filosofia. Como nacionalistas, a sua doutrina, a sua filosofia, teria de ser iniludivelmente anti-democrática, ou melhor dizendo, contra-revolucionária. É, de resto, a filosofia que o Brasil já possui nas belas campanhas de Jackson de Figueiredo, meu irmão na mesma dupla fé religiosa e tradicionalista. Mas, ai de nós!, Jackson de Figueiredo participa um tanto da lusofobia dos nativistas, como, com mágoa, concluo da leitura do seu opúsculo Do Nacionalismo na Hora Presente. Aponta justamente aí Jackson de Figueiredo a diferença que há para um americano na revolução, ou seja, “na violenta separação que estabelecemos entre nós e as metrópoles”, – diz o autor eminente de Pascal e a Inquietação Moderna –, e a Revolução quando, facto moral e ideológico, importa a negação dos dogmas nacionais, “paralela quase sempre à negação religiosa”. O desacordo começa, porém, quando, assinalando ao “português” a sua qualidade de “estrangeiro” no Brasil, o considera no mesmo pé de igualdade que “o francês, o alemão ou o japonês”. Eis onde nos distanciamos profundamente, entendendo que o nacionalismo de Elísio de Carvalho, neste aspecto do problema, se coloca mais dentro dos princípios tradicionalistas que o patriotismo alarmado de Jackson de Figueiredo.
– Antônio Sardinha (A Aliança Peninsular, via Acção Integral)
Festa do Divino Espírito Santo
Estou lendo um conto de Machado de Assis chamado A Parasita Azul no qual encontrei o seguinte trecho:
No sábado seguinte a cidade revestira desusado aspecto. De toda parte correra uma chusma de povo que ia assistir à festa anual do Espírito Santo.
Vão rareando os lugares em que todo se não apagou o gosto dessas festas clássicas, resto de outras eras, que os escritores do século futuro hão de estudar com curiosidade, para pintar aos seus contemporâneos um Brasil que eles já não hão de conhecer. No tempo em que essa história se passa uma das mais genuínas festas do Espírito Santo era a da cidade de Santa Luzia.
O tenente-coronel Veiga, que era então o imperador do divino, estava em uma casa que possuía na cidade. Na noite de sábado foi ali ter o bando dos pastores, composto de homens e mulheres, com o seu pitoresco vestuário, e acompanhado pelo clássico “velho”, que era um sujeito de calção e meia, sapato raso, casaca esguia, colete comprido e grande bengala na mão.
Camilo estava em casa do coronel, quando ali apareceu o bando dos pastores, com alguns músicos à frente, e muita gente atrás. Formaram logo, ali mesmo na rua, um círculo; um pastor e uma pastora iniciaram a dança clássica. Dançaram, cantaram e tocaram todos, à porta e na sala do coronel, que estava literalmente a lamber-se de gosto. É ponto duvidoso, e provavelmente nunca será liquidado, se o tenente-coronel Veiga preferia naquela ocasião ser ministro de Estado a ser imperador do Espírito Santo.
Hoje como anda essa festa do Divino? Se na época de Machado ele dizia que rareava o gosto por essas festas clássicas, hoje ainda resta algo dele? Essa devoção ao Divino Pai Eterno, feita pelo Pe. Reginaldo Manzoti, tem alguma relação com a devoção ao Espírito Santo presente de maneira forte em Goiás?
A fé de Ariano
O professor de direito e confrade vicentino José Luiz Delgado vem, desde a morte de Ariano Suassuna, escrevendo uma série de textos sobre a sua convivência com o mestre do Armorial. O último desses escritos (Jornal do Commercio, Recife 26 de agosto de 2014) apresentou algumas informações sobre a fé católica de Ariano, de sua admiração por Alceu Amoroso Lima e sua relação com Gustavo Corção, e, por isso, transcrevo-o abaixo:
Mais lembranças
Impressionou-me a quantidade de gente, de “populares”, que saiu às ruas simplesmente para ver passar o cortejo fúnebre de Ariano. O “Brasil real”, que tanto ele amava e tanto defendeu, sabia reconhecê-lo, mesmo que não tivesse muito clara ideia do seu valor. Junto-me a esses para também chorá-lo.
