Já faz algum tempo que na “internet católica” brasileira de ethos conservador (no sentido lato, envolvendo tanto neoconservadores quanto tradicionalistas e parte dos carismáticos) se divulga a informação de que um católico que vota num comunista (ou num partido comunista) se excomunga automaticamente. Na prática o conceito é até ampliado, pois em geral se coloca na categoria de “comunista” toda e qualquer forma de socialismo ou social-democracia. Tudo isso não passa de um erro, um erro que torna inviável a criação de um espaço de heteroestima dentro da Igreja, e que vou procurar dissipar nas considerações abaixo (tendo por base um debate travado com o confrade Rui no Orkut).
Bem… sempre que essa questão surge um dos primeiros questionamentos que se faz a quem a defende é sobre onde essa pena se encontra no Código de Direito Canônico (CDC), já que tal diploma legal é o referencial básico para se dizer o que é ou não punido pela Igreja. É sempre bom lembrar que pecado, por mais grave que seja para o conjunto do Corpo Místico de Cristo, não é sinônimo de excomunhão. Ao longo da história coisas completamente irrelevantes, como “incomodar os judeus do gueto de Roma”, foram punidas com a excomunhão, e ações graves, como ser dono de escravos, não o foram, de modo que quem questiona sobre a existência ou não de tal pena no código não está dizendo que o voto num marxista não contenha em si mesmo algo de errado. De qualquer forma, frente à letra clara do CDC, que não prevê a pena de excomunhão para o ato referido, a única saída dos seus defensores é dizer que ela está prevista numa legislação extravagante que continuaria válida até hoje.
Essa norma seria um decreto do Santo Ofício datado de 1949. Mas vamos devagar.
O que se deu foi que o site da Associação Cultural Montfort publicou o texto do decreto sem uma parte que é importantíssima e esse texto, incompleto, serviu de base para o Pe. Paulo Ricardo e Olavo de Carvalho divulgarem a noção de que o simples voto num partido comunista (ou assemelhado) implica numa pena automática de excomunhão.
O texto correto é este:
Decreto do S. Ofício, 28 jun. (1º jul.) 1949
Decreto contra o comunismo
Perguntas.:
1. É permitido aderir ao partido comunista ou favorecê-lo de alguma maneira?
2. É permitido publicar, divulgar ou ler livros, revistas, jornais ou tratados que sustentam a doutrina e ação dos comunistas ou escrever neles?
3. Fiéis cristãos que conscientemente e livremente fizeram o que está em 1 e 2, podem ser admitidos aos sacramentos?
4. Fiéis cristãos que professam a doutrina materialista e anticristã do comunismo, e sobretudo os que defendem ou propagam, incorrem pelo próprio fato, como apóstatas da fé católica, na excomunhão reservada de modo especial à Sé Apostólica?
Resp. (confirmada pelo Sumo Pontífice 30/06):
Quanto a 1.: Não; o comunismo é de fato materialista e anticristão; embora declarem às vezes em palavras que não atacam a religião, os comunistas demonstram de fato, quer pela doutrina, quer pelas ações, que são hostis a Deus, à verdadeira religião e à Igreja de Cristo.
Quanto a 2. Não, pois são proibidos pelo próprio direito (cf. CIC, cân. 1399).
Quanto a 3.: Não, segundo os princípios ordinários determinando a recusa dos sacramentos àquele que não tem a disposição requerida.
Quanto a 4.: Sim.
Vejam, a expressão “como apóstatas da fé católica” na pergunta 4 faz toda a diferença. Esta expressão, que falta no texto da Montfort, é que delimita as razões da excomunhão. Em outras palavras, não é esta excomunhão específica para o comunismo, é a que havia no Código de Direito Canônico de 1917 para os apóstatas, cismáticos e hereges. Portanto, o indivíduo deveria cumprir a condição efetiva de se tornar apóstata: perder a fé.
E, como, em todo sistema falso, há alguma verdade, porque o erro não se sustenta senão na verdade, alguém pode sentir-se atraído pelo comunismo, sem negar suas bases cristãs, embora de forma culposa, ou ainda aderir ao partido comunista para melhor reivindicar os direitos dos operários, o que não faria do comunismo marxista (cuja aceitação integral equivale à apostasia) um fim em si mesmo.
Tanto é assim que, na “Teologia Moral” de Teodoro da Torre del Greco, a simples inscrição nesse tipo de agremiação política é avaliada do seguinte modo:
A simples inscrição no Partido comunista (especialmente pelo fato de melhor reivindicar os direitos dos operários) não constitui, por si, nenhuma apostasia, nem acarreta a excomunhão reservada “speciali modo”. Com isto não se afirma, não seja a inscrição ao comunismo proibida pela Igreja; ao contrário, os católicos estão obrigados não só a não colaborarem em nenhum campo com o comunismo, mas a combatê-lo; além disso, não é lícito publicar, difundir e ler os jornais e folhas volantes que propugnam a doutrina e a prática do comunismo, nem assinar tais publicações (cfr. Decr. do Santo Ofício, 1º de julho de 1949; ASS., XLI, 1949, pág. 334).
Ou seja, não implicava em excomunhão, mas também não era algo desejável.
E mesmo que o decreto valesse nos termos que alguns dizem, ainda assim não daria para fazer o automatismo que eles querem nessa questão, pois no nosso país os partidos (ou boa parte de quem se liga a eles) não levam a ideologia a sério (PT e PSB, por exemplo, aderem a um conceito vago de socialismo, que, concretamente, vira qualquer coisa), de modo que os títulos de “comunista” ou “socialista” são em boa parte dos casos slogans vazios.
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No que se refere ao tema do post, a leitura deste texto é essencial.