No Conselho Municipal de Cultura, a que surpreendentemente me levou – até porque ele convocara ou discípulos e companheiros muito próximos das ideias dele (Raimundo Carrero, romance; Antônio Madureira, música; Gilvan Samico, xilogravura. Marcus Accioly, poesia) ou grandes personalidades, a quem profundamente admiriava (Dr. Murilo Guimarães e José Césio Regueira Costa) – penso que tivemos atuações complementares. Ariano se interessou muito pelos vivos, promovendo, com editoras sulistas, a publicação de coedições para lançar nacionalmente poderosos talentos locais. E eu cuidei dos mortos… Inventei uma “Coleção Recife” justamente para publicar textos inéditos de autores pernambucanos já falecidos.
Frei Damião em 1969 na cidade Taparoá (PB). Esse vídeo é uma verdadeira relíquia!
Um sermão de Vieira
Texto do Prof. Ângelo Monteiro publicado no Jornal do Commercio (Recife, 29 de agosto der 2013) que, além da crítica cultural mais ampla, traz à tona um problema real que todo catequista enfrenta no nosso país, a saber, o da falta de consolidação dos princípios doutrinários na mente dos alunos, e que, incrivelmente, o Pe. Antônio Vieira já notava no início de nossa história:
Não se pode nunca saber, depois de mais de trezentos anos, se o Sermão do Espírito Santo, proferido pelo Padre Antônio Vieira, em São Luís do Maranhão, se resume à constatação de uma época ou vem a ser, muito antes, a confirmação de uma realidade: a de um país condenado, por fatalidade, a repetir o tempo todo a receita do mesmo. Vieira começa pela nomeação de São Tomé, dada a sua proverbial incredulidade, a pregador do Brasil mostrando, curiosamente, que suas pegadas ficaram na memória das pedras e não na dos homens. Eis como se pronuncia, a esse respeito, o genial jesuíta: “Não se podia melhor provar e encarecer a barbárie da gente. Nas pedras acharam-se rastos do Pregador, na gente não se achou memória da pregação; as pedras conservam a memória do Apóstolo, os corações não conservam a memória da doutrina.”
Não se esqueceu, também, de assinalar a facilidade com que os brasileiros, que então não passavam de índios, tornaram-se rapidamente abertos à aceitação da Fé e, em igual disposição, dispostos a esquecê-la: “e não porque os Brasis não creiam, mas porque essa mesma facilidade com que creem, faz com que o seu crer em certo modo seja como não crer. Certos Gentios são incrédulos até crer; os Brasis ainda depois de crer são incrédulos. Em outros Gentios a incredulidade é incredulidade, e a Fé é Fé; nos Brasis a mesma Fé, ou é ou parece incredulidade.” Dessa maneira a disseminação das ideias, sobretudo se novas, acompanha no Brasil a mesma trajetória das profissões de fé: conhece um reinado tão curto no coração dos homens, como dantes conheceu a rápida conversão. As ideias entre nós, assim como os homens que as divulgam, veem chegar em muito pouco tempo o clima próprio dos fins de festa, preparatório dos ostracismo e do esquecimento.
O Padre Vieira não deixa, por isso, de nos chamar a atenção, com suma perspicácia, para uma certa constante da nossa formação histórica, que é a completa indiferença cultural, por meio do seguinte depoimento: “Esta é uma das maiores dificuldades que tem aqui a conversão. Há-se de estar sempre ensinando o que já está aprendido, e há-se de estar sempre plantando o que já está nascido.” Talvez constitua nosso verdadeiro legado negar a mínima confiança, no desprezo pela memória do que fomos e somos, em qualquer forma de presente, e entregar-se, impenitente, às mãos do futuro, esperando que as coisas criem um dia raízes mais firmes e fundas – mas como se fora nas nuvens – nessa terra onde, segundo o testemunho veraz de Pero Vaz de Caminha, em se plantando tudo dá…
Outro dado interessante desse texto é que ele nos mostra também a motivação histórica do que foi percebido por Olavo de Carvalho no seu já clássico Orgulho do Fracasso.
